"Eduardo Prado Coelho pediu-me um texto para meter no suplemento que o Público vai publicar a propósito da reunião, no fim deste mês, em Lisboa, do Parlamento Internacional de Escritores. O arrazoado expedido foi este:
«Imaginemos que alguém que não é escritor nem aspira a sê-lo faz a seguinte pergunta: "Para que vai servir o Parlamento Internacional de Escritores?" E insiste: "Para que tem servido o PEN Club Internacional (que é, por assim dizer, um parlamento mais antigo)?" Finalmente: "E os escritores, servem para quê?"
«A última pergunta, provavelmente, é a que terá resposta mais fácil: os escritores servem para escrever. Escrevam bem ou escrevam mal, escrevam contra ou a favor, escrevam sós ou mal acompanhados - são escritores, e basta. O tempo vindouro, como é ideia feita, joeirará a obra produzida (embora não se entenda por que bulas há-de ter sempre o futuro melhor critério que o presente e o presente sempre melhor gosto que o passado, sobretudo se pensamos que todo o presente foi futuro de um passado e passado de um futuro). De escritores, como pessoas, tenho dito, por enquanto. Mas a eles voltarei. «As associações servem para fazer de conta que os escritores estão juntos. Não juntos por razões estéticas, ou políticas, ou ideológicas, ou editoriais. Simplesmente, juntos. A sua mais avançada eficácia prática seria de tipo corporativo, como suponho que sucede com os médicos e advogados.
As associações de escritores, se não são correias de transmissão de poderes estabelecidos (por favor, falo das associações em geral, não da portuguesa em particular), vivem do que têm, e o que têm é quase nada. Delas se pode dizer que, como "ordens", não são ricas, e como "sindicatos", não são reconhecidas. As associações não têm força para defender os interesses materiais dos escritores e nem sempre estão atentas à defesa dos seus direitos morais. Ou então, quantas vezes, inoperantes elas e inoperantes eles no âmbito nacional, buscam modos de reaprumar a consciência cívica e a responsabilidade intelectual nas organizações internacionais correspondentes, diluindo assim numa agitação cosmopolita mais ou menos efectiva a sua incapacidade local. Não creio que seja ofensa dizer que no Pen Club Internacional vão desaguar muitas destas frustrações nacionais, tanto as de responsabilidade própria como as que são consequência de condições externas adversas (dos efeitos de tais condições está absolvido, por falta de culpa, o PEN Club Português). Conclusão de tudo quanto ficou dito antes: não faltam associações, mas os escritores estão isolados. «E agora chega aí o Parlamento Internacional de Escritores. (Que não teríamos em Lisboa se Lisboa não fosse, este ano, Capital Europeia da Cultura. Lá que o convite foi uma boa inspiração, não há que negar. Resta agora ver que outras iniciativas virá a tomar Lisboa quando o dia 31 de Dezembro puser termo ao seu febrão cultural.) Chega aí o Parlamento Internacional de Escritores, graças ao que nos vamos reunir, nós e os de fora. Pelo que se sabe, pretende-se "criar uma estrutura de intervenção e reflexão sobre o lugar da literatura e do pensamento num mundo ameaçado quotidianamente pela intolerância, opressão ou violência dos dogmatismos e fundamentalismos actuais", o que parece equivaler, mais ou menos, a uma ONU toda feita de intelectuais. (Atenção, a ironia é só aparente, eu próprio estou envolvido nisto desde o princípio.) «Ora, se se trata realmente de uma nova ONU, é prudente começar, desde já, a pensar no grau de eficácia que iremos ter, pois a lição da ONU propriamente dita aí está para tirar-nos as primeiras ilusões. Qualquer um sabe que a oportunidade e a intensidade de uma mostra de autoridade da ONU (a outra) depende exclusivamente do querer político de uns quantos países, não de todos. Aonde eu quero chegar é simplesmente à demonstração de uma evidência: a de que o poder real-mente interventivo do Parlamento Internacional de Escritores estará na razão directa do grau de intervenção cívica dos escritores como cidadãos: quanto mais eles intervierem, "quotidianamente", na vida social (e não apenas literária, e não apenas artística) do seu país e do mundo, mais probabilidades terá o Parlamento de fazer ouvir a sua voz e talvez ajudar a mudar os perigosos caminhos que, parece que às cegas, estamos percorrendo. «Como um dia escrevi, o melhor parlamento não é aquele onde se fala, mas aquele onde se ouve. O Par-lamento Internacional de Escritores terá de abrir-se aos gritos de dor e de protesto do mundo, tal como está obrigado a atender, já que essa é a sua primeira vocação, às dores e protestos de quem escreve. Não é a literatura que está doente, é a sociedade.»
(José Saramago e a jornalista Betty Milan)
O presente texto pode ser consultado e lido, na página da jornalista Betty Milan, aqui
em http://www.bettymilan.com.br/artigos/publicados/90-53-parlamento.htm
"O Parlamento Internacional dos Escritores"
de Betty Milan
(Este texto integra o livro A força da palavra e reúne os artigos "A multinacional crítica", Folha de S. Paulo, 9/10/1994; "Lisboa recebe o Parlamento dos Escritores", Folha de S. Paulo, 25/09/1994, e "Parlamento de escritores", Folha de S. Paulo, 25/12/1993)
"Boa parte das entrevistas aqui reunidas foi realizada no período em que surgiu e se estabeleceu o Parlamento Internacional dos Escritores (PIE). A instituição, criada em 1993, resultou da transformação de uma tradicional reunião internacional de escritores organizada por Christian Salmon na cidade francesa de Estrasburgo, o Carrefour de la Littérature (“Confluência da Literatura”), em uma associação destinada a defender a liberdade de expressão e também a garantir a segurança física de escritores em perigo de vida. Era a reação à fatwah, a condenação à morte, lançada contra o anglo-indiano Salmann Rushdie (1989) e ao chocante assassinato de Tahar Djaout na Argélia (1993). Sob a presidência do próprio Rushdie (1994-1997) inicialmente e depois do nigeriano Wole Soyinka (1997-2000) – o primeiro Prêmio Nobel da África negra – e do americano Russel Banks (2000-2003), a organização logo instituiu cidades-refúgios, dispostas a abrigar e proteger autores perseguidos em seus países, e desenvolveu pesquisas sobre as formas de censura. Foram criados dois órgãos de comunicação e difusão global: a revista Autodafé, publicada em oito línguas simultaneamente, e o site homônimo, para pôr em circulação as obras censuradas.
Em 1994, a reunião aconteceu em Lisboa, onde cobri o encontro como enviada especial do jornal Folha de S. Paulo. Na ocasião, entrevistei vários escritores sobre a importância do organismo que os congregava. Daí a inclusão, em anexo, dos artigos publicados no jornal sobre o Parlamento Internacional dos Escritores e sua reunião em Portugal.
Em 2003, no encontro de dez anos de seus membros, a organização foi autodissolvida. Em 2005, o PIE voltou a manifestar-se em favor da libertação da jornalista francesa Florence Aubenas, sequestrada em missão no Iraque. Desde então, Christian Salmon, ex-secretário-geral e depositário da documentação do PIE, faz manifestações pontuais com base na ideia fundadora da organização.
1. Em 1989, Salman Rushdie, já consagrado como escritor, publica Os versos satânicos. Sob o pretexto de que ele blasfemou contra o Islã, o aiatolá Khomeini o condena à morte. Quem leu o romance sabe que Rushdie trata a modernidade ocidental com o maior ceticismo e até mostra como os textos sagrados do Islã são aviltados pela televisão e pela publicidade.
Isso não o inocentou diante do espírito teocrático, para o qual abordar os textos sagrados num romance é pior do que qualquer ataque direto, precisamente porque, sendo contrário à afirmação de uma verdade única, o romance não permite àquele espírito se defender.
O caso do autor de Os versos satânicos evidencia que a arte do romance pode estar ameaçada, porque o direito à ambiguidade e ao enigma está em perigo.
Depois da condenação de Rushdie, que passou a viver na clandestinidade, em junho de 1993, vários escritores são assassinados na Argélia. Face a esses crimes, um grupo de cinquenta escritores e intelectuais europeus e americanos, apoiando-se numa ideia do sociólogo francês Pierre Bourdieu, propõe a fundação de um Parlamento Internacional dos Escritores.
O apelo é enviado a mais de duzentos escritores do mundo inteiro e aceito unanimemente.
Reivindicando a autonomia da literatura em relação aos diferentes poderes e insistindo na necessidade de uma estrutura capaz de organizar um movimento de solidariedade internacional, o grupo funda, ainda em novembro de 1993, o Parlamento Internacional dos Escritores.
O trabalho do Parlamento exige instâncias de deliberação e de execução. Isso resulta na criação de um Conselho, presidido por Salman Rushdie e composto por Adonis (poeta libanês), Breyten Breytenbach (escritor sul-africano), Carlos Fuentes (escritor mexicano), Édouard Glissant (escritor martinicano), Jacques Derrida (filósofo francês), Pierre Bourdieu (sociólogo francês) e Toni Morrison (escritora americana).
Salman Rushdie redige então uma Declaração de Independência, a carta de princípios do Parlamento:
Os escritores são os cidadãos de muitos países – o país limitado e ladeado pelas fronteiras da realidade observável e da vida cotidiana, o reino infinito da imaginação, a terra semiperdida da memória, as federações do coração simultaneamente incandescentes e geladas, os estados unidos do espírito (calmos e turbulentos, largos e estreitos, regulados e desregulados), as nações celestes e infernais do desejo e, talvez a mais importante das nossas moradas, a república sem entraves da língua.
São esses países que o nosso Parlamento dos Escritores pode, sinceramente, e com tanta humildade quanto orgulho, pretender representar. Em conjunto, eles englobam um território bem maior do que o jamais governado por qualquer potência terrestre; no entanto, as suas defesas contra esse poder podem parecer muito fracas.
A arte da literatura exige, como condição essencial, que o escritor possa circular entre aqueles numerosos países como bem entender, sem necesssidade de passaporte ou visto, fazendo o que quiser com eles e consigo mesmo. Nós somos mineiros, ourives, homens sinceros e mentirosos, bufões e chefes, mestiços e bastardos, pais e amantes, arquitetos e demolidores. O espírito criador, por natureza, não tem limites nem fronteiras, rejeita a autoridade dos censores e dos tabus. É por essa razão que ele é frequentemente tratado como inimigo por potentados fortes ou insignificantes, os quais atacam a arte por construir imagens do mundo que ferem ou sabotam as suas próprias representações, mais simples e menos francas.
No entanto, não é a arte que é fraca, os artistas é que são vulneráveis. A poesia de Ovídio sobreviveu; a vida de Ovídio foi miserável por causa dos poderosos. A poesia de Mandelstamm continua viva; o poeta foi assassinado pelo tirano que ele ousou nomear. Hoje, no mundo inteiro, a literatura continua a se opor à tirania – não de maneira polêmica, mas negando-lhe a autoridade, trilhando o seu próprio caminho, declarando a sua independência. O melhor da literatura ficará, mas nós não podemos esperar do futuro que ele a libere das cadeias da censura. Muitos autores perseguidos também sobreviverão, de uma ou de outra maneira, mas nós não podemos esperar em silêncio o fim de sua perseguição.
O nosso Parlamento dos Escritores existe para lutar pelos escritores oprimidos e contra todos os que os perseguem – a eles e a suas obras – e para renovar incessantemente a declaração de independência, sem a qual a escrita é impossível; e não somente a escrita, mas o sonho; e não somente o sonho, mas o pensamento; e não somente o pensamento, mas a própria liberdade.
Os membros do Parlamento Internacional dos Escritores têm como princípios de sua ação a independência em relação aos poderes políticos, econômicos, midiáticos e de todas as ortodoxias; o internacionalismo fundado no conhecimento e no reconhecimento da diversidade das tradições históricas; a dedicação às ações universais, concebidas e decididas em comum.
Os objetivos do Parlamento devem ser determinados por todos os seus membros. Face à multiplicação dos atentados à liberdade de criação, ele visa intensificar a consciência dos criadores e a defesa dos interesses comuns; proteger as línguas e as culturas minoritárias ou oprimidas (ensino, acesso à publicação etc.), a liberdade real de expressão (contra a censura), os instrumentos de produção e difusão (edição, revistas, política de tradução) e todas as instituições direta ou indiretamente ligadas aos produtores culturais e às suas condições de trabalho.
Para romper o isolamento dos escritores, o Parlamento se vale de uma rede-fax internacional, que funciona entre os membros e também pode convocar rapidamente conferências de imprensa e manter tribunas livres nos jornais do mundo inteiro.
Através de uma rede de cidades-refúgios, solidariza-se com os escritores ameaçados nos seus países ou condenados ao exílio.
2. Tendo em vista a discussão dos princípios, objetivos, formas de ação e organização, o Parlamento Internacional dos Escritores se reúnede 28 a 30 de setembro de 1994 em Lisboa. Entre os participantes estão Édouard Glissant, Eduardo Lourenço, Hélène Cixous, Jacques Derrida, Pierre Bourdieu e Toni Morrison.
A reunião ocorre na Fundação Gulbenkian, sem a presença esperada do Prêmio Nobel de Literatura de 1986, Wole Soyinka, nigeriano.
Apesar das pressões exercidas pelos presidentes de França e de Portugal, o governo da Nigéria se recusa a dar um passaporte para o escritor, cuja ausência no Parlamento é mais uma prova da necessidade deste.
A seguinte mensagem é enviada por Soyinka aos colegas reunidos em Lisboa: “Devemos continuar a luta contra os atentados à liberdade de expressão. O meu país, dirigido por uma ditadura militar que usurpou o poder, atravessa uma situação difícil. Entristece-me não estar com vocês e eu agradeço a solidariedade... Queiram transmitir a minha simpatia a Taslima Nasreen, cuja luta eu apoio inteiramente”.
Protegida por forte esquema de segurança, Taslima Nasreen, condenada à morte pelos fundamentalistas de Bangladesh, comparece ao Parlamento no segundo dia de reunião e faz um depoimento comovente. “Comparada aos grandes escritores, eu não sou ninguém. Só o que posso dizer é que sou diferente. Sou inteiramente eu mesma, uma viajante solitária... O adjetivo 'burra' é aplicado às mulheres de Bangladesh, independentemente da inteligência e da cultura que tenham, e eu resolvi falar pelas 'burras'... Na verdade, eu hoje sou um pretexto para que os fundamentalistas continuem a fazer das mulheres do meu país cidadãs de segunda categoria... Não sei o que a minha poesia vale, mas sei que as 'burras' do meu país sabem que eu escrevo para elas.”
Salman Rushdie, presidente do Parlamento, alega uma razão literária para não comparecer: a escrita de um novo livro. Conclui sua mensagem lembrando que os colegas reunidos em Lisboa não serão julgados pelas suas palavras, e sim por seus atos.
O Parlamento se encerra com um protesto oficial contra o governo nigeriano e uma série de resoluções.
Primeiramente, considerando que os povos de Ruanda são vítimas do crime de genocídio – no sentido expresso pela Convenção da ONU de 1948 –, exigir o estabelecimento imediato dos mecanismos jurídicos necessários ao julgamento dos autores desses crimes contra a humanidade.
Em segundo lugar, tudo fazer para que os intelectuais argelinos perseguidos sejam recebidos nas universidades e nas instituições de ensino dos países democráticos.
Em terceiro, enviar uma missão ao Timor-Leste para saber qual a situação dos intelectuais no país.
Finalmente, ampliar a rede de cidades-refúgios de que já fazem parte Amsterdã (Holanda), Berlim (Alemanha), Estrasburgo (França) e Helsinki (Finlândia).
3. O único Parlamento ao qual o presidente não comparece alegando razões estritamente literárias é o dos escritores. Mas o Parlamento Internacional dos Escritoresnão é único apenas porque a escrita justifica a ausência. Também o é porque o presidente, Salman Rushdie, pôde dizer, na sua mensagem, que os membros, todos escritores, serão julgados pelas suas iniciativas, e que talvez seja salutar não serem julgados pelas palavras e, sim, pelos atos.
A unicidade daquele Parlamento, que se forma em nome da liberdade literária e contra o dogmatismo religioso ou ideológico, decorre do fato de que o paradoxo pode vigorar e a seriedade não exclui o riso, que é próprio do homem, como dizia Rabelais. A mensagem de Rushdie serve para situar o Parlamento no campo a que pertence – o da literatura – e justificar a existência de um “contrapoder” ou uma “multinacional crítica”, conforme definição do Parlamento por Pierre Bourdieu.
Trata-se de um contrapoder necessário num tempo em que a palavra “liberdade” se tornou um perigo e o escritor precisa se engajar para não ser vítima da tirania dos mestres do silêncio.
Apesar de um incidente que poderia ter sido evitado com a imprensa – injustamente afastada da assembleia no dia em que Taslima Nasreen comparece –, o encontro é um sucesso, porque, entre as suas resoluções, está a de fazer a ONU reconhecer que a palavra “genocídio”deve ser aplicada a Ruanda. Tal reconhecimento não apenas tornará obrigatório o julgamento dos responsáveis, como ainda imprescritíveis os crimes cometidos. Um sucesso, porque os escritores agiram como escritores, intervieram de modo eficaz na realidade, valendo-se da virulência das palavras.
Para saber o que pensavam os parlamentares reunidos em Lisboa sobre a contribuição possível do Parlamento e a questão da censura nos respectivos países, entrevistei vários membros presentes: Eduardo Lourenço, autor de O labirinto da saudade – Prêmio Europeu do Ensaio em 1988 —; o romancista José Saramago; Hélène Cixous, ensaísta e ficcionista, autora de A hora de Clarice Lispector; o filósofo Jacques Derrida; Édouard Glissant, poeta martinicano; Assia Djebar, romancista argelina exilada na França; Adonis, poeta libanês; Bei Dao, a grande voz da dissidência literária chinesa, exilado nos Estados Unidos. Segue o texto da entrevista.
BM: Qual pode ser, na sua opinião, a maior contribuição do Parlamento Internacional dos Escritores?
EDUARDO LOURENÇO: Não se deve esperar uma intervenção que tenha efeitos imediatos, como a dos políticos. Os escritores aqui reunidos pretendem alertar a comunidade internacional sobre os ataques sofridos pela liberdade de pensar e de escrever em vários países do mundo. Os exemplos mais célebres e trágicos são os de Rushdie e Nasreen. O nosso protesto é de ordem moral, temos a obrigação de defender uma das grandes tradições da nossa civilização, que é a da liberdade de expressão.
JOSÉ SARAMAGO: A contribuição vai depender do eco que o Parlamento possa ter na opinião pública. Podemos dizer coisas importantes, tomar grandes decisões, mas, se não houver repercussão... Tudo depende da capacidade que o Parlamento tiver de transmitir as suas ideias à imprensa, ao rádio e à televisão. Não sei se os jornalistas estão conscientes da grande responsabilidade que têm.
HÉLÈNE CIXOUS: O simples fato de conseguir reunir escritores em torno do tema da defesa da liberdade é extraordinário e já é uma contribuição. Isso nunca havia sido feito. Os grandes escritores, que vivem em países não-democráticos, são todos defensores da liberdade de pensamento e de expressão. O fato de o governo nigeriano ter impedido Wole Soyinka, Prêmio Nobel de Literatura, de vir a este Parlamento é um indício da importância do escritor na sociedade contemporânea. Mandelstamm, um dos grandes poetas russos, que foi deportado em 1938 e morreu num campo de concentração, dizia que o poeta é uma das pessoas mais importantes do mundo, porque pode ser preso por causa de um poema.
JACQUES DERRIDA: Contribuição? Já protestamos contra o que o governo nigeriano fez a Wole Soyinka. Ontem, escutamos Taslima Nasreen. Amanhã, vamos anunciar um certo número de resoluções e, entre as medidas concretas, o prosseguimento da política de cidades-refúgios. Daqui por diante, pretendemos informar à imprensa sobre um grande número de perseguições a intelectuais, de modo a poder agir sobre os Estados. Queremos nos organizar para descentralizar o Parlamento e ter reuniões em vários lugares do mundo. Ademais, vamos refletir sobre o que está acontecendo com a democracia, com os direitos do homem... Sem a reflexão filosófica, a nossa ação poderá se tornar repetitiva.
ÉDOUARD GLISSANT: A maior contribuição do Parlamento é a sua natureza, o fato de ser verdadeiramente internacional, e não apenas uma emanação das ideias europeias. Acontece que ele nasceu na França, depois do encontro do Carrefour des Littératures de Estrasburgo... O Parlamento deve corresponder à situação real do mundo, que é o objeto mais importante da literatura. O que se passa hoje, essa espécie de mistura extraordinária das culturas, muda as mentalidades. É preciso que tenhamos consciência de que cada comunidade deve preservar sua identidade, não deve se perder numa espécie de magma universal, mas tampouco se fechar sobre si mesma.
ASSIA DJEBAR: No quadro do Parlamento, já existe uma rede de cidades-refúgios, o que é uma contribuição. Nós, aqui, vamos escutar escritores que vêm de países onde há perseguições e depois, a partir de informações confiáveis, discutiremos o que fazer. Temos que ir em direção a coisas mais concretas.
ADONIS: O que faz a identidade de uma cultura é a criação. Se os criadores são oprimidos, a cultura e o povo são oprimidos. A contribuição do Parlamento é defender a liberdade de criação.
BEI DAO: A maior contribuição é a reunião de escritores do mundo inteiro, o encontro, independentemente do país de origem, da língua, da religião.
BM: Que temas poderiam implicar censura se fossem abordados no seu país?
EDUARDO LOURENÇO: Não temos aqui, em Portugal, conflitos de ordem religiosa, ética ou biológica suficientemente dramáticos para que a censura se exerça. Mas, no passado, já houve até caso de escritor condenado à morte. Durante a Inquisição, o nosso grande autor dramático, o Judeu, brasileiro de origem, acabou na fogueira. Durante a ditadura de Salazar, a criação esteve submetida ao olhar vigilante da censura.
JOSÉ SARAMAGO: O único caso que eu conheço de perto é o meu. O evangelho segundo Jesus Cristo havia sido selecionado para um prêmio europeu, mas o governo considerou que o meu livro ofendia o povo português nas suas crenças, na sua religião. Isso é completamente idiota, claro.
HÉLÈNE CIXOUS: Existe na França uma censura infinita no que diz respeito às mulheres. A misoginia está sempre presente. Todas as mulheres que escrevem sabem disso. São barradas nos jornais, malrecebidas. No que diz respeito ao lugar da mulher na nação, a França se encontra em décimo terceiro lugar e só há 5% de mulheres na universidade.
JACQUES DERRIDA: Na França, não existe censura explícita. A censura é mais sutil. O escritor corre o risco de não poder publicar, de não publicar na editora em que desejaria estar. Existem barreiras editoriais, grupos de pressão poderosos.
ÉDOUARD GLISSANT: A situação nas Antilhas francófonas é muito particular. Diria que não se trata de censura, porém de autocensura. A assimilação dos modos de vida franceses é tão profunda que o aparelho de Estado francês não precisa censurar.
ASSIA DJEBAR: Atualmente, a violência é tal na Argélia que qualquer intelectual, mesmo que não tenha se engajado no combate político, está ameaçado de uma ou de outra maneira. O que determina a censura não é o tema. Você é julgado pela língua na qual se exprime. Os que nos ameaçam são os que querem uma unicidade da língua. Eu posso ser perseguida só porque escrevo em francês; outro, por escrever em berbere; e, mesmo o que escreve em árabe, mas o faz no árabe do povo, também pode ser objeto da violência. Só está livre o que usa o árabe acadêmico. É um estado de pré-fascismo. O argelino Youssef Sebti, que escrevia em francês e no árabe da cultura popular, foi barbaramente assassinado.
ADONIS: A censura não é causada pelo tema. Na verdade, podemos abordar qualquer tema. O que conta é o como, como o tema é abordado.
BEI DAO: Na China, só é censurado o que possa comprometer o governo ou o partido. No mais, tudo pode ser dito. São as questões de mercado que tornam a vida do escritor particularmente difícil na China hoje.