Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Arranjo de Soares Feitosa sobre excerto de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" - "Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!"

José Saramago "Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!"

Arranjo de Soares Feitosa

Link para consulta, 
em http://www.jornaldepoesia.jor.br/1saramago8.html


"Versificação", a partir do ritmo cardíaco e do batimento respiratório (uma "viagem", como se, entre os olhos e o ouvido médio) de um texto de Saramago, in O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Companhia das Letras, 31ª reimpressão, páginas 398/399, sem nenhuma alteração a mais ou a menos que a mera arrumação em versos e estrofes. Nem preciso mencionar que este texto em Saramago (aliás, o Evangelho inteiro) é um bloco compacto, com mínimas "cesuras" por vírgulas e nada mais.
Prosa e poesia seriam, assim sem mais nem menos, a 2001 mesma coisa? Sim e não, aliás, sim... desde quê. E por favor bote muitos desdes-quês nessa história. De fato, é possível "metrificar" Euclices da Cunha, Guimarães Rosa, José de Alencar, Clarice Lispector e não muito mais que uns cinco gatos pingados. Da mesma forma, excelente "prosa" em... Álvaro de Campos. É só tentar... desde quê."

Soares Feitosa
Fortaleza, CE, noite alta, 5.5.2003


"Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!"

"Vem aqui, Tomé,
vem comigo até a borda da água,
vem ver-me fazer uns pássaros
com esta lama que colho...

Repara como é tão fácil,
formo e modelo o corpo
e as asas;
afeiçoo a forma da cabeça
e do bico; engasto estas pedrinhas
que são os olhos;
ajeito as penas compridas
da cauda;
equilibro-lhes as pernas e os dedos
e tendo feito
este, faço mais onze;
aqui os tens, um dois, três
quatro, cinco, seis, sete, oito,
nove, dez, onze, doze pássaros
de lama...

Imagina, até, se quiseres,
dar-lhes nomes: este é Simão,
este é Tiago, este é André, este é João, e este,
se não te importas, chamar-se-á
Tomé.

Quanto aos outros vamos esperar
que os nomes apareçam;
os nomes, muitas vezes, atrasam-se
no caminho, chegam
mais tarde...

E agora vê como faço — lanço esta rede
por cima das avezinhas
para que elas não possam fugir, os pássaros..., se
não temos cuidado.

Queres dizer-me que se esta rede
for levantada os pássaros fogem?
Esta é a prova com que querias
convencer-me?

Sim e não!

Como, sim e não?

A melhor prova, mas essa
não é de mim que depende, seria
não levantares tu a rede e acreditares
que os pássaros fugiriam se a levantasses.

São de barro, não podem fugir.

Experimenta! Também Adão,
nosso primeiro pai, foi de barro e tu
descendes dele.

A Adão deu-lhe vida Deus!

Não duvides mais, Tomé! Levanta a rede, eu sou
o Filho de Deus.

Assim o quiseste, assim o terás,
estes pássaros não voarão!

Com um movimento
rápido, Tomé levantou
a rede, e os pássaros,
livres, levantaram vôo, chilreando,
duas voltas
sobre a multidão maravilhada
e desapareceram no espaço.

Disse Jesus:
Olha, Tomé, o teu pássaro
foi-se embora.

E Tomé respondeu:
Não. Senhor, está aqui ajoelhado a teus pés,
sou eu." 



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