Barco com emigrantes à chegada da ilha de Lampedusa (2011)
Fotografia: Ettore Ferrari/EPA
No seu livro/blog, "O Caderno 2", José Saramago escreveu este texto, hoje tão actual como cruel, na expressão mais severa que o ser humano, na sua condição de sobrevivência pode sofrer. Fugir da morte para morrer.
Os cartéis e máfias, que a troco de fortunas, obrigam os que pretendendo escapar do "inferno local", desfazem-se dos seus poucos haveres e compram, literalmente, uma ida para outro inferno.
O Mediterrâneo é um mar de morte e de corpos afogados.
Neste momento, a comunicação social ocidental e os políticos da UE, retratam e abordam este flagelo com a leviandade da coisa natural que acontece com gente de outra condição de existência.
Os que ficam na sua terra natal, que sem nada para poder vender não chegam a poder adquirir um destes bilhetes trágicos, ficam entregues às sortes da morte. Os que embarcam, em barcos super lotados e de uma fragilidade assustadora, são enviados ao engano que a morte, quase certa, os bafejará.
Pode ser lido aqui,
"Histórias da emigração"
"Que atire a primeira pedra quem nunca teve nódoas de emigração a manchar-lhe a árvore genealógica… Tal como na fábula do lobo mau que acusava o inocente cordeirinho de lhe turvar a água do regato onde ambos bebiam, se tu não emigraste, emigrou o teu pai, e se o teu pai não precisou de mudar de sítio foi porque o teu avô, antes dele, não teve outro remédio que ir, de vida às costas, à procura do pão que a sua terra lhe negava. Muitos portugueses morreram afogados no rio Bidassoa quando, noite escura, tentavam alcançar a nado a margem de lá, onde se dizia que o paraíso de França começava. Centenas de milhares de portugueses tiveram de submeter-se, na chamada culta e civilizada Europa de além-Pirinéus, a condições de trabalho infames e a salários indignos. Os que conseguiram suportar as violências de sempre e as novas privações, os sobreviventes, desorientados no meio de sociedades que os desprezavam e humilhavam, perdidos em línguas que não podiam entender, foram a pouco e pouco construindo, com renúncias e sacrifícios quase heróicos, moeda a moeda, centavo a centavo, o futuro dos seus descendentes. Alguns desses homens, algumas dessas mulheres, não perderam nem querem perder a memória do tempo em que tiveram de padecer todos os vexames do trabalho mal pago e todas as amarguras do isolamento social. Graças lhes sejam dadas por terem sido capazes de preservar o respeito que deviam ao seu passado. Outros muitos, a maioria, cortaram as pontes que os ligavam àquelas horas sombrias, envergonham-se de terem sido ignorantes, pobres, às vezes miseráveis, comportam-se, enfim, como se uma vida decente, para eles, só tivesse começado verdadeiramente no dia felicíssimo em que puderam comprar o seu primeiro automóvel. Esses são os que estarão sempre prontos a tratar com idêntica crueldade e idêntico desprezo os emigrantes que atravessam esse outro Bidassoa, mais largo e mais fundo, que é o Mediterrâneo, onde os afogados abundam e servem de pasto aos peixes, se a maré e o vento não preferiram empurrá-los para a praia, enquanto a guarda civil não aparece para levantar os cadáveres. Os sobreviventes dos novos naufrágios, os que puseram pé em terra e não foram expulsos, terão à sua espera o eterno calvário da exploração, da intolerância, do racismo, do ódio à pele, da suspeita, do rebaixamento moral. Aquele que antes havia sido explorado e perdeu a memória de o ter sido, explorará. Aquele que foi desprezado e finge tê-lo esquecido, refinará o seu próprio desprezar. Aquele a quem ontem rebaixaram, rebaixará hoje com mais rancor. E ei-los, todos juntos, a atirar pedras a quem chega à margem de cá do Bidassoa, como se nunca tivessem eles emigrado, ou os pais, ou os avós, como se nunca tivessem sofrido de fome e de desespero, de angústia e de medo. Em verdade, em verdade vos digo, há certas maneiras de ser feliz que são simplesmente odiosas." (17 de Julho de 2009)
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