Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 24 de dezembro de 2016

"Um ano depois" - Revisitar "Outros Cadernos de Saramago" (24/12/2008)

Revisitar "Outros Cadernos de Saramago"
http://caderno.josesaramago.org/18417.html

Quarta-feira, 24 de Dezembro de 2008

"Um ano depois"
“Morri” na noite de 22 de Dezembro de 2007, às quatro horas da madrugada, para “ressuscitar” só nove horas depois. Um colapso orgânico total, uma paragem das funções do corpo, levaram-me ao último limiar da vida, lá onde já é tarde de mais para despedidas. Não recordo nada. Pilar estava ali, estava também Maria, minha cunhada, uma e outra diante de um corpo inerte, abandonado de todas as forças e donde o espírito parecia ter-se ausentado, que mais tinha já de irremediável cadáver que de ser vivente. São elas que me contam hoje o que foram aquelas horas. Ana, a minha neta, chegou na tarde do mesmo dia, Violante no seguinte. O pai e avô ainda era como a pálida chama de uma vela que ameaçasse extinguir-se ao sopro da sua própria respiração. Soube depois que o meu corpo seria exposto na biblioteca, rodeado de livros e, digamo-lo assim, outras flores. Escapei. Um ano de recuperação, lenta, lentíssima como me avisaram os médicos que teria de ser, devolveu-me a saúde, a energia, a agilidade do pensamento, devolveu-me também esse remédio universal que é o trabalho. Em direcção, não à morte, mas à vida, fiz a minha própria “Viagem do Elefante”, e aqui estou. Para vos servir."

"Navegar até à América Latina" por Pilar del Río - sobre os 30 anos de "A Jangada de Pedra" (Revista Blimunda #54 11/2016)

Sobre os 30 anos da publicação de "A Jangada de Pedra"


O presente texto de Pilar del Río, está publicado na edição #54 (Novembro de 2016) na revista digital "Blimunda" e pode ser consultada através da página da Fundação José Saramago aqui, 

Páginas 108 a 110

"Em Novembro, a Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), México, abrirá as suas portas com um convidado de honra tão grande quanto um continente, nada mais nada menos do que a América Latina. O motivo para tão sonoro convite tem a ver com a história da Feira, que este ano completa os seus primeiros trinta anos de vida. Os mesmos que o romance de José Saramago, A Jangada de Pedra, que nasceu em Portugal, em 1986, para dar início a uma navegação que não termina, porque os seres humanos, às vezes sem serem de todo conscientes, desejamos a aventura do encontro, de uns com outros e, oh, a magia da literatura, entre continentes. Por isso A Jangada de Pedra tinha que estar na FIL no dia de abertura, na tarde de 26 de Novembro: que bom dia para uma cerimónia levantada e principal.
A urgência da viagem fez-se tão evidente que José Saramago, para satisfazer tanta inquietação, não teve mais remédio senão lançar ao mar a terra que habitava, e assim escreveu sobre a viagem da Península Ibérica em direção à América Latina. Não fugia, ao contrário do que muitos entenderam, simplesmente apostou no poder da razão. A Península Ibérica separada do resto da Europa – IbExit radical – funcionaria como um rebocador a arrastar o continente europeu até mundos que o esperam e que são mais brilhantes que o próprio umbigo. Usou, José Saramago, o modo literário para chamar a atenção do adormecimento no qual a Europa estava submersa, uma contribuição singular para enfrentar a cegueira que prosperava com a brutalidade do passado recente. José Saramago intuía que a celebração europeísta, da forma como se estava a produzir, invocava a obscenidade da exploração, daí a importância de intervir para ratificar os valores que nos fazem livres. E agora vem a pergunta-chave: Poderia um encontro de culturas e civilizações impedir o caos? Não é isso o que está escrito no romance, mas depreende-se da sua leitura que os seres humanos, colocados em posição de entendimento e de mútua compreensão, podem alterar todos os projetos.
Navegava a jangada de pedra pelo oceano enquanto vários homens e mulheres percorriam a ilha-península como novos Quixotes, preparados para enfrentar todos os moinhos de vento. Também estes seres humanos se amam – e aqui Saramago vai mais longe que Cervantes – e geram vidas que nascerão com o maravilhoso dom do inconformismo. Eles, filhos das mães do romance, seguirão escrevendo sobre aventuras fabulosas porque sabem que navegar até aos outros é o melhor e, para além disso, é preciso. 
A Jangada de Pedra chega ao México porque é o seu destino natural e lá encontra-se com os outros países do continente americano. A festa dos trinta anos não poderia ser mais bela. Apetece agradecer à vida por permitir-nos que vivamos isto. Faço-o: gracias a la vida."