O presente trabalho pode ser consultado e acompanhado aqui
"Saramago: a personagem como mestre" do Professor Carlos Reis
publicado no seu blog "Figuras da Ficção" (04/04/2020)
"O “material socialmente tido por histórico” a que alude o narrador d’A viagem do elefante projeta-se sobretudo em personagens – e José Saramago, com licença pela banalidade da afirmação, foi um grande criador de personagens. Menos evidente, mas também irrefutável: no universo ficcional saramaguiano convivem personagens de natureza, de configuração e de condição muito diversas. Na multidão de figuras que povoam aquele universo distingo, então, figuras provindas da História, outras com origem mítico-bíblica, personagens sem referência extraficcional conhecida (ou nativas na ficção), animais diversos (sobretudo cães) e mesmo, pelo menos, uma personagem alegórica stricto sensu (a morte n’As intermitências da morte).
Foto: Pedro Soares
Inevitavelmente, José Saramago problematizou a personagem, a sua génese e a sua relação com o romancista que as criou e com alguns dos narradores que falam delas. Primeira abordagem: a personagem sai da cabeça do escritor: “Nenhuma personagem minha é inspirada por pessoas reais. Em caso nenhum” (C. Reis, Diálogos com José Saramago, p. 137). A firmeza da asserção dá que pensar, sobretudo quando temos presente a longa tradição de construção mimética da personagem, em especial no romance de costumes oitocentista e numa subcategoria – presente na ficção de Saramago, para que conste – a que chamamos tipo social. O vigor daquelas palavras obriga o escritor a recuar: afinal, há personagens com origem na vida real (Marcenda foi vista num restaurante, confessa Saramago; cf. Diálogos com José Saramago, p. 138) e outras (D. João V, por exemplo) vêm da História.
Outra coisa e mais pertinente, a meu ver, é atribuir à personagem uma dinâmica própria: “As minhas personagens nascem em cada momento, são impelidas pela necessidade e não são cópias, não são versões” (Diálogos com José Saramago, p. 138), declara José Saramago. Daqui à questão da autonomia e da sobrevida da personagem vai uma linha que não é reta, mas que lá conduz. Uma etapa desse trajeto cumpre-se na História do cerco de Lisboa, quando Maria Sara questiona Raimundo Silva acerca das “pessoas de livro” que o revisor de imprensa está a compor, sem saber ainda se elas são personagens, na plena aceção do termo: “Quem é esta Ouroana, este Mogueime quem é, estavam os nomes, e pouco mais, como sabíamos. Raimundo Silva deu dois passos breves na direção da mesa, parou, Ainda não sei bem, disse, e calou-se, afinal deveria ter adivinhado, as primeiras palavras de Maria Sara teriam de ser para indagar quem eles eram, estes, aqueles, outros quaisquer, em suma, nós. Maria Sara pareceu contentar-se com a resposta, tinha experiência suficiente de leitora para saber que o autor só conhece das personagens o que elas foram, mesmo assim não tudo, e pouquíssimo do que virão a ser (História do cerco de Lisboa, ed. Caminho, pp. 263-264).
Não é, evidentemente, de José Saramago a voz que aqui escutamos, nem mesmo a do narrador por ele instituído. E contudo, do diálogo entre o escritor incipiente e em aprendizagem (Raimundo Silva, claro) e a sua leitora de circunstância emerge um princípio de doutrina: o escritor não sabe tudo sobre as suas personagens e o futuro que elas hão de viver é incerto. Um futuro que se desenrola dentro e fora da ficção (ou durante e depois dela, se se preferir), porque a personagem pode sobreviver ao ficcionista, de modo às vezes bem singular.
Curiosamente, colocando-se perante esta questão, José Saramago resiste, mas depois transige. Resiste a aceitar a autonomia da personagem, mas acaba por reconhecer a sua capacidade de autodeterminação. De forma mais explícita: por um lado, “as personagens não são autónomas” (Diálogos com José Saramago, p. 140), mas por outro lado reconhece-se o dinamismo das figuras que interagem com a história e com quem a rege: “É a história que necessita que aquela personagem se determine desta ou daquela forma” (ibid. p. 140). Se Maria Sara estava certa, ao “saber que o autor só conhece das personagens o que elas foram”, então posso bem dizer que as conclusões a que chegou dão razão ao título de um dos discursos de Estocolmo: “De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz.”
(Extrato de “José Saramago e a poética da narrativa: uma ordem por decifrar”, in Teresa Cerdeira et alii (org.), E agora, José(s)? José Saramago e José Cardoso Pires 20 anos depois. Belo Horizonte: Moinhos, 2019, pp. 20-22)."