Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 29 de novembro de 2014

Joseph Haydn "As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz" - José Saramago e Raimon Panikkar elaboraram as "palavras"

"Colaboração de José Saramago, Jordi Savall e Raimon Panikkar a partir da música de Joseph Haydn.
Em 2007, a editora discográfica catalã AliaVox editou a gravação de “As Sete Últimas Palavras de Cristo“ de Joseph Haydn pela Orquestra Le Concert des Nations, sob a direcção do maestro e compositor Jordi Savall e acompanhado pelos textos originais de José Saramago e Raimon Panikkar.
O desafio havia sido proposto por Savall a Saramago uns anos antes e, apesar de “ambos concordarem que as palavras [que expliquem a música de Haydn] não eram necessárias”, concordaram também que deveriam sê-lo, conforme relata Pilar del Río. Saramago dedicou-se a um árduo trabalho de pesquisa, já iniciado aquando de O Evangelho segundo Jesus Cristo. No final, “escreveu sobre cada uma delas [as palavras de Cristo na cruz], não para explicar a música mas para acrescentar ao seu Evangelho as páginas que faltavam”.
Passados mais de duzentos anos desde a sua criação, uma encomenda especial feita a Haydn nos começos de 1786, “pareceu-nos apropriado dar esta responsabilidade a dois grandes mestres do pensamento espiritual e humanístico contemporâneo: Raimon Panikkar e José Saramago complementam as breves citações do texto evangélico com uns textos e comentários que reflectem as suas profundas convicções espirituais e humanísticas”, justifica Jordi Savall no texto introdutório do CD."

Via Fundação José Saramago, pode ser consultado, aqui

"A 19 de Junho de 2011, o Ministério da Cultura e a Fundação José Saramago juntaram-se para realizar um desejo antigo de José Saramago em assistir à apresentação deste trabalho na cidade de Lisboa. Como refere Gabriela Canavilhas, então Ministra da Cultura, “Querendo assinalar o aniversário da morte do nosso Prémio Nobel da Literatura, com a cumplicidade de Pilar del Río, o Ministério da Cultura apostou na realização deste desejo silencioso de Saramago, prestando-lhe justíssimo tributo, glorificando a palavra e a música, no concerto dos grandes génios que são Saramago e Haydn”.
O espectáculo ocorreu no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, com a concepção de cena de Teresa Villaverde e interpretação da Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida pelo maestro Moritz Gnann."

"As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, de José Saramago"

"Palavra Primeira
Deus, Pai, Senhor, aqui me tens. Aqui me tens, finalmente, neste monte escalvado a que chamam Gólgota e aonde, passo a passo, vieste encaminhando a minha vida a fim de que todas as profecias fossem cumpridas. Sou o da cruz alta, a que está ao centro, e os homens que me fazem companhia, um de cada lado, são dois ladrões vulgares, daqueles que se contentam com roubar pouco, que se fossem dos que roubam muito de certeza não viriam aqui crucificados. O que está à minha direita protesta que não quer morrer, grita como um doido furioso, dá arrancos com o corpo como se pretendesse arrancar a cruz do chão e fugir com ela às costas, ao outro já o vejo resignado, tem a cabeça descaída, apenas geme. Penso que terei de lhe dizer alguma coisa que o console antes que isto se acabe. O bom que tem este lugar para os condenados é ser Jerusalém a última imagem que levam da vida. Não estamos sós. Entre os soldados romanos, os doutores da lei, os chefes dos sacerdotes, os anciãos, e a gente comum que acudiu ao espectáculo, distingo, embora mal porque as dores me estão nublando os olhos, minha mãe com algumas mulheres, e também, sim, está também Maria Madalena. E está João, mas aos outros não os vejo, terão fugido. À morte deveria assistir-se em silêncio, não este clamor de insultos, esta gritaria, este ódio insensato, estas palavras de escárnio: “Salva-te a ti mesmo se és o rei dos judeus, lá está aquele que deitava abaixo o templo e tornava a reconstruí-lo em três dias, que desça agora da cruz para nós vermos e acreditarmos nele”. Deus, Pai, Senhor, era isto necessário? Não te bastava a simples morte? Já que terei de perder a vida, perdoa-lhes tu o alvoroto, porque não sabem o que fazem. E eu? Virei a saber o que fiz no mundo? E tu, Deus, Pai, Senhor, tens a certeza de que tudo o que fizeste foi bem feito?

Palavra Segunda
Deus, Pai, Senhor, não sei como o poderei confessar, tão confundido e humilhado sinto o meu espírito. Compadecido do sofrimento do ladrão manso, não encontrei nada melhor para o consolar que prometer-lhe o paraíso. “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, foram as minhas formais palavras. Mas logo me perguntei se a soberba, ou o orgulho, ou a vaidade, foi o que me levou a prometer algo que não estava em meu poder dar. Antes, numa das suas fúrias, o ladrão bravo tinha-me invectivado: “Então não és o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós!” Mas o ladrão manso repreendeu-o com estas justas palavras, em verdade inesperadas em pessoa da sua condição: “Não tens temor a Deus, tu que estás a sofrer a mesma condenação? Nós estamos aqui a pagar o justo castigo pelos actos que temos praticado, mas este não fez nada de mal”. E foi aí, Deus, Pai, Senhor, que caí em tentação: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, disse. Como pude eu esquecer-me do Juízo Universal que, esse sim, há-de separar o trigo do joio, o bom do mau, o virtuoso do pecador? Como pude esquecer o que disse o profeta: “Eu, o Senhor, penetro no íntimo do homem, e examino o seu coração, e a cada um dou segundo o seu procedimento.”? De todo modo, sou escravo da minha promessa, este homem irá comigo, comigo se apresentará à tua porta, e tu, Deus, Pai, Senhor, se quiseres receber-me a mim, terás também de recebê-lo a ele, porque eu, sozinho, não entrarei. Honra a promessa que fiz, já que neste suplício me desonraste.

Palavra Terceira
Deus, Pai, Senhor, quando, para castigar a prosápia dos homens que estavam levantando aquela torre com a intenção de chegar ao céu, lhes desordenaste a linguagem, talvez não tenhas pensado em todas as consequências do acto a que foste movido por uma ira semelhante à do dono da vinha quando dá por que os meliantes se dispõem a assaltá-la. Talvez este pensamento, na aparência fora de lugar, seja fruto do delírio, da angústia e das terríveis dores que me trespassam, mas, nesta hora última da minha passagem pela terra, não estaria bem que entre pai e filho ficassem coisas caladas. Aquela mulher que além vês, entre João e Maria Madalena, é minha mãe, tu o saberás melhor que ninguém. Nunca vi que lhe tivesses dado atenção em todos estes anos, mas não é disso que quero falar. O meu pensamento é outro. Quando confundiste a linguagem dos homens, houve palavras que se perderam, outras que tomaram caminhos desviados, outras que deixaram de pertencer a quem, tempos atrás, havia sido seu legítimo proprietário. Houve uma época, talvez na idade de ouro, falando a língua que tu confundiste, em que as mulheres podiam ser tão justas e piedosas quanto os homens fossem capazes de o ser, mas já não o eram quando eu vim ao mundo, porque, em hebraico, por exemplo, para justo e piedoso não há formas femininas equivalentes. Tendo eu que nascer forçosamente de uma mulher, como foi possível, Deus, Pai, Senhor, não teres reparado que ela não podia ser digna de me gerar, uma vez que não era piedosa nem justa? Rogar-te-ei que mo expliques quando nos encontrarmos. Não vejo nenhum dos meus irmãos. E aquele João, já não sei eu bem se é o meu discípulo, se o filho de Zebedeu, que tem o mesmo nome. Como quer que seja, vou dizer a frase que de mim se espera: “Mulher, aí tens o teu filho. João, aí tens a tua mãe.” Oxalá se dêem bem.

Palavra Quarta
Deus, Pai, Senhor, as palavras atropelam-se na minha cabeça, a ponto de já não saber se serão realmente minhas ou se as terei lido ou ouvido em alguma parte, e agora não faça mais que repeti-las de maneira mecânica, como uma criancinha que a duras penas aprende a falar. Pelo menos, tenho a certeza de que as palavras que irei proferir me sairão da boca somente para que se possa anunciar amanhã que as escrituras foram cumpridas uma vez mais. Escuta-as e diz-me se não tenho razão: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Quem me ouvir pensará que esta é a primeira vez que tu abandonas alguém e que por isso é de justiça que a pergunta seja lançada aos quatro ventos do alto desta cruz, como um aviso às pessoas. Mas tu, Deus, Pai, Senhor, desde o princípio do mundo que criaste não tens feito outra coisa que abandonar-nos. Recorda aqueles a quem, por causa de uma maçã e uma serpente, expulsaste do paraíso terrenal, recorda o espírito vingativo com que puseste diante da porta os querubins e uma espada de fogo para que eles não pudessem regressar. Crês tu, Deus, Pai, Senhor, que ao menos uma vez na vida, e em muitos casos todos os dias e a todas as horas, a espécie humana não teve motivos para fazer esta mesma pergunta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”? Que estás longe, dirás, que não podes acudir a tudo, que o homem foi feito para que governasse a sua vida sem depender de deus ou deuses, mas em teu nome, quando não tu mesmo, há quem afirme que nascemos servos e servos seremos até ao fim da vida porque tu és a causa primeira e porque, ao mesmo tempo que nos vai abandonando um a um, nos manténs agarrados na tua mão. Eu próprio te fiz a pergunta e tu não respondeste. Razão tinha aquele que disse que Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio. Acabe-se o homem e tudo se acabará. Abandonados já estamos, eles, eu, talvez também tu, que nem a ti próprio te podes valer. Até para alegadamente salvar a humanidade tiveste que derramar o meu sangue.

Palavra Quinta
Deus, Pai, Senhor, ainda que possa parecer extraordinário, ou mesmo incrível, que alguém à beira da morte, tal eu estou, sinta sede e imagine ter tempo e forças para beber um vaso de água, foi isto o que acabou de suceder. Talvez, em realidade, eu não tivesse autêntica sede, talvez tivesse sido apenas a recordação súbita da frescura de uma água que para sempre iria perder, a sensação de senti-la a descer por uma garganta que em breve se cerraria, o que me fez soltar aquele grito: “Tenho sede!” Sem que eu o esperasse, quase imediatamente uma esponja molhada me tocou a boca e o sabor da água misturada com vinagre me restituiu por um instante o alento. Olhando para baixo vi um homem que segurava uma cana, esta a que veio atado o misericordioso socorro, porque bem sabemos, os que nunca tivemos gelo para refrescar a água nas canículas do verão, que juntar-lhe um pouco de vinagre é remédio infalível para as piores sedes. O homem baixou a cana, tornou a empapar a esponja, e outra vez ma fez chegar aos lábios. Depois, porque os soldados romanos se acercavam com as suas lanças e faziam gestos ameaçadores, o homem retirou-se, segurando a cana ao ombro e levando o balde da água e vinagre na outra mão. Foi isto o que se passou e não qualquer outra história que venha a contar-se no futuro, como se o sofrimento de quem foi condenado a morrer na cruz não fosse já bastante para encher o livro. Talvez a alguém se lhe ocorra escrever, e por todos os modos repetir, que quiseram dar-me vinho misturado com fel ou com mirra. Não é verdade. E agora, Deus, Pai, Senhor, peço-te um último favor. Que não faças esperar este homem até ao dia do Juízo Final, que o chames a ti no preciso momento em que morrer, e que tu mesmo o vás receber à porta do paraíso. Reconhecê-lo-ás facilmente. Leva uma cana ao ombro e um balde com água e vinagre na outra mão.

Palavra Sexta
Deus, Pai, Senhor, tudo está cumprido. A cruz em que me pregaram não tardará a ter um cadáver nos seus braços, tal como, desde o princípio do mundo, foi por ti decidido que haveria de suceder. Será, por ser a minha, suficiente esta morte para a salvação da humanidade? Para salvá-la de quê ou de quem? De si mesma? Do inferno que tu mesmo fabricaste, uma vez que não havia mais ninguém que o pudesse fazer? Sou eu o cordeiro que Abel te sacrificava, ao mesmo tempo que desprezavas o trigo e o centeio que Caim te oferecia? Porquê? Não terás sido tu, Deus, Pai, Senhor, quem armou a mão de Caim para que na primeira página da história dos homens se anunciasse já o futuro que lhes estava guardado, sangue, morte, destruição e tortura desde esse dia e para sempre? E porquê ficou o crime de Caim sem castigo? Porquê teve Abel de morrer? Conhecerás tu, Deus, Pai, Senhor, o sentimento do remorso? Porquê, contra a simples justiça, prosperou o assassino, ao ponto de fundar uma cidade e ter descendência como qualquer homem comum, com as mãos limpas de sangue alheio? Sem querer faltar ao respeito, foste e serás sempre um deus dúplice, com duas caras, dois pesos e duas medidas.

Não creio que a minha morte vá servir para que os homens se salvem nem que, sem ela, se perdessem mais do que já estão. Não imaginas, Deus, Pai, Senhor, como os seres humanos são complicados e difíceis de entender. Seja como for, fiz tudo o que tinhas ordenado. Por isso está morrendo um homem nesta cruz.

Palavra Sétima
Deus, Pai, Senhor, nas tuas mãos entrego o meu espírito, que a carne que o continha, essa, ficará agarrada a este madeiro enquanto o que de mim resta não for levado ao túmulo, donde ao terceiro dia ressuscitarei, se foram certas as palavras que puseste na minha boca para que as ouvissem os que me seguiam. Censurou-mas Pedro, que me chamou de parte e disse: “Deus te livre de tal. Uma coisa assim nunca te há-de suceder.” E eu respondi-lhe: “Sai da minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho, porque não entendes as coisas à maneira de Deus, mas à maneira dos homens.” Foi isto o que eu lhe disse, mas agora, Deus, Pai, Senhor, agora que o meu espírito já deve ter chegado às tuas mãos, permite-me que procure, também eu, entender as coisas à maneira dos homens. Poderá o meu corpo, sem um espírito que o anime, levantar-se e sair do sepulcro, arredando a pedra que lhe tapa a entrada? E outra pergunta mais. Que sucederá comigo durante esses três dias? Apodrecerei? Será já com os primeiros sinais de podridão na cara e nas mãos que me apresentarei diante de Maria Madalena? Vivi no mundo como homem durante trinta anos, primeiro criança, depois adolescente, depois adulto, até este dia. Se te digo coisas que estás farto de saber, é para que compreendas por que razão aparecerei a Maria Madalena antes que a qualquer outro.

Acabámos. Representei o meu papel o melhor que podia. O futuro dirá se o espectáculo valeu a pena. E agora, Deus, Pai, Senhor, uma última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?"


Joseph Haydn - The Seven Last Words of Christ
"Is an orchestral work by Joseph Haydn, commissioned in 1785 or 1786 for the Good Friday service at Cádiz Cathedral in Spain. The composer adapted it in 1787 for string quartet and in 1796 as an oratorio (with both solo and choral vocal forces), and he approved a version for solo piano.
The seven main meditative sections — labelled "sonatas" and all slow — are framed by an Introduction and a speedy "Earthquake" conclusion, for a total of nine movements. 
Complete all movements."

Será "Honorato" o início da metamorfose?

Será o pseudónimo de "Honorato", o início do processo da metamorfose, do qual resultou e gerou o escritor José Saramago?
Primeiro com o romance "A Viúva", publicado em 1947, sob o nome alterado pelo editor para "Terra do Pecado", este que antecede a "construção" da obra - "Claraboia", já a década de 50 estava perfeitamente em curso (1953). 
Este livro transporta consigo a curiosa introdução da assinatura sob pseudónimo - Honorato. 
Diz a história dos acontecimentos, que o resultado final foi enviado para apreciação do editor, e que terá ficado esquecido numa gaveta. Em 2011, sessenta anos depois, ganhou nova alma e saído de um lugar esquecido, vê a luz do dia, sendo publicado a título póstumo.
A "Terra do Pecado", que ficará para outro post, e a "Claraboia", são o início de um caminho. O tal "caminho que se faz caminhando", caminho da escrita publicada, que ficou pendurada ou suspensa, entre chavetas ou parênteses da vida, talvez demasiados anos até que a constante publicação literária ganhasse vida e cadência própria. Considero, que o sustento da vida quotidiana, do homem e da sua família, obrigou como é natural a concentrar toda a atenção no trabalho minimamente remunerado, atrasando o germinar do futuro escritor, com a marca de obra tardia.
Em a "Claraboia", a história, a gestão das personagens e seu compasso de "vida" estão presentes, conjuntamente com a consciência e problemática social - o "eu e os outros", porém, o estilo da escrita e pontuação, tal como o temos subentendido quando falamos em (ou de) José Saramago, não existe em 1953. Ainda não existia. Saramago, reconhece que só na criação da obra "Levantado do Chão", às paginas 22 ou 23, se fez um "milagre" (dito por si, com a dúvida sobre o criador do milagre).
Quero com isto afirmar, que a leitura da "Claraboia" deverá ser realizada com os olhos no romance mas com o pensamento numa afirmação pessoal, que ocorre nos anos idos da década de 50 do século passado.
Boa leitura!
Miguel de Azevedo   



Referência, via Biblioteca Activa, da Fundação José Saramago,
aqui, em http://www.josesaramago.org/claraboia-2011/

"- Vivemos entre os homens, ajudemos os homens.
- E que faz o senhor para isso?
- Conserto-lhes os sapatos, já que nada mais posso fazer agora."

«Claraboia é a história de um prédio com seis inquilinos sucessivamente envolvidos num enredo. Acho que o livro não está mal construído. Enfim, é um livro também ingénuo, mas que, tanto quanto me recordo, tem coisas que já têm que ver com o meu modo de ser.» José Saramago

"Claraboia, cuja redação José Saramago terminou a 5 de Janeiro de 1953, consiste num datiloscrito de 319 páginas, assinado com o pseudónimo de «Honorato»."

Pilar del Río, em entrevista concedida à Revista Caras (04/03/2012)

Aqui pode ser consultado o link,
em http://caras.sapo.pt/famosos/2012-03-04-pilar-del-rio-a-vida-roubou-me-de-um-so-golpe-mais-uns-dez-anos-com-o-meu-marido

Pilar del Río: "A vida roubou-me de um só golpe mais uns dez anos com o meus marido"

A viúva de José Saramago, que preside a Fundação com o seu nome, contou como foram os 24 anos que partilhou com o Prémio Nobel da Literatura, que morreu em junho de 2010.




Pilar del Río, jornalista espanhola, estava numa livraria quando se encontrou com as palavras de José Saramago. Apaixonou-se pelo génio do escritor e veio a Lisboa, onde acabou por conhecer o homem. Bastou um aperto de mão e umas horas de conversa para ficar com “a certeza absoluta de que algo ia acontecer entre nós.” Depois deste encontro, começou uma história de amor que durou 24 anos. Da mulher que o conquistou em 1986, e que era quase 30 anos mais nova, Saramago disse: “Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho.” A 18 de Junho de 2010, aos 87 anos, o escritor morreu, deixando de “estar” ao lado da mulher que amou e que lhe deu “ideias para a vida”, como partilhou no filme José e Pilar.
Pilar abriu as portas da Casa dos Bicos, futura sede da Funda­ção José Saramago, a qual preside, e recordou como foi viver ao lado do escritor português.



– O que sente quando vê a futura sede da Fundação José Saramago praticamente pronta?
Pilar del Río – Este projeto  é uma intervenção na cidade que me enche de satisfação, de orgulho e de pavor. O espólio de José Saramago e tudo o que vai acontecer aqui vai transformar toda esta zona ribeirinha. Quando abrirmos o espaço ao público, na primavera, vamos ter uma grande exposição em que se pode ver a semente e o fruto da vida de uma pessoa humilde que queria ser escritor e trabalhou muito. Vamos ter conferências, debates, reuniões, apresentações de livros... Vai ser uma casa aberta aos cidadãos com muitas atividades relacionadas com a cultura e com o pensamento. Queremos que seja um lugar vivo. O meu marido tinha muitos sonhos para este sítio e, por isso, decidimos pôr as suas cinzas diante de Os Bicos. Não podia ser em outro lugar de Lisboa... Este espaço foi o seu último sonho.

– Ainda há mais livros ou textos soltos de Saramago por publicar?
– Não. José Saramago foi escrevendo e publicando. O Claraboia [livro escrito na década de 50 e publicado o ano passado] saiu agora em Espanha, em Itália e creio que é uma porta de entrada à obra de Saramago. Este livro foi um presente que ele nos deixou.

– O facto de Saramago conti­nuar a ser recordado atenua a dor da perda?
– Não creio que assim seja. José Saramago dizia que morrer era estar e já não estar. E ele já não está. Saramago continua como escritor, intelectual, quem não está é José e isso é um assunto pessoal, privado, intransmissível.

– Alguns crí­ticos diziam que havia um Saramago antes e depois de Pilar. É verdade?
– Não. No plano literário, há um José Saramago em Claraboia e que continuou presente em toda a sua obra. No campo pessoal, claro que com a convivência nos transformamos uns aos outros. Penso que o meu marido me tornou mais contida, algo que é difícil, e eu ajudei-o a ser uma pessoa mais expansi­va. Fomos duas pessoas distin­tas que se encontraram. Mas há um só José Saramago, Levantado do Chão por si só e apenas por si!

– No filme José e Pilar vê-se por diversas vezes o seu marido a chamar por si. Havia uma dependência saudável entre vocês?
– Não. Tínhamos um saudável companheirismo. Éramos camaradas, companheiros, amigos, comentávamos tudo... Não é frequente existir uma relação entre duas pessoas que se encontraram quando já são maduras e que sabem aquilo que é importante e o que não tem importância nenhuma. Era um homem que não era vulgar, era excecional em todos os aspetos.

– Li que depois do seu primeiro encontro com Saramago saiu de lá com a sensação de uma ‘estranha paz’. Já era alguma intuição?
– Não gosto de falar de intuições ou de magias... Mas sabia que algo se ia passar e estava preparada para isso. Tinha a certeza absoluta de que algo ia acontecer entre nós. Simplesmente sabia, tinha de acontecer.

– A Pilar expressou sempre as suas opiniões e por vezes foi duramente criticada. Nunca se sentiu magoada por isso?
– Não. Podem dizer o que quiserem sobre mim. Agora, quando se tratava de interpretações maliciosas e falsas, com muitas falhas de informação sobre o meu marido, aí sim, importava-me e portava-me como uma loba!



– Era muito protetora em relação ao seu marido?
– Não. Sou jornalista e consi­dero que o único elemento que temos para nos defendermos é a honestidade. Vi muitos preconceitos em relação ao meu marido e por parte de alguns que dizem ser jornalistas. Eu sou uma defensora do jornalismo sério.

– Nos 24 anos que passaram juntos ficou alguma coisa por fazer? Tem arrependimentos?
– Podia arrepender-me de algumas coisas, mas não vale a pena pensar nisso. Depois de terminar aquele que seria o seu último livro, iríamos ficar na bibliote­ca, sentados, a ler, tranquilos, a desfrutar do nosso espaço e dos cães. E isso foi-me roubado. Sinto que a vida me roubou de um só golpe mais uns dez anos com o meu marido. Agora já não nos podemos sentar na nossa biblio­teca. Se ele não se sentou, eu também não o vou fazer!

– É por isso que está tão empenhada em perpetuar o nome e a obra de Saramago?
– Se não o fizesse não seria digna de estar onde estou. Por isso, tenho de continuar a trabalhar e a militar nesta fundação. Seria muito mais cómodo ficar em casa, como dizia o Fernando Pessoa, a “contemplar o espetáculo do mundo”, e eu podia ter ficado no sofá a viver tranquilamente, mas não quero! Podia ter tido uma vida de placidez, mas tenho uma vida de trabalho, porque é isso que devo à sociedade. E o meu marido escreveu até morrer! Ele trabalhava todos os dias e não abdicava da sua capacidade de intervenção cívica.

– José Saramago vivia para a escrita ou era um homem que tinha como prioridade os afetos?
– A sua prioridade não eram nem os afetos, nem os amigos, nem a família. Saramago não tinha pequenos sentimentos burgueses... É difícil de entender... Claro que tinha família, amigos e uma mulher, mas a sua dimensão era outra. Era um pensador e alguém que intervinha. Era Saramago por si mesmo. E militava em função das ideias.

– Depois de o seu marido mor­rer, tornou-se cidadã portuguesa. Porquê?
– Quando o meu marido morreu senti necessidade de vir para aqui e continuá-lo. Sei que o meu marido queria que eu o continuasse.

– O seu marido disse que ele próprio tinha ideias para romances e que a Pilar tinha ideias para a vida. Que ideia, ou ideias, estiveram sempre subjacentes à vossa vida?
– Ai, não sei... Foi fazer o que considerámos certo, independentemente do que os outros pensavam. José Saramago nunca se contentou com a contemplação do mundo e interveio para que ele ficasse um sítio melhor. Compartilhávamos muitas ideias e uma mesma forma de ver o mundo, e foi por isso que nos vimos uma segunda vez. Ele defendia os direitos individuais e sociais das pessoas. Era um livre pensador!

Citador #14 ... considerações escatológicas

Citador #14
... considerações escatológicas
"Correspondência 1959-1971, José Rodrigues Miguéis José Saramago"
Caminho - 2010
Página 303

"Querido Miguéis:

Se um homem vai a passar junto da Torre de Pisa e a torre lhe cai em cima e o esmaga, todo o mundo achará natural, pois a torre já estava inclinada. Até se pensará que há certa beleza em ficar esborrachado debaixo de tão ilustres pedras.
Mas se em cima desse homem desaba, sem aviso prévio, um enorme monte de merda, todo o mundo ficará espantado, pois não são costumeiros tais desabamentos, nem ninguém será capaz de perceber donde veio tão grande quantidade de trampa." (...)

Sobre a sua demissão, da Editorial COR, por nomeação da Natália Correia em sua substituição. José Saramago, na carta de 8 de Novembro de 1971, explica desta forma "estas considerações escatológicas".

Miguel de Azevedo

"Correspondência 1959-1971 - José Saramago e José Rodrigues Miguéis"

Sugestão de leitura para fim de semana
Esta obra recolhe, diversa correspondência trocada entre José Saramago (Director Literário na Editorial Estúdios COR, Lda.) e José Rodrigues Miguéis, autor considerado consagrado, de vasta obra publicada e reconhecida com diversos prémios literários.
O período de tempo conhecido, nesta vasta troca de cartas entre Lisboa e Nova Iorque, compreende o ano de 1959 (24 de Fevereiro), até 1971 (12 de Novembro).  
As cartas, reportando e abordando o trabalho literário e suas minudências, entre o editor e o editado, provoca ao longo da correspondência um tom inicialmente cauteloso e muito cordial, com um trajecto que evolui a um honesto relacionamento de amizade.
A 24 de Fevereiro de 1959, José Saramago dirige-se com um "Exm.º Sr. Dr. José Rodrigues Miguéis, até ao "Querido Miguéis" de 8 de Novembro de 1971, e 4 dias depois, de volta com um "Querido Saramago".
Foram homens das artes, da literatura e literários, de outras artes... mas sobretudo de vida, de consciência social. A questão central deste livro, transfere a questão administrativa da relação profissional, para um polo lateral e que pode ser analisado com alguma curiosidade. Não deixará por certo e decerto de ser curioso, com a distância de mais de 50 anos, observar como estes dois homens tratavam as vendas, as correcções, as sugestões, a vida que alimentava os autores e os editores. 
Mas, tal como, e numa comparação abstracta, nas "cartas de guerra" dos militares que "embarcados" num qualquer monstruoso teatro de guerra, trocavam cartas de esperança e desesperança com as famílias e suas amadas, suprimindo desta forma a incerteza do momento seguinte, aqui, e confesso o eventual forçoso paralelismo, as missivas trocadas sobem no tempo a um lugar mais pessoal e confessional, entre dois que ficam próximos.

A 21 de Agosto de 1967. José Rodrigues Miguéis, adianta...
"Meu querido Saramago
Ainda nos veremos em Lisboa, antes da sua partida para as ilhas de Afrodite e de Safo: segredo - top secret! - só para três ou quatro pessoas mais chegadas, devo aterrar na Portela na manhã de 30 (4.ª feira)... (...) 
Saudades e abraços muitos para todos os amigos e em especial para si do seu
Miguéis"

Saramago, em 8 de Novembro de 1971, confessa o seu testemunho e desapontamento pela situação que foi criada na editora, "demiti-me da editora em virtude de me terem criado uma situação vexatória, qual seja a admissão de um novo director literário (Natália Correia), imposto pelo grupo financeiro que tomou posição na firma."

"Diga-me o que puder, quando puder. E perdoe-me o laconismo. No meu desconsolo e desânimo, só a si tenho escrito e a muito poucos. Vou fazer 70 anos dentro de três semanas! Quando lá chegar saberá o que isso é...
Abraça-o o amigo certo e grato
Miguéis", 12 de Novembro de 1971

É, leitura de fim de semana... salteada... mas a rever
Miguel de Azevedo

Pequeno apontamento, de José Rodrigues Miguéis, via Wikipédia,

José Claudino Rodrigues Miguéis (Lisboa, 9 de Dezembro de 1901 - Nova Iorque, 27 de Outubro de 1980) foi um escritor português
Nascido no número 13 da Rua da Saudade, no bairro típico de Alfama, passou a sua infância e juventude em Lisboa, recordações que marcarão a sua futura obra. Ainda em Lisboa viria a formar-se em Direito em 1924. Todavia, nunca exerceria de forma sistemática profissão nesta área, tendo consagrado a sua vida à Literatura e à Pedagogia. Neste último campo viria a licenciar-se em 1933 em Ciências Pedagógicas na Universidade de Bruxelas, tendo posteriormente dirigido, com Raul Brandão, um conjunto inacabado de Leituras Primárias, obra que nunca viria a ser aprovada pelo governo.
Herdando do pai, um imigrante galego, as ideias republicanas e progressistas, cedo entrou em conflito com o Estado Novo, o que acabaria por o levar ao exílio para os Estados Unidos a partir de 1935. Desde essa altura até à sua morte apenas voltaria pontualmente a Portugal, não passando no seu país natal períodos superiores a dois anos. Em 1942 viria a adquirir a nacionalidade americana. Um ano antes do seu falecimento foi agraciado com a Ordem Militar de Santiago da Espada, no Grau de Grande Oficial. Mário Neves publicou uma biografia sua em 1990.
José Rodrigues Miguéis pertenceu ao chamado grupo Seara Nova, ao lado de grandes autores como Jaime Cortesão, António Sérgio, José Gomes Ferreira, Irene Lisboa ou Raul Proença. Colaborou em diversos jornais como O Diabo, Diário Popular, Diário de Lisboa e República. Foi, juntamente com Bento de Jesus Caraça, director de O Globo, semanário que viria a ser proibido pela censura em 1933. Nos Estados Unidos viria a trabalhar como tradutor e redactor das Selecções do Reader's Digest. Segundo os linguistas Óscar Lopes e António José Saraiva, a sua obra pode ser considerada como realismo ético, sendo claras as influências de autores como Dostoiévsky ou o seu amigo Raul Brandão. De resto, parecem claras nas suas primeiras obras as influências estéticas da Presença, podendo ler-se nas entrelinhas das suas obras simpatias com as temáticas neo-realistas portuguesas (há mesmo quem afirme que José Rodrigues Migueis tenha aderido ao partido comunista). Tem obras traduzidas em inglês, italiano, alemão, russo, checo, francês e polaco.
Em 1961 foi eleito membro da Hispanic Society of América e, em 1976, tornou-se membro da Academia das Ciências de Lisboa. Em 1979 foi agraciado com a Ordem Militar de Santiago da Espada, com o grau de Grande Oficial.

Livros publicados
A Mumia, 1971;
Páscoa feliz (Novela), 1932;
Onde a noite se acaba (Contos e Novelas), 1946
Saudades para Dona Genciana (Conto), 1956
O Natal do clandestino (Conto), 1957
Uma aventura inquietante (Romance), 1958
Léah e outras histórias (Contos e Novelas), 1958
Um homem sorri à morte com meia cara (Narrativa), 1959
A escola do paraíso (Romance), 1960
O passageiro do Expresso (Teatro), 1960
Gente da terceira classe (Contos e Novelas), 1962
É proibido apontar. Reflexões de um burguês - I (Crónicas), 1964
Nikalai! Nikalai! (Romance), 1971
O espelho poliédrico (Crónicas), 1972
Comércio com o inimigo (Contos), 1973
As harmonias do "Canelão". Reflexões de um burguês - II (Crónicas), 1974
O milagre segundo Salomé, 2 vols. (Romance), 1975
O pão não cai do céu (Romance), 1981
Passos confusos (Contos), 1982
Arroz do céu (Conto), 1983
O Anel de Contrabando , 1984
Uma flor na campa de Raul Proença, 1985
Aforismos & desaforismos de Aparício, 1996