Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 28 de dezembro de 2014

José Saramago e as suas entrevistas... documentos para o presente e o futuro...

Pergunto-me. 
Quantas entrevistas, conferências, "mesas redondas", tertúlias públicas, debates, manifestações, intervenções... quantos destes actos, de exposição das suas ideias e palavras, terá José Saramago participado?
Há diversos relatos de salas com milhares de pessoas, acotovelando-se para o ouvir. Relatos de filas intermináveis para recolher o seu autógrafo, como se de uma estrela de cinema se tratasse. 
José Saramago, foi um homem extremamente cuidadoso nas respostas que dava, quando entrevistado, mas essa ponderação, não o impedia de tocar "na ferida" dos assuntos, ou, não evitava o confronto sincero. Era disto que as pessoas, leitores ou não, nele admiravam. A resposta era dada, uma vezes com luva branca, outras vezes, dada com a intensidade de uma dor enorme.
Respondia, sempre com preocupações e anseios, dúvidas, raras certezas, com o confronto e a ironia, e devolvendo outras perguntas.

E agora...

Nestas suas palavras, denota-se a preocupação latente: - será que ajudei? será que fui útil? 

(Sebastião Salgado, Betinho e José Saramago - Rio de Janeiro, 1997)

"Creio que me fizeram todas as perguntas possíveis. Eu próprio, se fosse jornalista, não saberia o que perguntar-me. O mal está nas inúmeras entrevistas que tenho dado. Em todo o caso, tenho o cuidado de responder seriamente ao que se me pergunta, o que me dá o direito de protestar contra a frivolidade de certos jornalistas a quem só interessa o escândalo ou a polémica gratuita."
José Saramago, 2009

"José Saramago nas Suas Palavras"
Caminho, edição de Fernando Gómes Aguilera
Página 13



Catalão José Luis Sampedro com José Saramago
Link para inserção no blog, em 24 de Outubro de 2008,



"86 anos"
"Dizem-me que as entrevistas valeram a pena. Eu, como de costume, duvido, talvez porque já esteja cansado de me ouvir. O que para outros ainda lhes poderá parecer novidade, tornou-se para mim, com o decorrer do tempo, em caldo requentado. Ou pior, amarga-me a boca a certeza de que umas quantas coisas sensatas que tenha dito durante a vida não terão, no fim de contas, nenhuma importância. E porque haveriam de tê-la? Que significado terá o zumbido das abelhas no interior da colmeia? Serve-lhes para se comunicarem umas com as outras? Ou é um simples efeito da natureza, a mera consequência de estar vivo, sem prévia consciência nem intenção, como uma macieira dá maçãs sem ter que preocupar-se se alguém virá ou não comê-las? E nós? Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque sim? O suor evapora-se, lava-se, desaparece, mais tarde ou mais cedo chegará às nuvens. E as palavras? Aonde vão? Quantas permanecem? Por quanto tempo? E, finalmente, para quê? São perguntas ociosas, bem o sei, próprias de quem cumpre 86 anos. Ou talvez não tão ociosas assim se penso que meu avô Jerónimo, nas suas últimas horas, se foi despedir das árvores que havia plantado, abraçando-as e chorando porque sabia que não voltaria a vê-las. A lição é boa. Abraço-me pois às palavras que escrevi, desejo-lhes longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado. Não há outra resposta."

"O Caderno"
Caminho, 2.ª edição
Páginas 115 e 116 (16 de Novembro de 2008)


"A Caverna" a moldagem, criação das peças e pintura... depois as suas sortes

Imagem encenada para recriação de um momento vivida na Olaria Algor, em "A Caverna"
Imagem cénica, criada por Odin Santos, com elaboração de peças de gesso, secagem e pintura.
Homenagem a Cipriano da Olaria Algor, à sua filha Marta de esperanças 
e a Marçal, que também ele desceu à caverna.

(...) "No segundo dia o oleiro viajou à cidade para comprar o gesso cerâmico destinado aos moldes, mais o carbonato de sódio, que foi o que encontrou como desfloculante, as tintas, uns quantos baldes de plástico, teques novos de madeira e de arame, espátulas, vazadores. A questão das tintas havia sido objecto de vivo debate durante e depois do jantar do dito primeiro dia, e o ponto controverso foi se as peças deveriam ser levadas ao forno depois de pintadas, ou se, pelo contrário, eram pintadas depois de cozidas e ao forno não voltavam mais. Num caso, as tintas tenham de ser umas, no outro, as tintas teriam de ser outras, portanto: a decisão tinha de ser tomada imediatamente, não podia ficar para a última hora, já de pincel na mão, É uma questão de estética, defendia Marta, É uma questão de tempo, opunha Cipriano Algor, e de segurança, Pintar e levar ao forno dará mais qualidade e brilho à execução, insistia ela, Mas se pintarmos a frio evitaremos surpresas desagradáveis, a cor que usarmos, é a que permanecerá, não estaremos dependentes da acção do calor sobre os pigmentos, tanto mais que o forno às vezes é caprichoso. Prevaleceu a opinião de Cipriano Algor, as tintas a comprar iriam ser, portanto, as que se conhecem no mercado da especialidade pelo nome de esmalte para louças, de aplicação fácil e secagem rápida, com uma grande variedade de coloridos, e quanto ao diluente, indispensável porque a espessura original da tinta é, normalmente, excessiva, se não se quiser usar um diluente sintético, serve mesmo o petróleo de iluminação, ou de candeeiro. Marta voltou a abrir o livro da arte, procurou o capítulo sobre a pintura a frio e leu, Aplica -se sobre Peças Já cozidas, a peça será lixada com lixa fina, de modo a eliminar qualquer rebarba ou outro defeito de acabamento, tornando a sua superfície mais uniforme e permitindo uma melhor adesão de tinta nas zonas em que a peça tenha ficado excessivamente cozida, Lixar mil e duzentos bonecos vai ser o cabo dos trabalhos, Terminada esta operação, continuou Marta a ler, há que eliminar todos os vestígios do pó produzido pela lixagem, usando um compressor, Não temos compressor, interrompeu Cipriano Algor, Ou, embora mais moroso, mas preferível, uma trincha de pêlo duro, Os velhos processos ainda têm as suas vantagens, Nem sempre, corrigiu Marta, e prosseguiu, Como sucede com quase todas as tintas do género, o esmalte para louças não se mantém homogéneo dentro da lata por muito tempo, por isso há que mexê-lo bem antes da aplicação, Isso é elementar, toda a gente sabe, passa adiante, As cores poderão ser aplicadas directamente sobre a peça, mas a sua aderência melhorará se se começar por aplicar uma subcapa, normalmente de branco fosco, Não tínhamos pensado nisso, é difícil pensar quando não se sabe, Discordo, pensa-se precisamente porque não se sabe, Deixe essa apaixonante questão para outra altura, e ouça-me, Não faço outra coisa, A base de subcapa pode ser dada a pincel, mas poderá haver vantagem em aplicá-la à pistola a fim de se conseguir uma camada mais lisa, Não temos pistola, Ou por meio de mergulho, Essa é a maneira clássica, de toda a vida, portanto mergulharemos, Todo o processo se desenrolará a frio, Muito bem, Uma vez pintada e seca, a peça não deve nem pode ser sujeita a qualquer tipo de cozedura, Era o que eu te dizia, o tempo que se poupa, Ainda traz outras recomendações, mas a mais importante é de que se deve deixar secar bem uma cor antes de aplicar a seguinte, salvo se se desejarem efeitos de sobreposição e mistura, Não queremos efeitos nem transparências, queremos rapidez, isto não é pintura a óleo, Em todo o caso, a cabaia do mandarim mereceria um tratamento mais cuidado, lembrou Marta, repare que o próprio desenho obriga a maior diversidade e riqueza de cores, Simplificaremos. Esta palavra fechou o debate, mas esteve presente no espírito de Cipriano Algor enquanto fazia as suas compras, a prova é que adquiriu à última hora uma pistola de pintar." (...)

"A Caverna"
Caminho, páginas 154 a 155