O trabalho de Ana Sousa Dias para a "Up Magazine TAP Portugal" (01/12/2009), pode ser consultado e recuperado aqui
em http://upmagazine-tap.com/pt_artigos/jose-saramago-o-homem-dividido/
Fotografia constante na presente crónica
"Sempre se regressa, diz José Saramago nesta conversa com viagens em fundo. Quem fala, tem dois sítios e não sabe qual deles é o “mais sítio”. Lisboa, a cidade onde se fez homem e escritor, ou Lanzarote, a ilha escolhida para viver."
"Três memórias sobressaem na caminhada “viageira” do escritor português nascido na Azinhaga, perto da Golegã, a 16 de Novembro de 1922. O comboio das 5 e 55, que apanhava na estação do Rossio até Mato Miranda, para as férias em casa da avó Josefa. A escada, nem sequer escadaria, da Biblioteca Laurenziana, em Florença. E a inesperada subida ao topo da Montanha Branca, num dia de 1993.
A própria ideia de turismo aborrece o escritor que, depois do Prémio Nobel da Literatura (1998), viaja sucessivamente, em visitas de toca-e-foge. Entre Viagem a Portugal e A Viagem do Elefante, o autor deu voltas à língua e às verdades feitas, como quem desmancha um brinquedo e o remonta com outra lógica. Caim, o seu mais recente livro, aí está para incomodar as mentes resignadas. E os dedos de José continuam a teclar o computador para mais um livro, para mais crónicas do observador do mundo.Velhinho, o cão Camões aconchega-se no soalho. A casa de Lanzarote está sossegada, com Pilar del Rio, a mulher de Saramago, trabalhando e sempre atenta.
Começamos por falar do livro Viagem a Portugal (1985), “uma viagem que eu nunca imaginei que um dia faria”. Foi convidado a fazê-la pelo amigo Manuel Dias Carvalho, então editor do Círculo de Leitores. Logo no título há uma intenção, e a ideia foi Saramago buscá-la ao livro do espanhol Camilo José Cela, Viaje a la Alcarria. E para dar razão ao “a” em vez do “em”, o escritor demorou-se uns dias na Galiza e entrou em Portugal por Miranda do Douro. Foi fazendo outras excursões. Percorria uma região e regressava a Lisboa com muitas fotografias e cadernos decapa preta cobertos de notas. Depois de tudo junto e arrumado e escrito tornou-se o livro que levou muita gente a querer descobrir o país.
Passados mais de 20 anos, o que pensa o autor deste trabalho? “Não que tenha sido o livro mais importante que escrevi, mas é daqueles que eu estimo mais. Tudo isto é um pouco contraditório, porque sempre fui uma pessoa muito sedentária, tirando a vida no campo, em que fazia longuíssimas excursões por aqueles rios. Mas gosto do livro. É o livro de uma pessoa que não se importa de ser surpreendida com a sua própria ignorância. Escrevi sobre aquilo que vi, experimentei, senti.” Essa Viagem a Portugal é para o Nobel português como uma “irmã gémea” de O Memorial do Convento, seu primeiro grande sucesso editorial: “São escritas distintas, evidentemente, uma de relato e outra de ficção, mas há um gosto quase físico pelo uso da palavra, por procurar o sítio onde a vais pôr. E é um livro longo, longo, longo. Quando cheguei ao final fiquei surpreendido. Tenho coisas que ainda hoje leio e continuo a gostar muito”."
Baptismo de voo
"Por se reconhecer sedentário, o escritor confessa que só tirou passaporte em 1969, “inevitavelmente, para ir a Paris”. Foi a primeira vez que andou de avião, e também a primeira que passou a fronteira – “nem a Badajoz tinha ido”.
“Podia pensar que seria interessante, que valeria a pena, mas com que dinheiro podia fazer essa viagem? Tendo levado quase uma vida neste rame-rame do quotidiano, do trabalho, realmente não senti essa espécie de brotoeja que convida à viagem, ou que empurra à viagem. Há pessoas assim, eu não sou uma delas.”
Essa primeira viagem a Paris, como outras que se lhe seguiram, teve no escultor Lagoa Henriques um guia experiente e sabedor: “O que eu conheço da Europa devo-o a esses anos. Porque depois, embora tivesse regressado a alguns desses lugares, o tempo para mim era uma coisa muito semelhante ao de um jogador de futebol: viagem, hotel, estádio, hotel, viagem”.
Percorreu o mundo principalmente depois da viagem especial que fez à Suécia, em 1998, para receber o Prémio Nobel da Literatura. Tem pena de nunca ter ido ao Japão.
Ainda assim, sem vontade de viajante, Saramago tem boas memórias guardadas. Por exemplo, a subida a Machu Picchu, “uma das emoções, não sei se estéticas se outra coisa, da minha vida”. Ou ainda: “Na Viagem a Portugal, em Trás-os-Montes, ter passado uma pequena ponte de uma margem para a outra, e depois olhar para o outro lado. Não parece nada de extraordinário, mas a atmosfera, as plantas, o luar, as nuvens, o rio, aquilo de repente foi um choque”. E por falar em choque: “Choque, mas choque, aconteceu-me em Florença. É uma cidade inesgotável, nunca se acaba de ver Florença. Eu estava só e lembro-me de um sítio onde há um desses mercados de rua e uma igreja que nem acabada está. Como sabia que havia ali a biblioteca Laurenziana, do Lorenzo de Medici, fui lá. Nunca me aconteceu nada assim”.
E o que é que aconteceu? “O acesso à biblioteca, riquíssima, faz-se por um pequeno espaço que não tem nada de especial a não ser uma escada. O que conta é a escada. Nem sequer foi esculpida por Miguel Ângelo porque aquilo é trabalho de canteiro. Mas ele desenhou-a. Quando me enfrentei com ela – nunca me tinha acontecido tal coisa – tremi da cabeça aos pés. Vi muita coisa, os Uffizi, o [Palácio] Pitti, o Louvre, o Jeu de Paume, e creio que vi muito. Anos depois voltei lá e o milagre já não aconteceu, mas a grande emoção estética da minha vida não é um quadro do Rembrandt, do Van Gogh, ou do Velásquez, foi uma escada. Talvez não fosse o supra-sumo da escada mas era e é para mim o supra-sumo da arte.”
"José Saramago cerimónia Prémio Nobel/ Nobel Prize ceremony"
Viagens interiores
"Desçamos agora da escada de Florença para reencontrar o homem que insiste em nunca ter tido “o prazer da viagem”. E no entanto, vai buscá-lo a um passado bem antigo: “Sou incapaz de mostrar que estou contente, com esta cara que Deus me deu. A emoção da viagem, senti-a quando era garoto e apanhava, na estação do Rossio, normalmente sozinho, o comboio que me levava para férias à estação de Mato Miranda, onde estava ou a minha tia Levira, ou quase sempre a minha avó Josefa esperando-me. Isso sim, aquele comboio lento que nunca mais chegava, troca-troca, troca-troca, troca-troca. A expectativa, a noite que se mal dorme porque há uma excitação. E embora aquilo já não tivesse segredos para mim, vivia-o de cada vez com a emoção de quem sabia o que o esperava – chegar à Azinhaga, entrar na casa dos meus avós com o seu chão de barro e tirar os sapatos, que era a primeira coisa que eu fazia. Só voltava a calçá-los quando regressava, já com o pé um pouco maior. Isso sim. O sentido da viagem, ir andando e descobrindo, só o tive na Azinhaga”.
Em Novembro de 2008, Saramago emergiu de um longo período de doença com um livro surpreendente: A Viagem do Elefante. Novamente a viagem no título, desta vez para conduzir à Áustria o elefante Salomão, um presente do rei português D. João III para o primo da mulher, Dona Catarina. Haverá nesta caminhada sinais da viagem a Portugal dos anos 80?
“A parte portuguesa de A Viagem do Elefante é pura invenção. Estamos no século XVI. Então invento essa viagem sem nomear lugares, salvo Castelo Rodrigo, lá em cima. A Viagem do Elefante é um produto da imaginação, só da imaginação. De elefantes eu não sei nada e duvido mesmo que se possa saber qualquer coisa de jeito. É um animal simpático e portanto tratava-se de levá-lo, pô-lo nas mãos do arquiduque da Áustria, e fazer-se aquela viagem enorme até à Catalunha, e continuar a inventar tudo, porque eu nunca estive nos Alpes. Posso dar uma falsa ideia de grande viajante, mas sinceramente não sou.”
Regressar é preciso
Sabemos que a caminhada europeia do elefante Salomão não teve regresso, mas Saramago sabe que “sempre se regressa”, ele que tem dois portos de chegada: “Tenho dois sítios e é difícil dizer qual é o sítio mais sítio. Vim para Lanzarote com a Pilar em 1993, cheguei aqui com 70 anos, a enraizar-me. Não conhecia ninguém e depois isto foi crescendo de uma maneira que eu não podia sonhar”.
“Essa é outra viagem, a viagem das pessoas e das coisas no tempo. Fizemos esta casa, fizemos outra em Lisboa. Nunca tive casas, nunca tive bens de raiz, e agora tenho tudo, a começar por uma mulher extraordinária que foi a grande sorte da minha vida. E não é pela comodidade da pessoa que envelhece e que tem a seu lado alguém a quem quer, a quem ama e que sabe que é amado e querido por essa pessoa. Não é isso. Escrevi nos Cadernos de Lanzarote que se tivesse morrido com 63 anos, antes de conhecê-la, teria morrido muito mais velho do que sou agora, porque ela veio trazer-me nem sei dizer o quê, a felicidade, sim, mas a felicidade é uma palavra curta, veio trazer outra coisa, um sentido de vida novo. Mesmo assim isso não diz tudo.”
Foi logo no ano de 1993 – e “O ano de 1993” é o título de um livro de poemas que José publicou em 1975 – que Saramago chegou ao cimo da Montanha Branca, vizinha da casa onde vive com Pilar, em Tías, na ilha atlântica de Lanzarote: “Subi a Montanha Branca com 70 anos. Foi uma grande viagem e nem sequer premeditada. Saí de casa para dar um passeio e fui casualmente naquela direcção, não levava nenhuma intenção, e quando cheguei ao sopé da montanha olhei lá para cima e disse para comigo, vou subir um bocado. Comecei a subir, a subir, a subir… A montanha é uma colina, está a 600 metros do nível do mar, portanto ainda são 300 metros de um terreno resvaladiço, dava três passos em frente e recuava dois… enfim, cheguei lá acima”.
Por que foi uma emoção tão grande chegar ao topo? “Foi ver a ilha toda. Vê-se tudo, desde o vulcão no norte, que se chama La Corona, até à Playa Blanca, La Geria, o Parque Nacional de Tymanfaya, com os vulcões. Que coisa, que coisa! Chegar lá acima e ver aquele deslumbramento, com o mar de um lado e o mar do outro, costa e contracosta.”
E de todas as viagens pelo mundo, havia algum sítio onde pudesse ter ficado?
“Não, não. Como diziam os ingleses, a minha casa é o meu castelo. E a sensação de voltarmos a casa é única, seja esta, seja a casa de Lisboa. É aí que eu quero estar, com as minhas coisas, os meus objectos, os meus quadros, a minha música, as bugigangas que só têm importância e valor para mim.”
Por Ana Sousa Dias
"O LUGAR DOS LIVROS
A Biblioteca José Saramago em Lanzarote contém a maior parte dos volumes que José e Pilar foram juntando ao longo das suas vidas. As mãos mais curiosas podem espreitar dedicatórias bem pessoais em muitas primeiras páginas. Catalogados pela Universidade de Granada, os volumes estão arrumados por géneros, temas e nacionalidades. Uma estante ocupa com orgulho a parede: ali só estão livros escritos por mulheres. Este poiso de Lanzarote é temporário, uma vez que a biblioteca definitiva ficará instalada em Lisboa, na Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago.
PARA O BEM E PARA O MAL
Caim é o título mais recente de Saramago, que publicou romances, contos, poesia, crónicas, ensaios, conferências, teatro, diários e memórias. Já tinha feito uma incursão nos textos bíblicos, ao publicar, em 1991, o Evangelho Segundo Jesus Cristo, e questiona agora o deus do Antigo Testamento, num texto onde a ironia faz sobressair uma dura reflexão. O castigo divino faz de Caim um errante e Saramago vai conduzi-lo pelos episódios bíblicos como um homem imperfeito e observador, capaz de intervir no momento decisivo. Polémico, como muitos outros livros de Saramago, Caim incendiou a opinião pública da intelligentsia nacional."
Primeiro voo do avião José Saramago – TAP
A TAP Portugal baptizou em 24 Junho 2014 um Airbus A320 (matrícula CS-TNW) com o nome de José Saramago.
O seu primeiro voo teve como destino a cidade de Milão, partindo do aeroporto de Lisboa.
Fonte página da Fundação José Saramago
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