Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 9 de maio de 2020

"Uma pessoa da família" publicado em 1986 na revista "Status" e agora recuperada na edição #75 da revista "Blimunda" (Agosto de 2018)

O presente texto pode ser consultado e recuperado aqui

"Em 1986, a extinta revista brasileira Status publicou um texto de José Saramago sobre a relação de Portugal com a literatura brasileira e vice-versa. Naquela altura o escritor mantinha na mencionada publicação uma coluna intitulada Notas do Ultramar. Em 1998, dias após José Saramago ser proclamado Prémio Nobel de Literatura, a também brasileira revista Bravo! recuperou a citada crónica e publicou-a. Agora, 20 anos após essa segunda vida do texto cujo título é «Uma pessoa da família», chegou a vez da Blimunda divulgá-lo."

Revista Blimunda - Capa da edição # 75 - Agosto de 2018

"Dizia-me aquele português em São Paulo, ou, por maior rigor, de São Paulo, pois aí vive e trabalha e daí não pensar retirar-se, dizia-me ele sorrindo com a amizade que guarda e a ironia que ao acaso lhe parecia adequada. “Sabe você como já chama os brasileiro a Fernando Pessoa?”. Levantei um sobrolho perplexo e inquisitivo, esperei o fim da pausa retórica que, pelos vistos, o meu amigo queria prolongar, enfim acedi a entrar no jogo: “Chamam-lhe Fernando Pessoa, suponho”. O tom provocador que eu dera à resposta não lhe apagou o sorriso, e as palavras seguintes vieram tocadas por um certo ar de comiseração que ainda mais afiava a ironia: “Chamam-lhe grande poeta da língua portuguesa, pois então”. Compreendi onde ele queria chegar: “Não dizem grande poeta português?” E ele, empurrando a faquinha: “Cada vez se vai dizendo menos”.
Confesso que não gostei. O meu patriotismo literário ofendia-se com a ligeireza, a sem-cerimónia dos irmão brasis, ou primos, que, não pensando, obviamente, em discutir ou ignorar a grandeza do poeta, decidem escamotear-lhe a nacionalidade, tomando como fundamental, quem sabe, a própria sentença de Pessoa: “A minha pátria é a língua portuguesa”. Disse ao amigo que a atitude configurava forte abuso, que realmente o Brasil sofria de vertigem imperial e que, por esse andar, acabariam por levar-nos o próprio Luís de Camões, ou o Eça de Queiroz, e a Deus, graças por dos mais escritores portugueses conhecerem tão pouco. Exprimi um mau humor nacionalista porventura louvável, mas, logo o percebi, culturalmente pueril.
As coisas são o que são, serem-no é a sua irrefragável força, e a nós cabe-nos tentar compreendê-las, ajeitá-las, se possível, à oportunidade e ao interesse da ocasião, mas respeitando-as sempre, evitando sobretudo cair na tentação da avestruz, o que, na circunstância, seria fingir que as coisas, afinal, são outra coisa. Não estou a brincar com as palavras, pelo menos não mais do que o gosto de ordená-las ao longo de um pensamento para tentar exprimi-lo com a maior clareza possível. Se os brasileiros chamam a Fernando Pessoa de grande poeta da língua portuguesa é porque o admiram e respeitam, porque o desejariam seu. Bom proveito, então, lhes faça tanto mais que Fernando Pessoa é bastante grande para satisfazer dois países e povos, e ainda sobejar Pessoa. também eu desejaria que Manuel Bandeira fosse meu como igualmente desejaria que o fosse Antonio Machado, nascido aqui ao lado, em Espanha, e esse, provavelmente, é o único caso em que uma coisa dividida se tornará tanto maior quanto mais dividida estiver. Tomem pois os brasileiros, para si, a Fernando Pessoa, que não ficaremos mais pobres por isso. Pelo contrário. A cultura a que Fernando Pessoa pertence é a cultura da fala e da escrita portuguesa, aquela pátria única que ele, em palavras brevíssimas e lapidares, como convinha, definiu de uma vez para sempre.
Mas seria mais útil que nos entendêssemos quanto ao resto. Essa cultura de que a língua portuguesa é o veículo e o instrumento não principiou no dia 7 de setembro de 1822, quando a independência do Brasil foi proclamada. Para trás não ficavam o caos, o tempo das trevas, a brutalidade da ignorância. Para trás ficava, sim, um formigueiro cultural com quase 700 anos de trabalho miúdo e algumas grandes empresas. Usando a metáfora mais luminosa, de ar livre e céu aberto, a parte visível da cultura que diremos brasileira emerge e assenta, como parte visível de um iceberg, sobre a massa profunda da história e da cultura portuguesa. 
A cultura brasileira tem uma pré-história, e essa, dêem-lhe as voltas que entenderem é, e não pode deixar de ser, a cultura portuguesa. Levem-nos o Fernando Pessoa, mas não julguem que levam tudo com ele. Compete aos brasileiros, claro está, responder se proclamaram o nascimento de sua cultura na mesma data em que proclamaram a independência nacional, ou se reconhecem como também seu aquele remoto ano em que uma palavra se descobriu portuguesa, para, sendo história, começar a ser cultura.
Tranquilizai-vos, porém. Cuido saber dos fatos da vida o suficiente para não ceder à ingenuidade, senão à estupidez, de considerar as culturas brasileira e portuguesa como meramente e mutuamente complementares de um só corpo cultural, o que, por caminho tão vicioso, equivaleria a querer meter num saco de conflitos todas as culturas de língua portuguesa, a pretexto de uma história em parte comum, ainda que sombria e sangrenta, como tantas vezes o foi. Sou pouco de impérios, velhos ou novos. O Brasil e Portugal vão, cada um por seu pé, aonde tiverem de ir, chegarão onde puderem chegar, felizes ou apenas resignados. E não creio que, nas horas más, um possa ajudar o outro: hoje ninguém ajuda ninguém. Mas somos gente de uma imensa família, de uma mesma língua, de uma cultura que é, embora diferentemente, mesma. Se os brasileiros se recusam a aceitar essa evidência, se o dia 6 de setembro de 1822 é, para eles, anterior à criação do mundo, então façam o favor de nos devolver Fernando Pessoas."



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