Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Clarabóia em cena na A Barraca - "Neste prédio imaginado por Saramago está Portugal inteiro"

O artigo de Maria João Caetano, pode ser visualizado e lido, na página do Diário de Notícias, aquiem http://www.dn.pt/artes/interior/neste-predio-imaginado-por-saramago-esta-portugal-inteiro-4920882.html

(Imagem do manuscrito original)


"A Barraca adaptou "Claraboia", romance que nos coloca num prédio lisboeta em pleno Estado Novo"
"No 1º esquerdo mora uma mulher infeliz, que perdeu a filha para a doença e atura um marido marialva e um pouco violento. No rés-do-chão direito mora um casal com problemas de comunicação, e não tem nada a ver com o facto de ele ser português e ela espanhola. Há uma família quase feliz no 2º direito, mesmo se a jovem Claudinha provoca cabelos brancos nos pais. No 2º esquerdo quatro mulheres entre tias, irmãs e sobrinhas, dedicam-se à costura e gostam de ouvir música clássica. No 1º direito, Lídia é uma mulher que dá nas vistas e que recebe muitas visitas do senhor Paulino. No rés-do-chão esquerdo é a oficina do sapateiro Silvestre, com porta para a rua, e que, um dia, em conversa com a mulher Mariana decide alugar um dos quartos para fazer frente às dificuldades financeiras. É assim que aparece Abel, o hóspede. Todas as casas dão para o patamar das escadas e é aí que fica a claraboia.
O prédio lisboeta é o cenário do romance de José Saramago, Claraboia, e é também o cenário da peça com o mesmo nome que o Teatro Barraca estreia amanhã. E é no prédio que reparamos assim que entramos na sala e o espetáculo ainda não começou. Nas mobílias que podiam ser dos nossos avós, nas louças, nas panelas, nos naperons, nas molduras douradas, na máquina de costura Singer com pedal.
Lisboa, 1952
"Assim que li o romance achei que seria delicioso criar esta história dentro de um prédio verdadeiro", conta a encenadora e atriz Maria do Céu Guerra. "Andei por Lisboa a ver prédios que pudessem ser usados, vi várias casas desabitadas mas depois caí na realidade e percebi que nunca nos iriam dar autorização, por razões de segurança, para fazer uma coisa dessas. Então, o cenógrafo José Manuel Costa Reis disse-me: a Barraca tem um teatro, tens que fazer isto no teatro, eu arranjo uma maneira." E arranjou. "Consegue dar-nos realmente a vida de um prédio, do qual vemos partes, vemos um prédio cortado e somos voyeurs, somos espias de um prédio de Lisboa de 1952. Conseguimos ver a vida de seus casas, seis famílias completamente distintas mas que nos dão aquela realidade que era a vida no Estado Novo."
O jornalista João Paulo Guerra, que fez a adaptação do romance de Saramago para teatro, explica que apesar de o autor não dizer exatamente onde ficava aquele prédio, é fácil imaginá-lo na zona de Santos, onde fica o teatro da Barraca:"Diz que da janela vê-se o rio e ouvem-se barcos. Além disso, sabemos que o José Saramago viveu na rua da Esperança, aqui na Madragoa". Mas seja em que bairro for, este é "um prédio classe baixa ou média-baixa, como, aliás, era a esmagadora maioria da população de Lisboa."

 Maria do Céu também interpreta uma das personagens
(Sara Matos/Global Imagens)

"Meia dúzia depois da Segunda Guerra Mundial, estamos em pleno Estado Novo", acrescenta Maria do Céu Guerra. "O Saramago, como José Cardoso Pires ou Lobo Antunes, escrevem sobre o fascismo branco. Não aparece a polícia, não aparece diretamente a repressão, nada que acuse o Estado Novo ou algum processo político, mas a gente sente que é insuportável viver aqui, é sufocante, e é isso que eu acho que o José Saramago nos dá muito bem."
João Maria Pinto, o ator que interpreta o sapateiro Silvestre, era um miúdo de seis anos em 1952 mas lembra-se bem desse modo de vida: "O livro é extremamente elucidativo sobre a época, dá-nos as famílias endurecidas pelo fascismo, cinzentas, partas, sem horizontes de vida. Estão espartilhadas. Vão uma vez ao cinema, quando há algumas economias, fazem uma refeição melhor ao domingo, dão um passeio e não fazem mais nada. Era assim que vivíamos."
Contrariar a crise
Apesar de haver quem possa ver semelhanças entre o mundo de Claraboia e o de filmes como O Pátio das Cantigas, Maria do Céu Guerra diz que as diferenças são muitas. Esta será uma "comédia negra": "Não tem nada a ver com a chamada comédia portuguesa, que era uma coisa demasiado apologética, simpática e ao mesmo tempo nostálgica de um tempo que não foi assim tão festivo. O que o Saramago nos dá é uma espécie de avesso da pueril e feliz comédia portuguesa. Aqui, todas as famílias tem a sua infelicidade e a sua luta pela vida, que era algo muito real."
Abel (Rúben Garcia) e o sapateiro Silvestre (João Maria Pinto)
(Sara Matos/Global Imagens)

"A vida no prédio é perturbada pela chegada do hóspede, um jovem que tem uma vida errante e pensamentos libertários. O papel de Abel é interpretado por Rúben Garcia e no vasto elenco encontramos ainda Paula Guedes, Lucinda Loureiro, Hélder Costa, Paula Sousa, Rita Lello, Carolina Parreira, Paula Bárcia, Adérito Lopes, entre outros. Trata-se, assume, a encenadora (que interpreta dois papéis), de uma "aposta muito grande" para a companhia. "Passámos os últimos anos numa situação muito difícil na barraca, quando começou a austeridade e se acentuaram os cortes e nós ficámos reduzidos a não poder fazer nada do que queríamos. Desta vez decidimos arriscar. Vamos fazer mesmo que a gente sofra as consequências disto. Não vamos continuar nesta apagada e vil tristeza de fazer peças com dois personagens e sem cenário. Vamos dar um pontapé na lua."