Link da edição #74 da Revista Blimunda (Julho de 2018)
Páginas 61 a 70
"Em 1998, meses antes de receber o Prémio Nobel, José Saramago concedeu ao jornal italiano Liberazione uma extensa entrevista a propósito do romance Todos os Nomes, que acabara de ser publicado em Itália. A Blimunda publica as respostas que o escritor enviou ao jornalista Marco Romani, por fax, no dia 30 de agosto.
As perguntas, embora não estejam reproduzidas por José Saramago, deduzem-se da leitura das respostas enviadas.
1) A vida do Sr. José funcionário duma
conservatória de Registo Civil nada tem que ver
com a minha. Nunca vivi só, estou casado pela
terceira vez, tenho uma filha e dois netos. Também
não assaltei escolas nem falsifiquei documentos. O
facto de o Sr. José ter esse nome resulta apenas do
facto de eu ter pretendido dar-lhe um nome banal
que estivesse de acordo com a insignificância do
personagem. Não encontrei nome mais banal que
o meu próprio...
Não é este o primeiro romance em que os
personagens não têm nome. Já em Ensaio
Sobre a Cegueira isso sucedia. Nesse caso foi
a exepcionalidade da situação criada – uma
cidade de cegos, um mundo de cegos – que me
fez compreender como são frágeis os nomes
que usamos, como facilmente deixam de ter
significado quando o indivíduo se dissolve no
grupo, no bando, na multidão. Nos campos de
concentração não se tatuavam nomes, mas
números, e as sociedades em que hoje vivemos
parecem mais interessadas em conhecer o número
do nosso cartão de crédito do que em saber
como nos chamamos. O caso de Todos os Nomes
é diferente. Pessoas diferentes têm o mesmo
nome, dizer o nome não é suficiente para «dizer»
a pessoa. O Sr. José sabe como se chama a mulher
desconhecida, mas isso é o mesmo que nada saber.
2) Não afirmo que procurar uma coisa seja o «único» significado que ela tem, mas, tratando-se do «outro», o caminho que nos deveria levar a ele não tem ponto de chegada. Iremos aproximando-nos cada vez mais, mas nunca poderemos dizer: «Conheço-te». O Sr. José tem consciência dessa impossibilidade (uma consciência difusa, mas que está presente em todos os seus actos), por isso semeia de obstáculos o seu caminho. Vencer esses obstáculos é mais importante para ele do que
encontrar o objecto da busca.
3) Ponhamo-nos no lugar do Sr. José, ou talvez não seja preciso tanto. Na vida de cada um de nós houve pelo menos um momento em que tivemos de «inventar» uma razão para mudar a vida, uma razão maior que nós, uma razão capaz de transportar-nos aonde não nos levaria a rotina do quotidiano. O que o Sr. José fez foi «inventar» uma ilha desconhecida e lançar-se ao mar à procura de si mesmo, que é o que realmente fazemos quando procuramos o «outro»...
4) A ordem hierárquica dos funcionários
da Conservatória pode ser interpretada com a
ordem de uma História em que todos os factos,
datas e nomes tivessem os seus lugares marcados
e fixados de uma vez para sempre. O Sr. José
irá perturbar esta fixidez, primeiro procurando
alguém a quem não deveria procurar e sem para
tal estar autorizado, depois, pouco a pouco,
fazendo desaparecer a linha que separa a morte
da vida, ou a vida da morte, segundo se prefira.
O Sr. José, se se me permite a ousadia, é uma
espécie de Orfeu...
5) Da colecção de notícias do chefe da Conservatória não chegamos a saber nada. Sabemos apenas que ele tem conhecimento de tudo o que se vai passando. Aproxima-o do Sr. José precisamente o carácter «subversivo» das acções deste, e essa aproximação torna-se em cumplicidade quando o chefe compreende que a humanidade autêntica é o conjunto dos mortos e dos vivos, confundidos uns com os outros no ontem e no hoje, inseparáveis no agora e no sempre.
6) Na Conservatória estão os papéis da vida e da morte de todos os seres humanos nascidos, no Cemitério estão os restos dos que já não pertencem à vida mas pertencem invisivelmente à História. Assim, Cemitério e Conservatória são complementares, nenhum deles poderia existir sem o outro. No fundo são uma coisa só.
7) Penso que comentemos um erro grave quando esquecemos os nossos mortos, crendo que essa é a maneira de negar a morte. Também tentamos negar a velhice quando retiramos os velhos da vida afectiva e social. Nesse momento começamos a esquecê-los. Como em Todos os Nomes está escrito, só o esquecimento é a morte definitiva. Aquilo que não foi esquecido continua vive e presente.
8) Essa declaração é feita por um dos personagens do romance, e não por mim... Mas é verdade que a metáfora nos aparece como uma iluminação das coisas diferente, como uma luz rasante que iluminasse o releve de uma pintura. A metáfora é um pressentimento do saber total. Quanto ao dever e ao fim da literatura, recordemos que os seus fins e os seus deveres foram diversos e nem sempre concordantes ao longo do tempo. Como não foram iguais e muitas vezes foram opostos os deveres e os fins das sociedades humanas, de que a literatura é, ao mesmo tempo, reflexo e reflector.
9) O fim do milénio é um mero acidente de calendário. O que está a acabar, de facto, é uma civilização. Paulo Valéry não imaginava a que ponto tinha razão quando escreveu: «Nós, civilização, sabemos agora que somos mortais.» Já antes o deveríamos ter sabido se fôssemos capazes de aprender com o passado. O tipo humano que começou a definir-se na época do Iluminismo está a extinguir-se. Não sei o que virá depois dele. Penso, contudo, que não haveria lugar para mim nos tempos que se aproximam...
10) A pergunta não deveria ser «que é que existe ainda da esquerda?», mas sim «que foi o que abandonámos da esquerda?». Nesse caso direi que muitos (muitíssimo) abandonaram o que chamo um «estado de espírito de esquerda» para passar-se, fosse por ambição, oportunismo, ou cobardia moral, ao outro lado, mesmo quando fingem contestá-lo. Contra todas as aparências, a questão central do nosso tempo não é a globalização da economia, mas a ética. Espero que a esquerda (a que ainda resta) o descubra a tempo...
11) A mesma Europa que gastou séculos e séculos para conseguir formar cidadãos, só precisou de vinte anos para transformá-los em clientes. Sócrates tornaria a pedir o vaso de cicuta...
12) A cultura «europeia» não existe como tal. E se alguma vez vier a existir, temo que não seja «europeia» no sentido de uma síntese mais ou menos lograda das suas diversas culturas nacionais, mas sim o resultado do predomínio de uma dessas culturas sobre as outras. A globalização, seja ela mundial ou apenas europeia, é um totalitarismo."