(imagem do filme, Blindness de Fernando Meirelles)
(...) "Nos seus primeiros livros há personagens típicos de uma época mas actualmente confrontamo-nos com novos protagonistas. Como é quando está a criar os personagens, fica preocupado com a actualidade do que está a escrever?"
Nada! Nada preocupado. Eu só posso escrever sobre aquilo que conheço. Eu não posso pôr como personagem um capitalista, não sei como é um capitalista e não saberia pô-lo a viver, a falar ou a sentir. Portanto, não haverá nunca um capitalista num romance meu! De certa maneira o meu trabalho pode dividir-se em duas fases, a que começa com o Manual de Pintura e Caligrafia e vai até ao Evangelho e aí acaba um período. Com o Ensaio sobre a Cegueira começa outro período. O que é que distingue um do outro? Numa conferência que dei na universidade de Turim tentei explicar isso através da metáfora da estátua e da pedra, onde eu dizia que a estátua é a superfície da pedra. Portanto, é como se eu até ao Evangelho estivesse a descrever estátua, quer dizer a superfície da pedra, e que a partir do Ensaio sobre Cegueira tivesse sabido passar para o interior da pedra. Isto como metáfora de que passou a preocupar-me mais o ser humano e a interrogação «O que é um ser humano?». Ainda há pouco estava a falar do hidrogénio, que é uma resposta e que pode ser essa, mas também somos inteligência e sensibilidade. A matéria que se organiza e se organizou de forma que nos fez como somos, e não se tratou apenas de transformações na ordem do físico mas também na ordem do mental, do desenvolvimento psíquico, da capacidade de sentir, de associar não apenas ideias mas também sensações, imaginações e tudo o mais. Isso é a criação do homem, não foi Deus quem criou o ser humano mas foi o ser humano que se criou a si mesmo, fizemo-nos. A grande maravilha do ser humano é exactamente essa, fez-se a si próprio." (...)
em, ""Uma longa viagem com José Saramago"
de João Céu e Silva
Porto Editora, página 123
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