Vera Barbosa na Fundação José Saramago (Foto: Joao Raposo)
"VI Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora"
Abrir o link que indico, onde a actriz Vera Barbosa apresenta a declamação de parte da crónica "As palavras" e acompanhar com a leitura do texto que está centrado e em negrito.
Boa viagem na companhia da Vera Barbosa
https://soundcloud.com/vera-barbosa/aspalavras
Crónica "As palavras"
"Deste Mundo e do Outro"
Caminho, 3.ª edição, páginas 55 e 56
"As palavras
"As palavras são boas.
As palavras são más.
As palavras ofendem.
As palavras pedem desculpa.
As palavras queimam.
As palavras acariciam.
As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas.
As palavras estão ausentes.
Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes.
As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam.
São melífluas ou azedas.
O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência.
Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem.
Há muitas palavras.
E há os discursos, que são palavras encostadas umas outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário. E as palavras escorrem, tão fluídas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isto atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.
Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se.
A palavra não responde nem pergunta: amassa.
A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano.
A palavra é poeira nos olhos e olhos furados.
A palavra não mostra.
A palavra disfarça.
Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara.
Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação.
Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto.
Há também o silêncio.
O silêncio, por definição, é o que não se ouve.
O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa.
O silêncio é fecundo.
O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar.
Caem sobre ele as palavras.
Todas as palavras.
As palavras boas e as más.
O trigo e o joio.
Mas só o trigo dá pão."
Vera Barbosa actuando na peça que dirigiu
Janela principal (centro, 1.º piso)
"Uma boa lembrança: Memorial do Convento", de José Saramago
Concepção e direção: Vera Barbosa
Parabéns a esse blog que respeita e cultiva a obra de José Saramago. Agradecida pela divulgação da música que fiz para a crónica: As Palavras, de José Saramago Gostei de ver o texto na íntegra; assim você mostra uma parte do processo criativo, na seleção, e/ou edição do texto... Agora deixo aqui meu lema: Amor, Alegria, Agradecimento e Arte!!!
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