Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 10 de maio de 2020

"A separação ibérica idealizada por José Saramago" - por João Céu e Silva (DN/1864 (01/02/2020)

"Trinta anos antes do referendo do Brexit, o escritor separou a Península Ibérica do continente europeu. Um sonho que a Inglaterra persegue, apesar de já ser uma ilha, ao querer afastar-se da União Europeia após o voto popular de 2016."



"Trinta anos antes do referendo do Brexit, 
José Saramago separou a Península Ibérica do 
continente europeu no livro A Jangada de Pedra."

"A separação ibérica idealizada por José Saramago" - por João Céu e Silva (DN/1864 (01/02/2020)
Pode ser recuperada e consultada aqui
em https://www.dn.pt/1864/a-separacao-iberica-idealizada-por-jose-saramago-11763278.html

"Não é o cão Constante o protagonista de José Saramago que tem mais importância no romance A Jangada de Pedra, mas até o animal é um símbolo do ceticismo do escritor perante a ideia da integração dos dois países ibéricos na Comunidade Económica Europeia (CEE) - a atual União Europeia. Quem dá início à cena fantástica que separa a península do restante continente europeu é Joana Carda, ao riscar com uma vara de negrilho o chão espanhol perto da fronteira com a França, um gesto que separa a terra ibérica e a empurra para uma viagem em direção aos mares atlânticos do Sul.

O cão Constante é, no entanto, o ser ibérico que hesita entre as terras de Espanha e as de França ao sentir a fenda abrir-se com o gesto de Joana Carda e que pula para o lado de cá, colocando-se do lado da opção saramaguiana de quem vive na Península Ibérica e é contra o esquecimento atávico dos poderosos da Europa."

"A Jangada de Pedra é o romance publicado em 1986, exatamente 
quando Portugal e Espanha aderem à CEE numa cerimónia cheia 
de significado ao usar o claustro do Mosteiros dos Jerónimos para 
assinar o processo. Saramago é contra por considerar que essa adesão 
não irá retirar os dois povos de um esquecimento de há muito e de 
uma falta de identificação com o continente além-Pirenéus."

"A Jangada de Pedra é o romance publicado em 1986, exatamente quando Portugal e Espanha aderem à CEE numa cerimónia cheia de significado ao usar o claustro do Mosteiros dos Jerónimos para assinar o processo. Saramago é contra por considerar que essa adesão não irá retirar os dois povos de um esquecimento de há muito e de uma falta de identificação com o continente além-Pirenéus. Na boca das personagens Joana Carda, Maria Guavaira, Joaquim Sassa e José Anainço, além desse cão com um papel preponderante - não é o único cão importante na sua obra - vão-se contando as grandes objeções a essa espécie de unificação europeia e dados exemplos dos desfasamentos entre as culturas e as realidades sociais das duas partes.

Pode-se dizer que A Jangada de Pedra é um argumento que agora se concretiza quando se observa a Inglaterra apostada na efetivação do Brexit, uma ideia para um romance que alguns escritores portugueses consideram genial, apesar de ser unânime que o romance sofre de um grande problema, um início fulgurante e a ausência de matéria-prima para se manter ao mesmo nível literário. Essa questão não escapou ao próprio autor, que como recorda o seu antigo editor, Zeferino Coelho, ouviu Saramago referir que "é um romance em que o clímax está no princípio"."


"A Jangada de Pedra, livro de José Saramago, foi publicado em 1986, 
no mesmo ano em que Portugal e Espanha aderem à CEE."

"A comparação entre A Jangada de Pedra e o Brexit desejado pela Inglaterra salta à vista trinta anos depois, mesmo que esta saída do Reino Unido tenha protagonistas e situações bem diferentes das de José Saramago. No romance, os protagonistas não são tão inventivos como os políticos britânicos e o tremor que leva à separação é feito de simbologias pouco reais: uma meia de lã azul que se desfaz sem um fim, uma pedra lançada ao mar que viaja uma distância impossível ou uma revoada de estorninhos. Mas o ceticismo de Saramago e de algumas das suas personagens em relação à futura União Europeia é replicado no Brexit. Segundo o ex-ministro da Cultura o poeta Luís Filipe Castro Mendes "não foi preciso arrancar a ilha [a Inglaterra] do seu lugar porque já está separada fisicamente do continente", no entanto pode imaginar-se a Inglaterra como a península de Saramago "numa deslocação política rumo aos Estados Unidos". É, no seu entender, "uma perfeita analogia entre uma península que sai da Europa rumo à América Latina e uma Inglaterra que sai rumo à América". Ou seja, conclui: "Um movimento que José Saramago antecipou."

Na base da separação de A Jangada de Pedra está o ceticismo de Saramago. Para Castro Mendes, o "escritor participa de um ceticismo de esquerda, em que vê na Europa uma manifestação do poder do capitalismo, daí não simpatizar com a ideia europeia porque esta tem servido para aprofundar o fosso entre os países com diferentes níveis de desenvolvimento económico dentro da [futura] União Europeia - isso viu-se durante a troika, através de uma clivagem entre credores e devedores que é contra o ideário de solidariedade e de coesão -, que provocou uma evolução negativa nos últimos anos e o consequente crescimento do euroceticismo"."

"Para Zeferino Coelho, tudo tem que ver com a maneira como 
José Saramago vê a Europa e dá uma versão sobre como nasce 
o romance: “ele ia num comboio entre paris e Bruxelas com 
mais gente e conversavam. Então, Saramago propôs às pessoas 
adivinharem as nacionalidades de cada uma e nenhuma delas falou 
em Portugal.”© Global Imagens"

"Para Zeferino Coelho, tudo tem que ver com a maneira como José Saramago vê a Europa e dá uma versão sobre como nasce o romance: "Ele ia num comboio entre Paris e Bruxelas com mais gente e conversavam. Então, Saramago propôs às pessoas adivinharem as nacionalidades de cada uma e nenhuma delas falou em Portugal." Será este esquecimento que há na Europa em relação a Portugal que está na origem do romance, além de que todo o processo da União Europeia do ponto de vista do escritor "depende do grande capital europeu". Portanto, "achava que a utopia de haver uma fuga para esta realidade nos povos ibéricos só resultaria se pudessem ter uma vizinhança com os povos africanos e sul-americanos, que sofrem a mesma opressão da parte do grande capital europeu e americano. Era isto que ele tinha na cabeça e daí a ideia daquela rutura [terrestre], que é uma ideia mágica".

É o potencial da metáfora inicial de Saramago na construção d'A Jangada de Pedra que mais surpreende os leitores. O seu antigo editor considera que essa criação "acontece muito na obra do Saramago, como no Ensaio sobre a Cegueira, em que as pessoas cegam sem se saber porquê, e assemelha-se ao que se faz na geometria: lança-se um conjunto de dois ou três princípios e deduz-se a partir daí. Foi isso que ele também fez nesse romance."

Magia premonitória
A escritora Lídia Jorge considera que "na altura achou o livro interessante e, passado todo este tempo, ainda o vê tão forte e premonitório. Ultrapassa uma visão comum portuguesa, é internacional". Para a autora, que recentemente recordou o romance por necessidade de escrever um texto sobre a questão da Europa, o que Saramago faz "numa forma um pouco irónica é intuir o que nós todos só hoje percebemos. Que os países quando não são ilhas gostariam de o ser". No caso da Grã-Bretanha e do Brexit, a Inglaterra já "tem a grande vantagem de ser uma ilha, mas a Alemanha bem gostaria de ter sido uma ilha, tal como a França, e o mesmo se passa com Portugal, que também gostaria de se ter deslocado do seu sítio afastando-se de Espanha." Acrescenta: "A história dos países que são tomados de ideias de grandeza porque têm uma história que é única começam a funcionar no imaginário como ilhas. José Saramago percebeu isto muito bem em 1986, transformando a península nessa jangada porque não é vista pelos outros europeus como um espaço geopolítico importante. O que ele demonstra é que se a Península Ibérica fosse deslocada, tornar-se-ia tão incómoda que toda a gente nela iria reparar."

"Também o escritor Mário Cláudio acha a tese de 
A Jangada de Pedra muito interessante: "A metáfora 
que José Saramago escolheu é um achado e qualquer
 autor europeu gostaria de a encontrar, mas a verdade 
é que só nós é que a poderíamos ter por razões de 
ordem geográfica e histórica e estaríamos em condições 
de levar avante um livro destes."© Rui Oliveira /Global Imagens"

"Também o escritor Mário Cláudio acha a tese de A Jangada de Pedra muito interessante: "A metáfora que José Saramago escolheu é um achado e qualquer autor europeu gostaria de a encontrar, mas a verdade é que só nós é que a poderíamos ter por razões de ordem geográfica e histórica e estaríamos em condições de levar avante um livro destes." Já se fosse um autor inglês, diz, "não faria a sua ilha deslocar-se para o mar da América do Sul, antes rumar à Irlanda, por exemplo, porque a Inglaterra não tem um imaginário comum tão forte como nós com a América Latina". Para Mário Cláudio, este romance tem características políticas muito especiais. Nada que estranhe: "Os meus livros são políticos também, mesmo que passados noutras épocas. É o caso da reedição recente de As Batalhas do Caia, que aborda a questão ibérica sempre recorrente da anexação de Portugal pelo país vizinho. Coincidentemente, ambos tratam de questões ibéricas."

"A escritora Lídia Jorge considera que “na altura achou o livro 
interessante e, passado todo este tempo, ainda o vê tão forte e 
premonitório. Ultrapassa uma visão comum portuguesa, 
é internacional”.© DIANA QUINTELA / GLOBAL IMAGENS"

"Lídia Jorge alerta ainda para o facto de na altura o romance "ter sido olhado de forma depreciativa porque a ideia que estava na base de José Saramago era a de ser contra a integração de Portugal e de Espanha na CEE. Aparece como um livro ilustrativo de uma ideia antieuropeísta, só que passado este tempo todo essa raiz desaparece para ficar a ideia pura, que é a criação de uma nova geografia. E o desejo que os países têm de uma nova geografia é muito forte, veja-se que no Brexit existe o aproveitamento absoluto dessa ideia e, no momento em que esse país está em crise, pensa que tal situação vem das vizinhanças e quer tornar-se uma ilha. Como já o são, aproveitam isso da forma que estamos a observar".

Zeferino Coelho não se surpreendeu como a temática quando recebeu o original: "Nada daquilo é estranho na forma como Saramago via a Europa e as questões do mundo. Tem um pouco de realismo mágico, porque é um livro que começa com uma coisa fantástica - a separação do continente europeu - e segue-se um conjunto de coisas também fantásticas que vão acontecendo como surgem na vida, só que irão ter uma importância grande."

"Segundo o ex-ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes, 
“não foi preciso arrancar a ilha [a Inglaterra] do seu lugar 
porque já está separada fisicamente do continente”, no entanto 
pode imaginar-se a Inglaterra como a península de Saramago 
“numa deslocação política rumo aos Estados Unidos”.© Global Imagens"

"Para o escritor Mário Cláudio, A Jangada de Pedra tem apenas o óbice do seu tamanho após a impactante metáfora inicial: "O livro aproveitaria se fosse um pouco mais curto porque haveria uma poupança de prosa benéfica." Já para Luís Filipe Castro Mendes, o romance "é feito com a coerência que José Saramago sabia pôr no seu trabalho e nas alegorias que desenhava". Explica: "Ele constrói o romance a partir de uma suspensão da credibilidade e aproveita esse arrastar telúrico da península pelos mares para criar uma verosimilhança que lhe é habitual. O leitor avança na leitura com aquele pressuposto e dentro dele constrói uma realidade verosímil - essa é a grande força da ficção e do grande romancista - dentro de um pressuposto de total inverosimilhança. Nesse aspeto é magnificamente construído, mas as ideias dos romances de Saramago são sempre grandes."

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