Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Fortuna crítica: Luciana Stegagno Picchio, escreve "Saramago: Momento por todos esperado" (05/12/1998)



Informação biográfica em http://pt.wikipedia.org/wiki/Luciana_Stegagno_Picchio
"Luciana Stegagno Picchio (Alessandria, Piemonte, 26 de abril de 1920 — 28 de agosto de 2008) foi uma filóloga, historiadora da cultura, crítica literária, especialista em literatura medieval portuguesa, história do teatro português e literatura brasileira.
Faleceu aos 88 anos e foi autora de mais de 500 publicações dedicadas às literaturas e culturas de língua portuguesa, o que lhe valeu o título de mais importante luso-brasileirista da Europa."

em Fortuna crítica: Luciana Stegagno Picchio
Pode ser consultado e lido 
em http://www.jornaldepoesia.jor.br/1lstegagno.html

"Saramago: Momento por todos esperado"

Ainda que este universo lusófono contasse com grandes tradições literárias tanto em Portugal como no Brasil e com uma nova impetuosa tradição de escritores africanos de expressão portuguesa. Esperávamos este momento há tempo. Esperamos que acontecesse para o velho rapsodo Jorge Amado e para poetas de elite como João Cabral de Melo Neto. Mas sobretudo para um escritor como ele, José Saramago, no qual há vários anos vivíamos o candidato mais legítimo, mais prestigioso, mais nosso: e pelo qual sofríamos esperando a cada outubro, como quem aguarda com angústia confiante a chegada de sua bagagem na esteira rolante do aeroporto, sem que ela nunca desponte.
A decepção agridoce, para nós italianos, do ano passado, quando Dario Fo ganhara na linha de chegada logo de José Saramago, nos deixara uma grande margem de esperança. A história do Nobel nos ensinou pelo menos, como já na época do prêmio para Octavio Paz, a jogar com as probabilidades. Apesar de seu corpo ágil e longilíneo de adolescente e o sorriso de quem, aos 76 anos, pensa em um futuro operoso e sereno do lado de Pilar, a jovem mulher espanhola que o acompanhará a Estocolmo, mostrando para o mundo como pode ser bonito um casal de intelectuais, Saramago em sua longa vida teve, como todos, facilidades e decepções. Sobretudo de seu país.
Comunista militante, nunca faccioso, sempre crítico, nunca trânsfuga, tivera que esperar o fim do salazarismo e a Revolução dos Cravos do abril de 1974 para poder despontar com pleno direito na cena literária portuguesa e internacional. E fora logo um sucesso, como de quem, na sombra da espera, tivesse afiado seus instrumentos. Viera antes a poesia, com os Poemas possíveis (1966) e Provavelmente alegria (1971), que, na distância de ano, revelam hoje toda sua carga humana e profética: “Só direi,/Crispadamente
recolhido e mudo,/que quem se cala quanto me calei,/não poderá morrer sem dizer tudo”. Depois apareceram as primeiras coletâneas de crônicas: Deste mundo e do outro (1971), A bagagem do viajante (1974), como provas de redação que contivessem já em seu casulo todos os motivos da narrativa futura. Em seguida o teatro (começando com A Noite, 1979), que hoje nos parece obra de um autor “outro”, tanto discursivo, referencial e polêmico quanto a prosa de invenção é misteriosa, alusiva, poética. A motivação do Nobel fala de um Saramago “que com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade
fugidia”. E talvez este seja o melhor rótulo para uma obra que, apesar de minuciosamente ambientada numa época e numa ideologia (a Lisboa inquisitorial do começo do século XVIII, a Lisboa das origens, ainda dividida entre mouros e cristãos, os anos do franquismo e de seu contágio ao Portugal salazarista, a Palestina de uma Vida de Jesus ao lado do Homem), nunca aparece como mera revisitação do fato histórico, mas sua parábola, pretexto para a interpretação de um hoje que filtra o passado com o alheamento comovido e irônico do depois.
O novo Saramago, um intelectual já amadurecido que vive desde sempre em Lisboa, mas que fora do círculo dos amigos de trabalho e de café poucos conheciam, irrompe de repente na cena literária portuguesa em 1980, com um romance singular que o coloca de imediato no primeiro plano entre os narradores nacionais. E é aquele Levantado do chão, no qual pela primeira vez aparecia, numa saga camponesa de sabor ao primeiro olhar ainda realista, a sua organizadíssima cifra estilística. O “discurso oral” de Saramago, aquelas suas páginas lotadas de signos, sem maiúsculas e pontuação, era de fato capaz de reproduzir poeticamente, em som antes até do que em letras, uma história nacional e individual; as vicissitudes de três gerações de camponeses do Alentejo, as quais, através da luta de classe, levantando-se do chão, verticalizando-se no seu reconhecer-se enquanto homens, assurgiam como protagonistas de uma história que até aquele momento fora apanágio de seus patrões. A fama internacional virá logo em seguida, em 1984, com aquele Memorial do Convento, que permanece ainda hoje como sua obra mais famosa e da qual ele sairá para uma viagem de escrita, para uma aventura
narrativa que no-lo restituirá escritor sem mais limitações regionais: um dos mais significativos narradores do nosso tempo.
O Memorial conta a construção, nas primeiras décadas do século XVIII, do Mosteiro e da Igreja de Mafra, erigidos com extraordinária magnificência nos arredores de Lisboa, por vontade do soberano absoluto D. João V. Romance histórico na minuciosa descrição da sociedade portuguesa, cortesã e popular, do começo do século, na suntuosidade barbaresca dos autos da fé promovidos por uma inquisição ainda imperante, torna-se romance social na evocação daquelas multidões de operários, carregadores braçais, canteiros,
que foram os construtores materiais do templo. Mas torna-se romance de realismo fantástico na invenção dos personagens, primeiro entre todos aqueles de Blimunda, filha de marrana dos olhos claros e do belo nome germânico que não por acaso um músico como Azio Corghi depois escolheu como protagonista de sua recriação musical do romance.
Deste momento em diante, a inspiração de Saramago torna-se urgente. O ano da morte de Ricardo Reis (1984), que ambienta em uma Lisboa atingida pela vizinha guerra da Espanha a permanência na cidade de um heteronômio de Fernando Pessoa, sobrevivido por um ano à morte do poeta, talvez seja a mais poética, comovida homenagem à memória de quem hoje é considerado o maior poeta moderno português.
Assim como A jangada de pedra (1987) representa a saborosa e polêmica profissão de fé antieuropeísta do português Saramago, a História do cerco de Lisboa (1989) é uma sua jubilosa “correção” da história no nome da liberdade da interpretação. Mas o Saramago mais próximo de nós e para nós mais universal é sem dúvida o último. Aquele que, com o sofrido e humaníssimo Evangelho Segundo Jesus (1991), agüentou a incompreensão na pátria, escolhendo desde então o caminho do exílio em Lanzarote, nas Canárias. E mesmo aquele do qual, após o voluntário afastamento de Portugal e de sua “realidade sonora”, com a conseqüente imersão num universo da
língua espanhola, todos tínhamos temido uma redução da sua sensibilidade “auditiva”: indispensável, nos parecia, para a criação daquela “literatura oral” da qual até aquele momento se substanciava a sua criação poética. Mas Saramago enxergou mais longe do que nós. E com as projeções brancas do seu romance Ensaio sobre a cegueira (1995) antes, e depois com o “burocrático” Todos os nomes (1997), soube imergir-nos em rarefeitas atmosferas de pesadelo e sonho.
Se a praxe acadêmica nos sugere por enquanto de defini-las kafkianas, no futuro talvez estas atmosferas sejam diretamente ligadas a ele, à sua fantasia, à sua humanidade, à sua capacidade de “ver” do que naturalmente de “ouvir”, naquela sua peculiaríssima recriação auditiva da realidade circunstante. Saramago gosta da Itália, onde tem muitos amigos, onde suas obras foram traduzidas até antes do que em outros países, onde recebeu os primeiros doutoramentos ad honorem e os primeiros prêmios literários. E para nós este prêmio longamente anunciado e finalmente concedido é como um Nobel para um escritor nosso. Traduzido do italiano para esta edição por Silvia La Regina, professora e ensaísta, este artigo foi publicado no jornal italiano La Repubblica e posteriormente, numa outra tradução, no Jornal de Letras de Lisboa.

[Nota de A Tarde: Luciana Stegagno Picchio, a mais importante luso-brasileira da Europa, autora, entre inúmeros outros estudos, de Histórias da Literatura Brasileira (Rio, Nova Aguilar, 1997), escreveu este artigo no dia em que foi anunciado o Prêmio Nobel para José Saramago, amigo de muitos anos]

Mais actual que nunca - "Crime (financeiro) contra a humanidade" post no livro/blog "Caderno" (19/10/2008)

Notícia de 22 de Janeiro de 2015, pode ser lida e consultada
em http://www.noticiasaominuto.com/pais/337470/clientes-do-novo-banco-protestam-junto-a-sede-do-banco

"Clientes do Novo Banco protestam junto à sede do banco"

"Perdi 100 mil euros em papel comercial, as poupanças de uma vida que guardei para a minha reforma e para poder ajudar os meus filhos", contou à Lusa António Maneiras, um reformado de 76 anos que veio do Seixal para se juntar ao protesto de hoje, que ao final da manhã reuniu pouco mais de uma dezena de pessoas.
António recordou o dia em que decidiu investir em papel comercial do banco: "A minha gestora do BES contactou-me, sabia que eu tinha vendido ações e tinha o dinheiro disponível, ofereceu-me 5% de juros e garantiu-me que não punha o meu dinheiro em risco".
Este reformado disse ainda que é nos jornais que consegue alguma informação sobre o processo do BES, uma vez que o banco não lhe faculta qualquer informação sobre quando ou como poderá reaver os seus cem mil euros.
A maioria dos que hoje se deslocaram à sede do Novo Banco para protestar é pessoas com mais de 50 anos e que vieram do norte do país.
Os manifestantes esperavam a chegada de dois autocarros vindos do Porto, que transportavam clientes do BES que subscreveram papel comercial e que se iam juntar ao protesto.
Domitila Barradas, de 53 anos, também não sabe quando pode reaver os 50 mil euros investidos em papel comercial: "Uma vida inteira de trabalho. Tenho medo de não receber este dinheiro que é meu", contou.
Alguns manifestantes exibiam cartazes dizendo "Nova Banco caloteiro" e "Onde está o meu depósito?" e "Será que o Banco de Portugal/Estado abandonaram 5.000 famílias?".
A 03 de agosto passado, o Banco de Portugal tomou o controlo do BES, após a apresentação de prejuízos semestrais de 3,6 mil milhões de euros, e anunciou a separação da instituição em duas entidades: o chamado banco mau (um veículo que mantém o nome BES e que concentra os ativos e passivos tóxicos do BES, assim como os acionistas) e o banco de transição que foi designado Novo Banco."


O universo da voz e letra de José Saramago, mostra-se, por sua razão e muita infelicidade para nós, sempre actuais e legitimados pelas acções e evolução da sociedade. Em 2008, os mercados viviam uma crise que se apelidava de sem precedentes. Em 2015, passados sete anos, esses tempos parecem uma brincadeira de alguns que subverteram as regras. Infelizmente para "nós", os outros, alheios a essas movimentações e subversões, era só mais um começo... até quando?
O post, pode ser lido e consultado online, em http://caderno.josesaramago.org/7023.html


"Crime (financeiro) contra a humanidade" (19 de Outubro de 2008)

"Pensava escrever no blog sobre a crise económica que nos lançaram para cima quando tive que me dedicar a cumprir um compromisso com outros meios de comunicação. Deixo aqui o que penso e que já foi publicado em Espanha, no jornal Público, e em Portugal, no semanário Expresso.
Crime (financeiro) contra a humanidade
A história é conhecida, e, nos antigos tempos de uma escola que a si mesma se proclamava como perfeita educadora, era ensinada aos meninos como exemplo da modéstia e da discrição que sempre deverão acompanhar-nos quando nos sintamos tentados pelo demónio a ter opinião sobre aquilo que não conhecemos ou conhecemos pouco e mal. Apeles podia consentir que o sapateiro lhe apontasse um erro no calçado da figura que havia pintado, porquanto os sapatos eram o ofício dele, mas nunca que se atrevesse a dar parecer sobre, por exemplo, a anatomia do joelho. Em suma, um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. À primeira vista, Apeles tinha razão, o mestre era ele, o pintor era ele, a autoridade era ele, quanto ao sapateiro, seria chamado na altura própria, quando se tratasse de deitar meias solas num par de botas. Realmente, aonde iríamos nós parar se qualquer pessoa, até mesmo a mais ignorante de tudo, se permitisse opinar sobre aquilo que não sabe? Se não fez os estudos necessários, é preferível que se cale e deixe aos sabedores a responsabilidade de tomar as decisões mais convenientes (para quem?).Sim, à primeira vista, Apeles tinha razão, mas só à primeira vista. O pintor de Filipe e de Alexandre da Macedónia, considerado um génio na sua época, esqueceu-se de um aspecto importante da questão: o sapateiro tem joelhos, portanto, por definição, é competente nestas articulações, ainda que seja unicamente para se queixar, sendo esse o caso, das dores que nelas sente. A estas alturas, o leitor atento já terá percebido que não é propriamente de Apeles nem de sapateiro que se trata nestas linhas. Trata-se, isso sim, da gravíssima crise económica e financeira que está a convulsionar o mundo, a ponto de não escaparmos à angustiosa sensação de que chegámos ao fim de um época sem que se consiga vislumbrar qual e como seja o que virá a seguir, após um tempo intermédio, impossível de prever, para levantar as ruínas e abrir novos caminhos. Como assim? Uma lenda antiga para explicar os desastres de hoje? Por que não? O sapateiro somos nós, nós todos que assistimos, impotentes, ao avanço esmagador dos grandes potentados económicos e financeiros, loucos por conquistarem mais e mais dinheiro, mais e mais poder, por todos os meios legais ou ilegais ao seu alcance, limpos ou sujos, correntes ou criminosos. E Apeles? Apeles são esses precisamente, os banqueiros, os políticos, os seguradores, os grandes especuladores, que, com a cumplicidade dos meios de comunicação social, responderam nos últimos trinta anos aos nossos tímidos protestos com a soberba de quem se considerava detentor da última sabedoria, isto é, que ainda que o joelho nos doesse não nos seria permitido falar dele, denunciá-lo, apontá-lo à condenação pública. Foi o tempo do império absoluto do Mercado, essa entidade presuntivamente auto-reformável e autocorrectora encarregada pelo imutável destino de preparar e defender para todo o sempre a nossa felicidade pessoal e colectiva, ainda que a realidade se encarregasse de o desmentir a cada hora.E agora? Irão finalmente acabar os paraísos fiscais e as contas numeradas? Irá ser implacavelmente investigada a origem de gigantescos depósitos bancários, de engenharias financeiras claramente delituosas, de investimentos opacos que, em muitíssimo casos, não são mais que maciças lavagens de dinheiro negro, de dinheiro do narcotráfico? E já que falamos de delitos… Terão os cidadãos comuns a satisfação de ver julgar e condenar os responsáveis directos do terramoto que está sacudindo as nossas casas, a vida das nossas famílias, o nosso trabalho? Quem resolve o problema dos desempregados (não os contei, mas não duvido de que já sejam milhões) vítimas do crash e que desempregados irão continuar a ser durante meses ou anos, malvivendo de míseros subsídios do Estado enquanto os grandes executivos e administradores de empresas deliberadamente levadas à falência gozam de milhões e milhões de dólares a coberto de contratos blindados que as autoridades fiscais, pagas com o dinheiro dos contribuintes, fingiram ignorar? E a cumplicidade activa dos governos, quem a apura? Bush, esse produto maligno da natureza numa das suas piores horas, dirá que o seu plano salvou (salvará?) a economia norte-americana, mas as perguntas a que terá de responder são estas: Não sabia o que se passava nas luxuosas salas de reunião em que até o cinema já nos fez entrar, e não só entrar, como assistir à tomada de decisões criminosas sancionadas por todos os códigos penais do mundo? Para que lhe serviram a CIA e o FBI, mais as dezenas de outros organismos de segurança nacional que proliferam na mal chamada democracia norte-americana, essa onde um viajante, à entrada do país, terá de entregar ao polícia de turno o seu computador para que ele faça copiar o respectivo disco duro? Não percebeu o senhor Bush que tinha o inimigo em casa, ou, pelo contrário, sabia e não lhe importou?O que está a passar-se é, em todos os aspectos, um crime contra a humanidade e é desta perspectiva que deveria ser objecto de análise em todos os foros públicos e em todas as consciências. Não estou a exagerar. Crimes contra a humanidade não são somente os genocídios, os etnocídios, os campos de morte, as torturas, os assassínios selectivos, as fomes deliberadamente provocadas, as poluições maciças, as humilhações como método repressivo da identidade das vítimas. Crime contra a humanidade é o que os poderes financeiros e económicos dos Estados Unidos, com a cumplicidade efectiva ou tácita do seu governo, friamente perpetraram contra milhões de pessoas em todo o mundo, ameaçadas de perder o dinheiro que ainda lhes resta e depois de, em muitíssimos casos (não duvido de que eles sejam milhões), haverem perdido a sua única e quantas vezes escassa fonte de rendimento, o trabalho.Os criminosos são conhecidos, têm nomes e apelidos, deslocam-se em limusinas quando vão jogar o golf, e tão seguros de si mesmos que nem sequer pensaram em esconder-se. São fáceis de apanhar. Quem se atreve a levar este gang aos tribunais? Ainda que não o consiga, todos lhe ficaremos agradecidos. Será sinal de que nem tudo está perdido para as pessoas honestas."

em, "O Caderno"
Caminho, 2.ª edição