Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Crónica "As palavras" declamado pela actriz Vera Barbosa (Deste Mundo e do Outro)

Vera Barbosa na Fundação José Saramago (Foto: Joao Raposo)
"VI Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora"

Abrir o link que indico, onde a actriz Vera Barbosa apresenta a declamação de parte da crónica "As palavras" e acompanhar com a leitura do texto que está centrado e em negrito.
Boa viagem na companhia da Vera Barbosa

https://soundcloud.com/vera-barbosa/aspalavras

Crónica "As palavras"
"Deste Mundo e do Outro"
Caminho, 3.ª edição, páginas 55 e 56

"As palavras 
"As palavras são boas. 
As palavras são más. 
As palavras ofendem. 
As palavras pedem desculpa. 
As palavras queimam. 
As palavras acariciam. 
As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. 
As palavras estão ausentes. 
Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. 
As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. 
São melífluas ou azedas. 
O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. 
Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. 
Há muitas palavras. 

E há os discursos, que são palavras encostadas umas outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário. E as palavras escorrem, tão fluídas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isto atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares. 
Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. 

A palavra não responde nem pergunta: amassa. 
A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. 
A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. 
A palavra não mostra. 
A palavra disfarça. 
Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. 
Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação. 
Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto. 
Há também o silêncio. 
O silêncio, por definição, é o que não se ouve. 
O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. 
O silêncio é fecundo. 
O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. 
Caem sobre ele as palavras. 
Todas as palavras. 
As palavras boas e as más. 
O trigo e o joio. 
Mas só o trigo dá pão." 


Vera Barbosa actuando na peça que dirigiu 
Janela principal (centro, 1.º piso)
"Uma boa lembrança: Memorial do Convento", de José Saramago
Concepção e direção: Vera Barbosa 

1 comentário:

  1. Parabéns a esse blog que respeita e cultiva a obra de José Saramago. Agradecida pela divulgação da música que fiz para a crónica: As Palavras, de José Saramago Gostei de ver o texto na íntegra; assim você mostra uma parte do processo criativo, na seleção, e/ou edição do texto... Agora deixo aqui meu lema: Amor, Alegria, Agradecimento e Arte!!!

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