Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 25 de novembro de 2014

"O Homem Duplicado" pelas palavras questionadas de José Saramago

Esta obra apresenta-se de uma complexidade filosófica reflexiva assaz assustadora e perplexa. Saramago, refere em "A Estátua e a Pedra", a propósito de "O Homem Duplicado", que continua a discussão sobre o papel do "outro", do "eu e o outro". Esse é o propósito e o fio condutor delineado e seguido. 
Porém, com a maturação das diversas leituras e incursões que fiz nesta obra, permito-me discorrer o seguinte, se bem que, com ou sem autoridade, suponho que com menos, mas senti este fervor de forma muito particular.
Para além do que o punho de Saramago discorreu e produziu, pergunto se poderei ter a possibilidade de fazer duas leituras diferentes? 
Se a mesma obra, pode ser lida, do ponto de vista do professor ou sob o prisma do actor? 
E, neste caso, ao mesmo tempo, a causa e a consequência que isto produz ou afecta o "outro observado" (dependendo da perspectiva, via Tertuliano ou via António Claro), que possa levar a uma justificação de um desenlace final diferente. 
Tertuliano Máximo Afonso, tem conhecimento da existência de um "seu outro", ou sua cópia. Com uma ânsia e incerteza de decisões, vai à procura de uma resposta para o fenómeno, mas não questiona sobre as repercussões que isto terá, ao dar-se a conhecer no seio da outra família. Quais as repercussões da sua acção, versus, a incerteza de não ter uma resposta que lhe satisfaça a curiosidade, e que assim lhe possa diminuir a identidade.
Em contraponto, e na visão de António Claro e da sua mulher, tiveram a possibilidade de não procurar mais, de não buscar a resolução deste episódio, quando questionaram - "o que será de nós quando descobrirmos o que tivermos de descobrir?" Aqui, e ao perseguirem, cada um, per si, tentaram satisfazer a sua curiosidade (particular em conflito com a geral), contrariando o primado da confiança, que o casal deveria ter como pilar principal da relação. 
Tudo se desmorona.
Tudo se revoluciona.
Tudo se precipita.
Alguém desencadeou, alguém continuou.
Ao entrarmos neste drama, como se de uma porta se tratasse e ao observámos todo o cenário (aqui imagino cada um dos leitores como se fosse uma nuvem pairando sobre o holofotes da acção), não é possível deixar de vestir uma, ou, a pele do outro. Ou seja, ao invés dos habituais consensos, em que existe um elemento diferenciador entre a causa e o efeito, que produzirá um bom ou um mau personagem; segundo o gosto, simpatia, ou intuição baseada nos próprios princípios do bem e do mal; aqui, dizia, é possível viver a razão de Tertuliano, ou a razão de António Claro. 
Em "O Homem Duplicado", sinto os acontecimentos afunilarem-se em duas direcções, visões possíveis ou planos. Como é possível, adjectivar o afunilamento que formula a razão de um sentido, ao inferir-se a possibilidade de duas vias?
A história pode ser contada, lida e vivida sob o prisma e razão de Tertuliano Máximo Afonso - este confrontado com uma realidade inesperada e que lhe irá testar a capacidade ou poder de decisão para a buscar/explicar. A outra perspectiva, a que circunscreve a vida de um casal estável, onde a bomba despoletada por Tertuliano Máximo Afonso, fará apresentar António Claro como cópia, numa visão possivelmente redutora, ladeado por uma mulher insegura (com a relação original versus cópia).
Eis, que quem chegou à descoberta em segundo lugar, é rotulado de cópia ou se coloca nessa posição. A visão é aterradora, o meu "eu" não é original, criado do ventre de uma mãe... serei um produto fabricado em série? 
António Claro e a esposa são confrontados, e ao principio interpretam como uma suposta brincadeira, vêm-se decididamente a caminhar para a imersão num conflito de verdades e mentiras, despoletado por um telefonema. Este telefonema, e o seguinte irão mudar para sempre a vida destes dois personagens. Poderiam ter parado. Poderiam ter ignorado. Poderiam racionalmente ter tomado a decisão de não caminhar em direcção  ao um caminho desconhecido. Mas não. A consciência do "eu social", de quem sou, ou do poder que posso exercer sobre o "outro" com quem interajo, abriu as portas do caos e da necessidade irracional de buscar a verdade. 
António Claro não consegue fugir à curiosidade, e depois, à tortura de ter um, não semelhante, mas um igual a si até ao ínfimo detalhe. O "outro" que se lhe apresentou, que se intrometeu na pacatez da sua vida, que destruiu o seu lar, deverá ser apagado da face da terra. Primeiro que existe um "outro", o que não se entende à luz da lei da vida, depois, por vingança, por ter ousado intrometer-se num castelo que não era o seu. 
Assim, li eu, sob a visão interrogativa de Tertuliano Máximo Afonso. 
Assim, também li, sob a visão reactiva de António Claro.
Para finalizar, deixo a transcrição do último capítulo da obra, justificando a forma como comecei: "Esta obra apresenta-se de uma complexidade filosófica reflexiva assaz assustadora e perplexa."
Seria Tertuliano Máximo Afonso, o original?



(Tertuliano Máximo Afonso, professor de história, vive o drama... Quem é ele? E "eu"?)

(António Claro, actor de cinema, vive o drama de conhecer o seu outro "eu" - Como é possível?)

"O enterro de António Claro foi daí a três dias. Helena e a mãe de Tertuliano
Máximo Afonso tinham ido representar os seus papéis, uma a prantear um filho que
não era seu, outra a fingir que o morto lhe era desconhecido. Ele havia ficado em
casa, a ler o livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas, capítulo dos arameus.
O telefone tocou. Sem pensar que poderia ser algum dos seus novos pais ou irmãos,
Tertuliano Máximo Afonso levantou o auscultador e disse, Estou. Do outro lado uma
voz igual à sua exclamou, Até que enfim. Tertuliano Máximo Afonso estremeceu,
nesta mesma cadeira deveria ter estado sentado António Claro na noite em que lhe
telefonou. Agora a conversação vai repetir-se, o tempo arrependeu-se e voltou para
trás. É o senhor Daniel Santa-Clara, perguntou a voz, Sim, sou eu, Andava há
semanas à sua procura, mas finalmente encontrei-o, Que deseja, Gostaria de me
encontrar pessoalmente consigo, Para quê, Deve ter reparado que as nossas vozes
são iguais, Parece-me notar uma certa semelhança, Semelhança, não, igualdade,
Como queira, Não é só nas vozes que somos parecidos, Não entendo, Qualquer
pessoa que nos visse juntos seria capaz de jurar que somos gémeos, Gémeos, Mais
que gémeos, iguais, Iguais, como, Iguais, simplesmente iguais, Acabemos com esta
conversa, tenho que fazer, Quer dizer que não acredita em mim, Não acredito em
impossíveis, Tem dois sinais no antebraço direito, um ao lado do outro, Tenho, Eu
também, Isso não prova nada, Tem uma cicatriz debaixo da rótula esquerda, Sim, Eu
também. Tertuliano Máximo Afonso respirou fundo, depois perguntou, Onde está,
Numa cabina telefónica não muito longe da sua casa, E onde posso encontrá-lo, Terá
de ser num sítio isolado, sem testemunhas, Evidentemente, não somos quaisquer
fenómenos de feira. A voz do outro lado sugeriu um parque na periferia da cidade e
Tertuliano Máximo Afonso disse que estava de acordo, Mas os carros não podem
entrar, observou, Melhor assim, disse a voz, É essa também a minha opinião, Há
uma parte de bosque depois do terceiro lago, espero-o aí, Talvez eu chegue primeiro,
Quando, Agora mesmo, dentro de uma hora, Muito bem, Muito bem, repetiu
Tertuliano Máximo Afonso pousando o telefone. Puxou uma folha de papel e
escreveu sem assinar, Voltarei. Depois foi ao quarto, abriu a gaveta onde estava a
pistola. Introduziu o carregador na coronha e transferiu um cartucho para a câmara.
Mudou de roupa, camisa lavada, gravata, calças, casaco, os sapatos melhores."

Último capítulo, assim termina recomeçando... quiça por mais vezes




(...) "O Homem Duplicado", uma história de dois homens em tudo idênticos que apresenta, uma vez mais, um tema recorrente no meu trabalho: o outro. Com a diferença de que o outro é, no aspecto físico, um mesmo, que o todo de um se repete no outro, como se estivessem diante de um espelho diferente dos espelhos que utilizamos. Aqui, o meu lado direito não é o lado esquerdo do espelho. Acreditamos estar a viver uma alucinação, a pior de todas, porque a pessoa que temos à nossa frente, sendo outro, e também a que nós mesmo somos." (...)

em, "A Estátua e a Pedra"
Fundação José Saramago
Página 41

(O Homem Duplicado - Trailer oficial)


Na Bibliografia activa, na página da Fundação José Saramago, uma breve menção à obra.

Tertuliano Máximo Afonso, professor de História no ensino secundário, «vive só e aborrece-se», «esteve casado e não se lembra do que o levou ao matrimónio, divorciou-se e agora não quer nem lembrar-se dos motivos por que se separou», à cadeira de História «vê-a ele desde há muito tempo como uma fadiga sem sentido e um começo sem fim». Uma noite, em casa, ao rever um filme na televisão, «levantou-se da cadeira, ajoelhou-se diante do televisor, a cara tão perto do ecrã quanto lhe permitia a visão, Sou eu, disse, e outra vez sentiu que se lhe eriçavam os pêlos do corpo»Depois desta inesperada descoberta, de um homem exactamente igual a si, Tertuliano Máximo Afonso, o que vive só e se aborrece, parte à descoberta desse outro homem. A empolgante história dessa busca, as surpreendentes circunstâncias do encontro, o seu dramático desfecho, constituem o corpo deste novo romance de José Saramago.

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