Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Carta ao "Pai Natal", digo e corrijo, a José Saramago

Carta ao "Pai Natal", a José Saramago

Escrevo-te, e desculpas antecipadas, prestadas pelo tom directo com que me dirijo, mas assim fica mais fácil de me fazer entender, e estando o ano de 2014 nos seus últimos dias, gostava de te deixar algumas perguntas.

Bem sabes, que à "força", os "grandes" gostam de incentivar os "pequenos", em casa ou nas escolas, a escrever cartas ao "Pai Natal da Coca-cola", para que peçam as prendas, os seus desejos e sonhos que só as crianças sabem ter. Elas, a criançada, contrapõem estes pedidos com inocentes e auto-elogiosos discursos de bom comportamento e vontades, geralmente, em tom de duvidosa certeza, para que possam, enfim, justificar uma carrada de presentes. Nestas alturas, os mais irrequietos, julgam-se uns santos apaziguadores, e os mais disciplinados, esses pois, levam pela mesma bitola do escrutínio do elogio dos anteriores.
Só quem não foi criança. não pode alcançar a ilusão destes pecados.

Assim, e em estilo de intróito justificativo, escrevo esta missiva, para que, de alguma forma, e tendo este ano a quem escrever, o meu destinatário possa aclarar esta mente inquieta e ávida de respostas, ou, talvez com um pouco de sorte, me agracie com novas perguntas.

Bem saberás, que sou empiricamente contra a saga do "Pai Natal da Coca-cola", esta figura criada,  e dotada de um poder inebriante junto das pessoas. Não raras vezes, se deve ouvir perguntar, em que parte da fábula do natal, entra o "velho das barbas". Ou, se, ele entra em cena, com os "três reis magos", ou, se é actor de outra versão do espírito natalício.

Por isto, e mais algumas coisas, que bem sabemos, segue esta carta para alguém como tu, tem a capacidade de dar respostas diferentes a perguntas, de tão antigas que são, e de tão gastas respostas dadas, que as mesmas perguntas continuam sem solucionar os respectivos enigmas. Parece-me, mas confesso, que sou bastante distraído, que a mesma pergunta feita durante tanto tempo, à qual as respostas também são sempre as mesmas, criam a alegoria da verdade ilusória. O problema manter-se-á, com base na resposta dada como adquirida e não questionada. Em outro paralelo, posso colocar-te isto, como a rábula da «mentira dita muitas vezes que se torna numa outra verdade».
Daí que, admiro as pessoas, que muitas das vezes não sendo iluminadas, têm o desprendimento de espírito suficiente, que lhes permita fazer perguntas diferentes ou inéditas.
As minhas dúvidas, as minhas questões, as incertezas, os medos, tudo isto e mais algumas outras coisas, têm sido, como que, o meu privilégio surreal de me manter desassossegado e inquieto, como tu bem gostavas que o mundo assim se sentisse.

Ontem, em Pashawar, no Paquistão, 141 pessoas foram executadas por um suposto comando Talibã. Destas pessoas executadas, porque não há outra forma de o expressar, a quase totalidade eram crianças. O massacre deu-se numa escola. Pelo número de mortos, a quantidade de feridos deve ter sido assustadora.
O "contador" da humanidade, fez um sonoro "plim", e deu o desconto destes mortos.
Isto, foi notícia ontem, dia 16/12/2014.
Como sabes, os meios de comunicação social dão destaque a estas atrocidades. As manchetes destes casos continuam a vender. Quanto mais sangue e corpos estropiados à hora dos telejornais, melhor. E quando acontece, as famílias reunidas à frente da televisão a jantar, têm a mesma reacção que se tem a ver um filme Hollywood. Impávidos e serenos.
As várias notícias sobre este assunto, fez a contagem, mostrou sangue e mortos, homens a carregar em braços, crianças estropiadas. Mas, e um mas, muito firme, não houve uma reportagem que perguntasse - Porque? Ou, o que é realmente necessário para que isto não aconteça, nunca mais?
As notícias de hoje, anunciam retaliações do governo paquistanês. Volta a pena de morte. Olho por olho, dente por dente.

No dia anterior, em Sidney, Austrália, aconteceu um sequestro num café. Um suposto religioso muçulmano, barricou-se dentro do estabelecimento, com uma carrada de pessoas reféns, e no final o mais que previsível banho de sangue. 3 mortos e alguns feridos.
Aqui, o "contador" da humanidade, fez outro "plim", e deu o devido desconto.
Não há outra forma de o dizer.
Parece que nestes assuntos, há os executados, as vítimas, e os outros que vão escapando até subir de nível, até serem abatidos.
Ahh, já me esquecia! Tens razão, a pergunta.
Quando, ou melhor, como será possível que deixem de existir mortos em nome de um qualquer deus?
Porque, ao que parece, em pleno século XXI, ainda subsistem alguns deuses, como se de partidos políticos diferentes se tratasse, em que se apresentam pelos seus interpostos fiéis, capazes (estes) de efectuar massacres e execuções, num sinal atroz de poder. Aconteça isto em zonas de guerra, ou num café de uma cidade em paz. 
O que poderá ser feito, para que as guerras religiosas acabem? Estas e as outras, é claro!
Será que a tua obra "In Nomine Dei", se perpetuará para sempre?
De outro lado, numa outra latitude, no Vaticano, o Papa Francisco sopra as velas do bolo de aniversário. Ao todo são 78 anos. Houve festa e tango vindo da Argentina. Orações e afins.

Mudemos de assunto, agora para questões terrenas. Não seriam as outras, também terrenas?
Levo-te até à Califórnia. Estados Unidos da América. Sim, a terra de G.W.Bush, aquele presidente a que dedicaste, no "Caderno", a 18 de Setembro de 2008, uma inserção a que deste o nome de "George Bush, ou a idade da mentira".
É também neste país, que tem como presidente Barack Obama, prémio Nobel da Paz, do ano 2009. Nesse ano, a Academia Sueca fez a seguinte menção na entrega - "for his extraordinary efforts to strengthen international diplomacy and cooperation between peoples". Pasme-se.
O que na altura não entendi, e continuo a não perceber, quais são préstimos à causa da paz que Obama realizou, ou será, que bastou a eloquência ou argumentária dos discursos que efectuou? 
Desculpa-me a franqueza, mas neste capítulo, o do prémio Nobel da Paz, a Academia Sueca deixa muito a desejar. Colocar Obama, com o mesmo título, que Mandela, Dalai Lama, Martin Luther King e mais alguns receberam, é uma afronta.
Continuando. 
Um dos itens que redigiste na "Declaração de Princípios", datada de 29 de Junho de 2007, aquando da instituição da Fundação José Saramago, e passo a citar, é que «mereçam atenção particular os problemas do meio ambiente e do aquecimento global do planeta, os quais atingiram níveis de tal gravidade que já ameaçam escapar às intervenções correctivas que começam a esboçar-se no mundo».
Vi a notícia da seca brutal, que dura há mais de 3 anos na Califórnia, e recordo-me logo, das tuas intervenções e preocupações, com o meio ambiente, a forma como os seus recursos são espoliados numa sangria desenfreada, afectando, ainda não sabemos como, as futuras gerações, tanto ao nível das alterações climáticas que se agravam a olhos vistos, como, ao nível da disponibilidade efectiva de recursos num futuro próximo.
A água, será, dizem os entendidos, muitas vezes apelidados de catastrofistas e loucos, o "ouro" das próximas décadas. Os povos do sul, tenderão a sofrer com as secas e avanço de terras desérticas, algumas florestas densas, serão cada vez mais confinadas a pequenos santuários de terras.
A noticia da seca na Califórnia, que dura há muito tempo, e com danos irreversíveis em algumas áreas, vem agora à luz do dia, porque a NASA apurou serem necessários 42 quilómetros cúbicos de água para inverter a situação. Este estado tem 38 milhões de habitantes, e estão a serem impostas multas e leis rígidas, para disciplinar/racionar o uso da água. Parece que, por lá, também se ataca a raiz dos problemas, pelo lado errado da questão.
A minha pergunta, que aqui te deixo, à qual não tenho resposta, é muito simples. Talvez, até um pequeno rapaz de tenra idade, a possa formular melhor do que eu. Porém, como é que o país supostamente, mais industrializado do mundo, talvez, o mais evoluído cientificamente; o que detém mais ilustres cientistas e investigadores galardoados com os mais prestigiados prémios; o país com mais recursos económicos, e que, cuja moeda pode ser impressa e inundar os mercados financeiros a seu belo prazer; ou, para não mencionar, o poderio militar, a indústria que o suporta, as guerras em que intervém/patrocina, ou sim, mencionar, o orçamento da Defesa, que tem tantos zeros à direita do algarismo, que torna a soma um buraco negro de recursos, dizia eu, antes de me perder, pergunto eu, como é possível, um país dotado de atributos mil, não ter conseguido inverter o desastre que assola o estado da Califórnia?
Ou, será que este assunto, a demonstração do inevitável rumo que a humanidade está a tomar, alegremente vivendo e consumindo, sob a forma de crédito da natureza, e que será pago, sabe-se lá com que custos e "apocalipses" pelas próximas gerações. Quiçá, os filhos dos nossos filhos, amanhã, muito lamentarão o tamanho egoísmo dos seus avós, homens e mulheres que somos hoje.
Será, que toda a tecnologia existente, ainda assim, neste actual elevadíssimo patamar de desenvolvimento e conhecimento, é incapaz de conseguir inverter e diminuir os impactos ambientais severos, provocados pela seca extrema?
Será que, num futuro poderemos assistir a colonização de outros planetas, sem que este, esteja devidamente curado dos males, que agora, são perceptíveis de padecer?
Sei que não gostas das utopias, consideravas as ideias utópicas, como exercícios de pensamento, algo desnecessários. O que hoje, pode ser considerado como um pensamento ou ideia para a humanidade, daqui a uns quantos séculos, nesse mesmo futuro, quando o presente se tiver tornado, poderiam as tais ideias serem consideradas absurdas ou irrealistas. Gosto da tua ideia, desmistificando o peso da utopia, em que o bem a ser praticado - deve ser para agora, já, para estes homens e mulheres.
Não sendo uma pergunta, concreta, mas um enorme ponto de interrogação, talvez do tamanho deste planeta e da lua, que a nós anda atracada; será que os Estados Unidos da América, nação de tal poder, permite que tal desgraça se manifeste de forma irreversível, no seu próprio território, num estado onde vivem mais de 38 milhões de habitantes, sem que o consigam resolver/reparar? Então, outra questão se levanta. O que será que está a passar no coração de África, onde os holofotes das notícias estão apontados para as pestes e epidemias, mas não sintonizam a devastação que por lá existe? Ou, o estado em que o desflorestação do chamado "pulmão verde do planeta", deixou a floresta Amazónica? Ou, pior ainda, a tentativa que as grandes petrolíferas fazem para avançar com a exploração do petróleo, no polo norte?
Estaremos nós, população mundial, directa e indirectamente a criar condições para o seu próprio extermínio?  
Será que, aquilo que é considerado hoje, de ficção científica, se confundirá com a realidade de um amanhã próximo? Isto, tal como aconteceu no passado, com a ideia herege do padre Bartolomeu de Gusmão, ao criar a "passarola", qual máquina ilusória que colocaria os homens a voar sem que tivessem as asas de Ícaro, quando hoje, a aviação civil é tão banal como andar de bicicleta.

Peço desculpa pelo incómodo, e pelo tempo que te tomo, mas há coisas que me fazem confusão, e as respostas às coisas que me fazem a dita confusão, são tão estranhas como as mesmas perguntas que as antecedem.

Dei por mim, lendo uma notícia, daquelas habituais dos fins de ano, onde se fazem a contabilização de tudo e de nada. Desta feita, o "monstro da espionagem universal", digo, a ferramenta de pesquisa "Google", elencou os termos mais pesquisados a nível mundial, e local, de alguns países. Portugal, também teve à sua lista, ao modo "os 10 mais pesquisados". Então, para nossa satisfação, em 2014 o "Campeonato do Mundo de Futebol", o reality show "Secret Story 5", e a morte do actor "Rodrigo Menezes", foram os três assuntos mais pesquisados. Da lista restante, fica para a história do nosso país, o "blog azul", "NOS", "Novo Banco", "Legionella", "telexfree", IPhone 6" e por fim, a morte do actor "Robin Willians".
Vi a notícia, e... deixa estar, pelos termos pesquisados, não sei que pergunta te posso fazer, a ti que colocaste uma Joana Carda a riscar o chão, o cão das lágrimas a afagar o rosto da mulher do médico, tu que deste corpo a Ricardo Reis, puseste a morte numa posição desconfortável quando se apaixonou por um mero violoncelista, ou chamaste à terra o oleiro Cipriano Algor, os Mau-Tempo, enfim... tantos deles...
Perante isto, que te poderei perguntar?

Meu amigo, José
Meu amigo José, envio-te esta carta, porque ando preocupado.
Ando inquieto com este mundo, desassossegado com tantas questões, e não sei mais o quê, e o que pense destes nossos dias.

José, envio-te esta carta, porque tenho saudades tuas.

Miguel de Azevedo
17 de Dezembro de 2014

"O conto da Ilha Desconhecida" ou a arte de nos encontrarmos

"O conto da Ilha Desconhecida"

(ilustração de Bartolomeu dos Santos)

... um rei que não gostava de ser incomodado
... um reino muito burocrata
... o homem que queria um barco
... a mulher da limpeza que tudo decidia
... a porta dos obséquios e a das decisões
... o sonho
... o amor

"Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós,
Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer..."
(em, "O conto da Ilha Desconhecida, Caminho - 4.ª edição, pág 31)


«O que é um ser humano?» ou a grande interrogação ... conseguirá ser explicado?

(imagem do filme, Blindness de Fernando Meirelles)


(...) "Nos seus primeiros livros há personagens típicos de uma época mas actualmente confrontamo-nos com novos protagonistas. Como é quando está a criar os personagens, fica preocupado com a actualidade do que está a escrever?"

Nada! Nada preocupado. Eu só posso escrever sobre aquilo que conheço. Eu não posso pôr como personagem um capitalista, não sei como é um capitalista e não saberia pô-lo a viver, a falar ou a sentir. Portanto, não haverá nunca um capitalista num romance meu! De certa maneira o meu trabalho pode dividir-se em duas fases, a que começa com o Manual de Pintura e Caligrafia e vai até ao Evangelho e aí acaba um período. Com o Ensaio sobre a Cegueira começa outro período. O que é que distingue um do outro? Numa conferência que dei na universidade de Turim tentei explicar isso através da metáfora da estátua e da pedra, onde eu dizia que a estátua é a superfície da pedra. Portanto, é como se eu até ao Evangelho estivesse a descrever estátua, quer dizer a superfície da pedra, e que a partir do Ensaio sobre Cegueira tivesse sabido passar para o interior da pedra. Isto como metáfora de que passou a preocupar-me mais o ser humano e a interrogação «O que é um ser humano?». Ainda há pouco estava a falar do hidrogénio, que é uma resposta e que pode ser essa, mas também somos inteligência e sensibilidade. A matéria que se organiza e se organizou de forma que nos fez como somos, e não se tratou apenas de transformações na ordem do físico mas também na ordem do mental, do desenvolvimento psíquico, da capacidade de sentir, de associar não apenas ideias mas também sensações, imaginações e tudo o mais. Isso é a criação do homem, não foi Deus quem criou o ser humano mas foi o ser humano que se criou a si mesmo, fizemo-nos. A grande maravilha do ser humano é exactamente essa, fez-se a si próprio." (...)

em, ""Uma longa viagem com José Saramago"
de João Céu e Silva
Porto Editora, página 123