Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Falecimento de Maria Barroso - Palavras de José Saramago sobre a visita do casal, Mário Soares e Maria de Barroso, a Tías - Lanzarote

Na data em que ocorre o falecimento de Maria Barroso, deixo aqui as palavras de José Saramago sobre a visita do casal, Mário Soares e Maria de Barroso, a Tías - Lanzarote. 

Pilar del Río e Maria Barroso, 
na inauguração da Casa dos Bicos (13/6/12)


"O presidente Mário Soares esteve hoje em Lanzarote. Quando há um ano Pilar e eu fomos a Belém para lhe comunicar que nos mudávamos para as Canárias, disse-mos-lhe: «Se alguma vez tiver de viajar para aqueles lados...» A resposta, simpática: «Lá irei.» Naquela altura pensei que se tratasse de uma promessa política, como tantas outras fadada para o cesto roto dos esquecimentos logo à nascença, mas enganei-me. Mário Soares aproveitou um convite para vir a um encontro de juristas em Tenerife e deu um salto à nossa ilha. Acompanhou-o Maria Barroso, a quem, acaso por efeito da sua conversão ao catolicismo, dei comigo a tratar familiarmente por Maria de Jesus: já no jantar da embaixada em Roma me tinha escapado, uma ou duas vezes, o confiado tratamento, mas disfarcei o lapso protocolar passando imediatamente ao «Dra. Maria Barroso» de sempre. O mais certo, porém, é a conversão não ter tido nada que ver para o caso (a ironia sem maldade é deste momento em que escrevo), e ser o meu «Maria de Jesus», simples-mente, a retribuição natural e equilibrada do seu amistoso «Zé»... Com eles vieram Manuel Alegre (que queria saber, por conta própria e alheia, por que tinha eu decidido viver em Lanzarote: o que viu deu-lhe a resposta), Maryvonne Campinos (o encontro em Tenerife homenageara Jorge Campinos), o embaixador Leonardo Matias, a Estrela Serrano, o Alfredo Duarte Costa. Levámo-los a Timanfaya e à Fundação César Manrique porque não havia tempo para mais: Javier foi um magnífico cicerone, com as datas e os factos na ponta da língua. Al-moçaram depois em nossa casa, com alguns problemas de logística causados por dois convivas não previstos, mas tudo acabou por se resolver. Falou-se da Lisboa Capital Cultural (repeti e aclarei as minhas críticas), de Europa inevitavelmente (tive a melancólica satisfação de ouvir dizer a Mário Soares que partilha hoje de algumas das minhas reservas, antigas e recentes, sobre a União Europeia: «Que será de Portugal quando acabarem os subsídios?», foi sua a pergunta, não minha). Aproveitei a ocasião e permiti-me substituir a pergunta por outras, mais inquietantes: «Para que serve então um país que depende de tudo e de todos? Como pode um povo vi-ver sem uma ideia de futuro que lhe seja própria? Quem manda realmente em Portugal?» Não tive respostas, mas também não contava com elas. A sombra veio e passou, a conversa transferiu-se para temas menos encruzilhados. Passadas estas horas, ainda me custa a acreditar que Mário Soares tenha cá estado em casa. Que voltas teve o mundo de dar, que voltas tivemos de dar nós, ele e eu, para que isto fosse possível. (1 de Março de 1994)

em, "Cadernos de Lanzarote - Diário II
Caminho, página 63 e 64


1989 - José Saramago com Mário Soares, na apresentação do seu livro 
"História do Cerco de Lisboa", no Castelo de São Jorge - Lisboa (Foto © Eduardo Tomé)