"José Saramago e o Alentejo: Um livro “levantado do chão”
Entrevista por Ernesto Sampaio"
A edição pode ser consultada e descarregada gratuitamente aqui
em https://www.josesaramago.org/blimunda-92-fevereiro-de-2020/
Levantado do chão, assim se chama o último livro de José Saramago, recentemente lançado pela Editorial Caminho. «Do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira» — explica o autor, que também nos diz que «um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando o terminasse: Isto é o Alentejo». José Saramago, escritor, poeta, jornalista: aí o temos na nossa frente, simples, claro, frontal, para quem escrever é aproximar-se da vida, evocar-lhe as suas altas situações, e para quem a literatura é sempre conhecimento, transformação, libertação.
Diário de Lisboa — O seu livro baseia-se na história de vida de três gerações de uma família de trabalhadores rurais do Alentejo. Como nasceu essa ideia?
Se o 25 de Novembro não fosse o padrasto que é, eu diria que este livro tem no 25 de Novembro a sua paternidade. A situação em que então me achei, sem emprego nem esperança de o conseguir, pôs diante de mim a grande questão: que é que eu vou fazer? Claro que a exigência imediata era o estômago e a conservação do tecto. Deitei mão ao costumado recurso dos intelectuais desempregados: a tradução. Fique dito, de passagem, que até hoje já lá vão cerca de dez mil páginas traduzidas. Mas você falava do livro, perguntava como me veio a ideia... Se o pai é o 25 de Novembro, a mãe é o acaso. O meu primeiro movimento, isto no que toca a perspectivas de produção literária, tinha sido transportar-me para as terras ribatejanas onde nasci, levar a traduçãozinho em estaleiro (por sinal um volumoso tratado de psicologia) e tentar o livro campestre que eu andava a sentir necessidade de escrever. Motivos vários impediram a realização do projecto por aquelas bandas. Além disso, parecia-me errado ir cometer uma espécie de regresso ao ovo natal. Foi então que me ocorreu o contacto que estabelecera, em meados de 1975, com a UCP «Boa Esperança», de Lavre, por causa de uma entrega de livros para a biblioteca que eles andavam a organizar. Escrevi, perguntei se podia ir, como seria isso de comer e dormir, e se havia lugar onde trabalhar, um espaço para a máquina de escrever. Eles responderam: «Venha». E eu fui. Estive em Lavre, da primeira vez, dois meses, depois, por intervalos, umas tantas semanas mais, e quando de lá voltei trazia cerca de duas centenas de páginas com notas, casos, histórias, também alguma História, imagens e imaginações, episódios trágicos e burlescos, ou apenas do quotidiano banal, acontecimentos diversos, enfim, a safra que é sempre possível recolher quando nos pomos a perguntar e nos dispomos a ouvir, sobretudo se não há pressa. Andei por Lavre, Montemor-o-Novo, Escoural, por lugares de gente e descampados, passei dias inteiros ao ar livre, sozinho ou acompanhado de amigos, conversei com novos e velhos, sempre na mesma cisma: perguntar e ouvir.
Quando um alentejano se decide a falar ninguém o cala
Por fim, já nem fazia perguntas. Quando um alentejano decide falar, ninguém o cala. Além disso, também há alentejanos que escrevem. Não serão muitos? Eu tive a sorte de encontrar um. Você pode imaginar o que é estar em conversa com um velho rural de 70 anos, digo eu, dizes tu, e de repente ele abre ali uma gaveta, tira uns poucos cadernos de papel almaço, escritos em letra garrafal e firme, creia que até os erros de ortografia eram firmes: «Está aqui a história da minha vida.» Foi isto que me aconteceu. Levei para ao meu buraco a história de João Domingos Serra contada pelo próprio, li-a nessa mesma noite, a tremer de comoção e frio (era Março), e quando acabei tinha, finalmente, a trave mestra do que viria a ser o Levantado do Chão. Aquela vida verdadeira era como uma fiada de pedras postas a atravessar a corrente torrencial de dados em que já me ia submergindo. Por cima de tal podia agora circular a minha vontade. Mas a vida, se reparamos bem, só é o que vidas forem. A esta de João Serra juntaram-se outras, a do Machado, do Abelha, do Badalinho, do Catarro, do Cabecinha,da Mariana Amália, a de outro João, o João Basuga, meu amigo do coração, e tantos, tantos mais. Quem lhes quiser conhecer os nomes, falo dos que mais perto estiveram de mim, encontra-os na dedicatória do livro. também lá estão os nomes de dois mortos. Não há inconvenientes. Estes vivos e estes mortos fazem boa companhia uns aos outros. Enfim, se eu não tivesse, num dia daquele ardente Verão de 1975, levado livros a Lavre, não existiria este livro. Um espírito malicioso e facilmente hábil dirá que não há certeza de se ter ganho alguma coisa com isso. Ouso crer que não se perdeu.
Estão aí muitos livros por escrever
Pelo menos uma certeza eu ganhei: a de que estão aí muitos livros por escrever, de Norte a Sul, à espera. Eu fui a Lavre, concelho de Montemor-o-Novo, e escrevi um. Não inventei nada, claro está, ao viajar até ao Alentejo. O que eu fiz, outros o fizeram antes de mim, nesse e outros lugares. Honra lhes seja feita. O meu receio é que poucos estejam dispostos a fazê-lo agora, quando mais necessário é.
Levantado do chão fala de gente real, utiliza testemunhos vivos, mas não é propriamente jornalismo. É literatura de elevada expressão poética. Fala-me dos problemas formais que teve de enfrentar para transformar a vida, que é o suporta da sua narrativa, no objecto estético em que o livro acaba por se transformar.
Boa pergunta, já lhe disse que quando regressei de Lavre trazia comigo uma montanha de apontamentos, notas, registos vários, gravações, documentos. Bastaria arrumar um pouco, sistematizar um pouco, limpar o supérfluo, acrescentar o comentário, aliteratar onde fosse conveniente, afinar o tom. Porém, não foi assim. Quando decidi instalar-me em Lavre, não era essa a intenção que levava. O que eu queria era escrever um romance, não uma reportagem, por mais útil e exemplar que ela pudesse ser, como tantas que felizmente têm vindo a ser escritas, algumas delas excelentes materiais para futuras obras. Mas a decisão de escrever um romance também não era pacífica. Um romance, sim senhor, mas que romance? Modelos, se eu os quisesse tomar, não me faltavam, e ilustres. Muita gente escreveu sobre o Alentejo, alguns escreveram certo e bem. E ainda escrevem. Para mim, poderia ser fácil e fazer-me beneficiar de uma certa e bem humorada condescendência. Assentar os pés nas pegadas marcadas pelos colegas e já aprovadas pela critica, seguir o itinerário, deixar-me ir. Ficava a história contada, o livro rematado, a obrigação cumprida sem excessivos riscos. Também isso não quis fazer. Mas, se sabia claramente o que não queria, tive de esperar que viesse a mim o que fosse meu. Estive em Lavre em 1976, o livro aparece em 1980, quatro anos depois. É certo que entretanto concluí outro romance, escrevi um livro de contos e uma peça de teatro, mas essencialmente, o que eu estive foi à espera de que terminasse o trabalho de germinação que sabia estar a fazer-se. Posso garantir-lhe, com toda a simplicidade e sem disso me gabar, que não tive de resolver quaisquer problemas formais, no sentido que a palavra «resolver» contenha de esforço, tentativa, rectificação, ajuste, pesquisa. Limitei-me a ter paciência, a não forçar o tempo. O livro foi escrito, por assim dizer, em dois períodos: o primeiro de dois dias, para as quatro páginas iniciais; o segundo de alguns meses, para o resto. Entre esses dois períodos tão desiguais, decorreu muito tempo.
«Só poderia escrever o livro se o contasse»
Até que um dia compreendi (foi uma coisa súbita de que mal tenho memória) que só poderia escrever o livro se o contasse, isto é, transformando-me eu me narrador multiplicado, de fora de dentro, próximo e distanciado, grave e irónico, terno e brutal, ingénuo e experiente, um narrador que ao dizer a realidade, e para a dizer, fosse capaz de a inventar em cada momento. Percebi que isto só poderia ser feito se reconstituísse a oralidade na escrita, se fizesse da escrita discurso no sentido próprio, mas rejeitando sem piedade qualquer tentação de transcrição fonética, que é a pior das armadilhas. Sacrifiquei sem nenhum remorso o pitoresco, a cor local, o folclore. Com isto tudo, não tive de empurrar nenhuma porta, foi ela que se abriu quando me aproximei pelo caminho certo. A partir daí foi fácil. Diria que escrevi este livro com espírito liberto, com a espontaneidade do narrador que se abandona à imaginação e às arcas da memória para tornar diferente as histórias que ouviu, por saber, ou ser sua pessoal convicção, que a diferença é justamente o melhor que a história contém, ou virá a conter, se alguma vez mais vier a ser contada, por mim, por você, pelo leitor. Quer saber como eu me imagino? Imagino-me a contar este «Levantado do Chão» a um grupo de pessoas, lá no Alentejo, ou aqui em Lisboa, ou em qualquer outro lugar, a contar em voz alta, voltando atrás quando me apetecesse, metendo pelo meio coisas da sabedoria popular, ditados, alusões directas ou indirectas a casos marginais, questões de famílias, boas ou más vizinhanças, e se entre essas pessoas houver analfabetos, essa será a grande prova, é maior dever do narrador contar e bem claro. Amanhã, noutro lugar, contaria a mesma história, mas diferente, sempre diferente, outros ditos, outras voltas, outros caminhos. Haveria de ter sua graça experimentar, mas, não podendo ser, aí fica o livro em sua forma de livro e aparente invariabilidade.
Obra aberta
Aqui há anos falou-se muito em obra aberta.
Hoje vai-se dizendo o mesmo, mas com outro vocabulário. Ora, eu, que sou partidário da obra conclusa, no sentido inteiro levado ao extremo (mas existirá tal obra?), descubro-me hoje a reivindicar para este «Levantado do Chão» um estatuto de obra aberta. Aberta ao leitor e também constantemente aberta pelo leitor, solicitado pelo próprio discurso ou decurso do texto a introduzir nele a sua própria memoria e a sua própria imaginação. Tanto mais que eu o preveni logo no princípio: «Mas tudo isto pode ser contado doutra maneira». Aqui tem o que o autor pensa, não de problemas formais que não teve, mas de questões formais que crê serem suscitadas por este livro. Fico curioso de saber o que pensa a critica. E mais curioso ainda de saber o que pensam os leitores. Mas onde está a comunicação entre o escritor e o leitor?
DL — O que foi, é e será para si o Alentejo, o homem alentejano?
Do que o Alentejo foi, creio que o meu livro dará uma ideia. Do que ele é, também este livro saberá dizer alguma coisa. Por exemplo, a repressão violenta, que em nada se distingue dos tempo do fascismo: exprime o mesmo ódio ao trabalhador agrícola. Quanto ao que o Alentejo será, não tenho dúvidas. Será uma terra de mulheres e de homens donos da sua vida. Quando? Isso não se dizer. Mas sei que gostaria de ainda poder ver no nosso País a fraternidade de trabalhadores que encontrei junto dos meus amigos do Alentejo. O que ali está em gestação é, em sentido literal, um homem português novo.
E a reacção sabe-o. Sabe e teme. Por isso é que são os insultos, os vexames, as agressões e as mortes. É o mundo velho a querer estrangular o mundo novo. No meio de tudo isto, que vem fazer o meu livro?
Hoje é um testemunho. Amanhã, faço votos por que seja um simples artefacto arqueológico, fora de uso, ou, quando muito, e não será pouco, um registo para a memória colectiva. Há-de ser possível dizer um dia: «Pensarmos nós que a vida no Alentejo foi assim...». É claro que não posso deixar de exprimir, um outro voto, mais egoísta: que mesmo nessa altura, graças a algum valor literário que hoje tenha e então conserve, ainda o Levantado do Chão seja lido.
Ilustrações Manuel Ribeiro de Paiva
(algumas das que constam na publicação)