"A Jangada da Europa à Deriva – Apontamentos sobre a Actualidade d’A Jangada de Pedra de José Saramago" pode ser recuperado aqui
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"A Jangada de Pedra" da edição Caminho (1986)
“Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal...), o romance que então escrevi - A Jangada de Pedra - separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, «massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais», a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens... Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais generosa e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra - duas mulheres, três homens e um cão - viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros...). Isso lhes basta.”
(José Saramago, Discursos de Estocolmo)
Em 2016, os 30 anos da edição d’A Jangada de Pedra de José Saramago coincidiram com o trigésimo aniversário da adesão de Portugal e Espanha à CEE, a futura União Europeia. A relevância da perspectiva saramaguiana sobre a relação das culturas ibéricas com o resto da Europa, sobre o processo de construção da UE continua a ser evidente.
No seu momento, o romance e as opiniões do autor representavam uma visão radicalmente diferente daquela que vigorava na opinião pública de então. Desde a direita até ao centro-esquerda, depreciava-se qualquer debate sobre os perigos de antecipar uma união económica a uma convergência político-cultural. Uma ampla maioria nos principais países europeus acreditava que o período de paz após a II Guerra Mundial só se devia ao processo de integração económica europeia.
Mas o romance sugeriu, de uma forma muito plástica, como o conflito pós-colonial de sistemas também se podia transformar em conflito cultural na própria metrópole Europa. Depois de 500 anos de presença em três continentes e após a perda das últimas colónias, a entrada de Portugal e Espanha na CEE tinha sido menos um regresso do que uma chegada. Até à morte de Franco ou ao 25 de Abril, respectivamente, a Europa tinha sido para Espanha e Portugal sobretudo um destino de emigração e de exílio.
A adesão económica, porém, aconteceu num momento no qual esta Europa já se encontrava desprovida de um imaginário comum. Nos casos espanhol e português, talvez tenha vigorado naquele momento uma utopia de modernização das suas sociedades. Mas o que realmente produziu uma política de factos consumados era a economia comunitária com os seus caudais de fundos de desenvolvimento.
Porém, não havia naquele momento um projecto político-cultural de uma Europa com valores comuns que pudesse ter servido de alicerce para uma integração. Precisamente por isso, A Jangada de Pedra insistiu na necessidade de acção de um sujeito que não pode ser desvinculado do seu contexto histórico-social e político. Como em toda a obra saramaguiana, também este romance participa de uma certa utopia do destino individual e do futuro melhor. Mas esta só se justifica pela acção histórica do sujeito e por este adquirir uma memória crítica do passado.
Assim, a vara de negrilho e o risco de Joana Carda, que maravilhosamente desencadeiam a rotura da Península Ibérica nos Pirenéus, deslegitimam todas as vinculações impostas, sociais ou políticas. É sugerida a instituição de uma nova realidade, de uma necessária heterogeneidade cultural e de uma reescrita pós-colonial da História. A leitura crítica da História que propõe o romance lembra-nos que a Europa precisa de uma narrativa actualizada e da sua conseguinte posta em prática. Entre outros aspectos, sugere que é indispensável assumirmos a culpabilidade europeia em relação às culturas e aos espaços colonizados.
Saramago concretizou esta reivindicação em 1998, no seu discurso na cerimónia de entrega do prémio Nobel. Aí reclamou uma “nova utopia” para a Europa, uma reorientação “para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo” e que esta Europa se assuma, de uma vez por todas “finalmente como ética”.[1] Não era a única ocasião em que se desvinculara da corrente europeizante do pensamento nacional em Portugal.[2]
Mas era no discurso de Estocolmo onde chegou a caracterizar A Jangada de Pedra como o “fruto do ressentimento colectivo português” e até, “pessoal”, “pelos desdéns históricos de Europa”.[3] E em 1986, numa entrevista para a revista francesa Libération, tinha deixado claro que no cerne da questão estava a necessidade de acrescentarmos à memória colectiva europeia uma argumentação ética:
“Esse romance […] é o efeito, talvez último, de um ressentimento histórico. Provavelmente, só um português poderia ter escrito tal livro. Mas o seu autor, este autor, declara que estaria pronto a fazer regressar do mar a errante jangada, depois de alguma coisa ter aprendido de vitalmente necessário durante a sua navegação, se a Europa, reconhecendo-se, de facto, incompleta sem a Península Ibérica, viesse a fazer pública confissão dos erros cometidos, das injustiças e dos desprezos com que durante tantos anos tratou dois povos a quem deve muito mais do que aquilo que tem querido reconhecer.”[4]
Mas a utopia de uma “Europa finalmente como ética”, livre de complexos de superioridade, não implica o desaparecimento dos ‘factos diferenciais’ que distinguem as culturas ibéricas entre si, mas também, pelo menos na sua grande maioria, das outras culturas europeias. Continua a haver lugar para o sonho de um destino atlântico das culturas peninsulares.
Naturalmente, isto inclui também a defesa de um pluralismo e de uma identidade cultural fluída, acorde com um mundo globalizado, sem nunca abdicar da premissa de uma ética concreta e palpável:
“De um ponto de vista ético abstracto, a Europa não tem mais culpas no cartório da história que outra qualquer parte do mundo onde, hoje e ontem, por todos os meios, se tenham disputado o poder e a hegemonia. Mas a ética, exercendo-se, como no-lo está dizendo o senso comum, sobre o concreto social, é porventura a menos abstracta de todas as coisas.”[5]
Esta filosofia do sentido comum é a base do “privilegiamento das permutas culturais” com a América Latina e a África,[6] com o qual o eurocentrismo deve ser contrariado, uma ideia que Saramago circunscreveu com o conceito da “trans-ibericidade”.[7] Quer dizer, o desafio de a Europa enfrentar a sua imagem no espelho das culturas pós-coloniais às quais deu origem.
Hoje, quando se deplora o euro-cepticismo seria conveniente lembrar que Saramago já nos avisou em 1986 que existe “além dessa espécie de deformação congénita denominada eurocentrismo, aquele outro comportamento aberrante que consiste em ser a Europa, por assim dizer, eurocêntrica em relação a si mesma”.[8] Saramago sempre insistiu na correlação entre uma ética comum e a necessária aceitação dos factos diferenciais das diferentes culturas europeias:
“[…] não haverá no futuro próximo uma nova Europa se esta não instituir frontalmente como entidade moral, e também não a haverá se não for abolido, mais do que os egoísmos nacionais, que quantas vezes não passam de meros reflexos defensivos, o preconceito da prevalência ou da subordinação das culturas.”[9]
Nos trinta anos que Portugal e Espanha estão agora na CEE e na UE, nivelaram-se muitas diferenças económicas e administrativas, mas também culturais. A visibilidade e o conhecimento das culturas ibéricas nas grandes potências europeias, e na UE em geral, têm certamente aumentado. Mas também presenciamos uma crescente desconfiança dos países do Centro-Norte em relação aos países do Sul, frequentemente acusados de serem demasiado corruptos, dispendiosos e preguiçosos. Uma recente tentativa do Ministro de Finanças alemão de interferir na política interna portuguesa tem sido disso só um exemplo paradigmático, entre muitos outros. Em 2016, numa cimeira em Budapeste, Wolfgang Schäuble apresentou o Portugal da Troika como um exemplo do que devem ser as políticas económicas a seguir pelos países da zona euro, ao dizer que “Portugal estava a ser muito bem sucedido até entrar um novo governo, depois das eleições”, que a sua falha tinha sido “declarar que não iria respeitar os compromissos assumidos pelo anterior Governo” e “se seguirem esse caminho, vão assumir um grande risco”, afirmou.[10] Já antes, o mais poderoso dos ministros de finanças da UE tinha advertido do perigo de Portugal ter de pedir um novo resgate, se não acatasse as regras ditadas pela Comissão Europeia.
Estas imposições de cortes financeiros chocam com o facto de terem sido os 10% mais pobres que perderam 24% do rendimento, entre 2009 e 2013 em Portugal, enquanto o rendimento dos 10% mais ricos só desceu 8%. Também segundo o Eurostat, mais de um quarto da população portuguesa (25,3%, na Espanha são 28,2%) está em risco de pobreza e exclusão social, um risco que está a aumentar em todos os países da União Europeia, ininterruptamente desde 2008, sobretudo nos países sujeitos a ‘troikas’ ou a medidas radicais de austeridade, eufemisticamente ditas “ajustamentos estruturais”.
Em 1986, Saramago já intuiu que uma integração económica europeia sem enquadramento cultural, político e ético iria causar muitos desequilíbrios e que “o seu pecado ou vício maior, […] é a existência de duas Europas, a central e a periférica, mais o consequente lastro histórico de injustiças, discriminações e ressentimentos”.[11] O facto de Portugal, especialmente durante os anos da recente crise económica e financeira mundial, ter sido relegado para o papel de fornecedor de mão-de-obra barata ou de destino turístico de baixo custo e massificado, com Lisboa e Porto em clara deriva para a gentrificação e a descaracterização, ilustra esses desequilíbrios. A desconfiança e altivez com que os governos dos países do Centro-Norte costumam dirigir-se ao Sul da Europa, não é um fenómeno recente e já estava presente quando Saramago escreveu A Jangada de Pedra:
“é desta maneira idealizada que os europeus costumam ver-se no espelho de si mesmos, e essa é a servil resposta que a si mesmos invariavelmente vêm dand «Sou eu o que de mais belo, de mais inteligente e de mais culto a Terra produziu até hoje.»”.[12]
Um dos principais reflexos actuais desta atitude doutoral desprovida de uma ética do “concreto social” talvez seja a imposição de uma austeridade e de um dogmatismo financeiros que produziram novas vagas de emigração, agravado ainda pela falta de uma política de compromisso inequívoco em relação à crise humanitária dos refugiados. Estas e muitas outras dissonâncias no seio da EU compõem um desolador panorama de desintegração e falta de solidariedade, tal como o descreveu Saramago já em 1986:
“Para os estados europeus ricos e, segundo a opinião narcísica em que se comprazem, culturalmente superiores, o resto da Europa é algo vago e difuso, um pouco exótico, um pouco pitoresco, merecedor, quando muito, da atenção da antropologia e da arqueologia.”[13]
Não é só Portugal que se debate hoje com transformações estereotipadas e superficialmente estetizadas da sua identidade. Há uma pressão para que os economicamente mais fracos correspondam, entre outras imposições de um mercado comunitário e simultaneamente globalizado, ao ideal de destino de negócio aliciante ou de turismo low cost. Enquanto a Europa se encontrar numa deriva desintegradora, austerocrática, paternalista, heteropatriarcal e sem consenso sobre valores comuns, um livro como A Jangada de Pedra continuará a ser uma mensagem política relevante para os indispensáveis debates sobre o futuro da UE.
Como instituição, cuja credibilidade depende de como consegue responder às expectativas da cidadania, a UE vive, hoje em dia, submersa numa grave crise de valores. Para que possa formular alternativas reais ao euro-cepticismo crescente, não só precisa de uma reflexão colectiva e inter-cultural em torno dos problemas actuais como bem-estar, coesão, equidade ou segurança. Mas também sobre a promessa incumprida de uma Europa das Regiões, sobre a necessária redefinição de uma identidade cultural europeia a partir de valores como solidariedade e Direitos Humanos, entre muitos outros.
Apesar de ter sido um declarado crítico do conceito de utopia, Saramago sempre se esforçou por deixar uma porta aberta para uma reinvenção em positivo da narrativa “Europa”. Porém, este renovado relato ético teria de partir da cidadania e do sujeito, da ideia de um demos (δήμος) europeu, ou seja, de um conceito de povo que não se fundamenta exclusivamente no étnico. Só a expressão deliberativa, cooperativa e colectiva da vontade dos sujeitos pode legitimar uma acção política e social oposta à tecnocracia descaracterizadora. Mas antes de lá chegar, esta cidadania precisa de assumir que
“as culturas, é tempo de começar a entendê-lo Europa, e entendida tente ficar de uma vez para sempre, não são melhores nem piores umas que as outras, não são mais ricas nem mais pobres. Pelo destino, valem-se e equivalem-se, e pela diferença, assumida e aprofundada, é que se justificam.”[14]
(Burghard Baltrusch)
Como citar este artigo:
Baltrusch, Burghard (2016). "A Jangada da Europa à Deriva – Apontamentos sobre a Actualidade d’A Jangada de Pedra de José Saramago", in Publicações no site da I Cátedra Internacional José Saramago, (acesso ../../....).
Este texto é uma versão abreviada e ligeiramente modificada do artigo "NOS 30 ANOS D’A JANGADA DE PEDRA: JOSÉ SARAMAGO E A ATUALIDADE DO DISCURSO DA “TRANS-IBERICIDADE”, publicado em Fênix - Revista de História e Estudos Culturais (n.º 2, 2016).
[1]Saramago (1999). Discursos de Estocolmo. Lisboa: Caminho.
[2]Saramago (1988). “O (meu) Iberismo”, Jornal de Letras, Artes e Ideias 330, 31.10., p. 32.
[3]Saramago (1999), Discursos de Estocolmo. Lisboa: Caminho.
[4]Saramago [1986] (2016). “Meditação sobre uma Jangada”, Blimunda 55, p. 105, reed. em port. de uma entrevista dada à Libération em 1986.
[5]Ibid., p. 100.
[6]Saramago (1986). “A Península Ibérica nunca esteve ligada à Europa” [entrevista a Inês Pedrosa], Jornal de Letras, Artes e Ideias, 10.11., p. 24.
[7]Saramago (1989). “Acerca do (meu) Iberismo”, Encontros: Revista Hispano Portuguesa de Investigadores en Ciencias Humanas y Sociales 1, p. 31.
[8]Saramago [1986] (2016). “Meditação sobre uma Jangada”, Blimunda 55, p. 101.
[9]Ibid., p. 102-103.
[10]Público do 26.10.2016, <https://www.publico.pt/2016/10/26/economia/noticia/schauble-diz-que-portugal-estava-a-ser-bem-sucedido-ate-entrar-um-novo-governo-1748949>, acess 20/01/2017.
[11]Saramago [1986] (2016). “Meditação sobre uma Jangada”, Blimunda 55, p. 101.
[12]Ibid., p. 99.
[13]Ibid., p. 102.
[14]Ibid., p. 103.