No dia em que é anunciada a compra do espólio, do ensaísta e filósofo Eduardo Lourenço, pela Biblioteca Nacional, recupero aqui, um texto de José Saramago, onde de forma graciosa, fala dos afectos que os unia e do apreço e estima, que por ele evidencia.
"Biblioteca Nacional adquire espólio do ensaísta Eduardo Lourenço"
Notícia, via Lusa e RTP sobre a aquisição do espólio, que pode ser consultada, aqui
"O espólio do ensaísta português Eduardo Lourenço, que inclui milhares de documentos, como manuscritos inéditos e correspondência, foi adquirido pela Biblioteca Nacional, revelou hoje a Secretaria de Estado da Cultura (SEC).
"Trata-se de um bem cultural fundamental para a investigação filosófica, literária, histórica e sociológica não só da obra de Eduardo Lourenço, mas do pensamento português dos séculos XX e XXI", afirma a tutela em comunicado, sem revelar o valor da compra.
O espólio inclui "uma grande quantidade de manuscritos do autor, alguns deles inéditos", desde finais dos anos 1940 até à atualidade, e "mais de 11.000 documentos referentes a correspondência" que Eduardo Lourenço manteve com figuras como Jorge de Sena, Vergílio Ferreira e Sophia de Mello Breyner Andresen.
O espólio passa a integrar o Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional e o seu acesso está limitado, por enquanto, aos investigadores que trabalham na publicação da obra completa do ensaísta pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Eduardo Lourenço de Faria, de 91 anos, ensaísta e crítico, estudou na Universidade de Coimbra, onde deu aulas até sair do país, na década de 1950, fixando-se desde então entre França e Portugal.
Prémio Camões (1996) e Prémio Pessoa (2011) - só para citar duas das várias distinções do autor - Eduardo Lourenço escreveu obras como "Heterodoxias", "Tempo e poesia", "O fascismo nunca existiu" e "O labirinto da saudade - Psicanálise mítica do destino português".
A par do plano editorial da Gulbenkian, a Gradiva tem vindo a publicar, desde 1999, a obra de Eduardo Lourenço, planeando para este ano seis títulos do autor, entre os quais "Do Brasil: Fascínio e miragem", com textos escritos entre 1945 e 2012.
Em 2014, o ensaísta foi condecorado pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
Este mês, o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, afirmou no Parlamento que o Estado tem tido capacidade financeira para adquirir espólios literários recorrendo a verbas do Fundo de Fomento Cultural.
No final do ano passado, o Estado adquiriu o espólio o escritor Almeida Garrett, da coleção Futscher Pereira.
Na Biblioteca Nacional estão também depositados, entre outros, os espólios dos escritores António Ramos Rosa, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Gomes Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues e de Fernando Namora, do compositor Joly Braga Santos, da compositora Constança Capdeville e do pensador Delfim Santos."
“O nosso grande problema, enquanto portugueses, neste fim de século, é integrar a realidade, a banal realidade europeia, com os seus imperativos de organização, de competitividade, de invenção. Sem perder um certo arcaísmo, um certo perfume de vida que se lembra ainda do seu passado rural, vida banhada da doce luz da Finisterra.”
em "A Nau de Ícaro, seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia", Lisboa, Gradiva, 1999
Eduardo Lourenço
Mais informação sobre o autor em:
http://www.eduardolourenco.com/index.html (site não oficial)
http://www.eduardolourenco.uevora.pt/ (projecto da Universidade de Évora)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Lourenço (via Wikipédia)
O texto de José Saramago, sobre Eduardo Lourenço, pode ser consultado, aqui
em http://caderno.josesaramago.org/5878.html"Eduardo Lourenço"
"Sou devedor contumaz de Eduardo Lourenço desde 1991, precisamente há dezassete anos. Trata-se de uma dívida um tanto singular porque, sendo natural que ele, como lesado, não a tivesse esquecido, já é menos habitual que eu, o lesante, ao contrário do que com frequência sucede em casos semelhantes, nunca a tenha negado. Porém, se é certo que jamais me fingi distraído da falta, há que dizer que ele também não consentiu que eu me deixasse enganar pelos seus silêncios tácticos, que de vez em quando interrompia para perguntar: “Então essas fotografias?” A minha resposta era sempre a mesma: “Ó diabo, tenho tido muito trabalho, mas o pior de tudo é que ainda não pude mandar fazer as cópias”. E ele, tão invariável como eu: “As fotografias são seis, tu ficas com três e dás-me as restantes”, “Isso nunca, era o que faltava, tens direito a todas”, respondia eu, hipocritamente magnânimo. Ora, é tempo de explicar que fotografias eram estas. Estávamos, ele e eu, em Bruxelas, na Europália, e andávamos por ali como quaisquer outros curiosos, de sala em sala, comentando as belezas e as riquezas expostas, e connosco ia o Augusto Cabrita, de máquina em riste, à procura do instantâneo imortal. Que pensou haver encontrado num momento em que Eduardo Lourenço e eu nos havíamos detido de costas para uma tapeçaria barroca sobre um tema desses históricos ou míticos, não sei bem. “Aí”, ordenou Cabrita com aquele ar feroz que têm os fotógrafos em situações de alto risco, como imagino que eles as consideram. Ainda hoje estou sem saber que diabinho me levou a não tomar a sério a solenidade do momento. Comecei por compor a gravata do Eduardo, depois inventei que os óculos dele não estavam bem ajustados e dediquei-me a pô-los no seu sítio, de onde nunca haviam saído. Começámos a rir-nos como dois garotos, ele e eu, enquanto o Augusto Cabrita aproveitava, com sucessivos disparos, a ocasião que lhe tinha sido oferecida de bandeja. Esta é a história das fotografias. Dias depois o Augusto Cabrita, que morreria passados dois anos, mandou-me as imagens tomadas, crendo, decerto, que elas ficariam em boas mãos. Boas eram, ou não de todo más, mas, como já deixei explicado, pouco diligentes.Tempos depois deu-me para escrever o romance Todos os Nomes, o qual, conforme pensei então e continuo a pensar hoje, não poderia ter melhor apresentador que o Eduardo. Assim lho fiz saber, e ele, bom rapaz, acedeu imediatamente. Chegou o dia, a sala maior do Hotel Altis a rebentar pelas costuras, e do Eduardo Lourenço nem novas nem mandadas. A preocupação respirava-se no ar carregado, algo deveria ter sucedido. Além disso, como toda a gente sabe, o grande ensaísta tem fama de despistado, podia ter-se equivocado de hotel. Tão despistado, tão despistado que, quando finalmente apareceu, anunciou, com a voz mais tranquila do mundo, que tinha perdido o discurso. Ouviu-se um “Ah” geral de consternação, que eu, por obra dos meus maus instintos, não acompanhei. Uma suspeita atroz me havia assaltado o espírito, a de que o Eduardo Lourenço decidira aproveitar a ocasião para se vingar do episódio das fotografias. Enganado estava. Com papéis ou sem eles, o homem foi brilhante como sempre. Pegava nas ideias, sopesava-as com o falso ar de quem estava a pensar noutra coisa, a umas deixava-as de lado para um segundo exame, a outras dispunha-as num tabuleiro invisível esperando que elas próprias encontrassem as conexões que as potenciariam, entre si e com alguma da segunda escolha, mais valiosa afinal do que havia parecido. O resultado final, se a imagem é permitida, foi um bloco de ouro puro.A minha dívida tinha aumentado, ultrapassara em tamanho o buraco de ozono. E os anos foram passando. Até que, há sempre um até que para nos pôr finalmente no bom caminho, como se o tempo, depois de muito esperar, tivesse perdido a paciência. Neste caso foi a leitura recente de um ensaio de Eduardo Lourenço, Do imemorial ou a dança do tempo, na revista “Portuguese Literary & Cultural Studies 7” da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Resumir essa extraordinária peça seria ofensivo. Limitar-me-ei a deixar constância de que as famosas cópias já se encontram finalmente em meu poder e de que o Eduardo em poucos dias as receberá. Com a maior amizade e a mais profunda admiração." (13 de Outubro de 2008)
em "O Caderno"
Caminho, 2.ª edição