Na data em que ocorre o falecimento de Maria Barroso, deixo aqui as palavras de José Saramago sobre a visita do casal, Mário Soares e Maria de Barroso, a Tías - Lanzarote.
Pilar del Río e Maria Barroso,
na inauguração da Casa dos Bicos (13/6/12)
"O presidente Mário Soares esteve hoje em Lanzarote. Quando há um ano Pilar e eu fomos a Belém para lhe comunicar que nos mudávamos para as Canárias, disse-mos-lhe: «Se alguma vez tiver de viajar para aqueles lados...» A resposta, simpática: «Lá irei.» Naquela altura pensei que se tratasse de uma promessa política, como tantas outras fadada para o cesto roto dos esquecimentos logo à nascença, mas enganei-me. Mário Soares aproveitou um convite para vir a um encontro de juristas em Tenerife e deu um salto à nossa ilha. Acompanhou-o Maria Barroso, a quem, acaso por efeito da sua conversão ao catolicismo, dei comigo a tratar familiarmente por Maria de Jesus: já no jantar da embaixada em Roma me tinha escapado, uma ou duas vezes, o confiado tratamento, mas disfarcei o lapso protocolar passando imediatamente ao «Dra. Maria Barroso» de sempre. O mais certo, porém, é a conversão não ter tido nada que ver para o caso (a ironia sem maldade é deste momento em que escrevo), e ser o meu «Maria de Jesus», simples-mente, a retribuição natural e equilibrada do seu amistoso «Zé»... Com eles vieram Manuel Alegre (que queria saber, por conta própria e alheia, por que tinha eu decidido viver em Lanzarote: o que viu deu-lhe a resposta), Maryvonne Campinos (o encontro em Tenerife homenageara Jorge Campinos), o embaixador Leonardo Matias, a Estrela Serrano, o Alfredo Duarte Costa. Levámo-los a Timanfaya e à Fundação César Manrique porque não havia tempo para mais: Javier foi um magnífico cicerone, com as datas e os factos na ponta da língua. Al-moçaram depois em nossa casa, com alguns problemas de logística causados por dois convivas não previstos, mas tudo acabou por se resolver. Falou-se da Lisboa Capital Cultural (repeti e aclarei as minhas críticas), de Europa inevitavelmente (tive a melancólica satisfação de ouvir dizer a Mário Soares que partilha hoje de algumas das minhas reservas, antigas e recentes, sobre a União Europeia: «Que será de Portugal quando acabarem os subsídios?», foi sua a pergunta, não minha). Aproveitei a ocasião e permiti-me substituir a pergunta por outras, mais inquietantes: «Para que serve então um país que depende de tudo e de todos? Como pode um povo vi-ver sem uma ideia de futuro que lhe seja própria? Quem manda realmente em Portugal?» Não tive respostas, mas também não contava com elas. A sombra veio e passou, a conversa transferiu-se para temas menos encruzilhados. Passadas estas horas, ainda me custa a acreditar que Mário Soares tenha cá estado em casa. Que voltas teve o mundo de dar, que voltas tivemos de dar nós, ele e eu, para que isto fosse possível. (1 de Março de 1994)
em, "Cadernos de Lanzarote - Diário II
Caminho, página 63 e 64
1989 - José Saramago com Mário Soares, na apresentação do seu livro
"História do Cerco de Lisboa", no Castelo de São Jorge - Lisboa (Foto © Eduardo Tomé)
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