Texto de José Augusto Mourão
Publicado na revista LER, edição Primavera/Verão de 1997
Páginas 46 a 51
"Tout le livre tourne autour de la possibilité/impossibilité de
représenter le mal absolu."
(Paul Ricoeur)
"Os profetas são sempre necessariamente profetas da desdita,
pois a catástrofe sempre pode ser. pressuposta.
O extraordinário é a salvação e não a decadência."
(H. Arendt)
"On est lâches, chétifs et mols,
Vieux, convoiteux et mal parlant
Je ne vois que folies et fols
La fin approche en vérité
Tout va mal!"
(Eustáquio Deschmaps)
"A temática é velha, antiquíssima, e resume-se neste sintagma: «tudo vai mal». Sébastien Brant (1494), Thomas Murner (1509-1512), Erasmo (1509) e, mais perto de nós, Raoul Vaneigen (1990) e Saramago fazem parte da cadeia de visionários e profetas que apostrofam os seus contemporâneos acerca da loucura que os espreita e do mal sem remédio que varre o mundo anunciando o seu fim. As sentinelas que vigiam a noite e o dia vivem do êxtase branco de uma visão sem olhos, preocupados com a ideia de contágio — quando não os atingiu a cegueira, que é a impossibilidade da figura. «Como está o mundo, tinha perguntado o velho da tenda preta, e a mulher do médico respondeu, Não há diferença entre o dentro e o fora, entre o cá e o lá, entre os poucos e os muitos, entre os que vivemos e o que teremos de viver.» (p. 233) O profeta não empresta voz diferente à sentinela: «Sentinela, em que pé está a noite?» E a sentinela responde, invariavelmente: «A manhã chega, igualmente a noite. Se quereis sabê-lo, voltai a interrogar.» (Is. 21, 11) O pregão vem de longe, com ressonâncias apocalípticas e messiânicas claras, convocado pela estratégia da alegoria, que é a estratégia que mais convém ao jogo do ser e do parecer. Que é uma alegoria? Muito sumaria-mente: representação de uma coisa na semelhança de outra. Imagem superlativa que visa efeitos visuais e linguísticos, uma «espécie de pintura» em que pretende mudar a poesia, como pretendia Quatremère de Quincy: ao substituir «a ideia do objecto físico e sensível pela ideia do ser moral, ou abstracto, (ela) torna-se para a poesia uma espécie de pintura, que se dirige aos olhos da imaginação, e parece dar corpo às coisas mais incorporais». Estatuto deste veículo: a alegoria supõe o poder do não-dito de agregar os signos de que só vemos fragmentos enigmáticos e ao mesmo tempo supõe a existência da verdade e a sua ocultação — é porque estamos exilados do verdadeiro que somos alegoristas. Como as imagens dos santos nos altares, estamos condenados a ver a nossa própria cegueira. As imagens vêem se olhamos para elas. Mundo de cegos este, conduzi-do por cegos, que vai de mal a pior (Mt. 15, 14)."
A conjectura
"Na Grécia, a operação alegórica teve primeiro o nome de hyponoia, que por oposição ao discurso simples designa a conjectura ou a suspeita. Hypo-noein é apanhar o subentendido, a significação que um véu recobre; allo agoreuein é declarar publicamente (na ágora) uma coisa diferente daquilo que se diz. Sugerir a alteridade ou o sentido críptico. Quintiliano descreve a alegoria como metáfora contínua que de demasiado obscura pode tornar-se enigma. Interpretativa ou expressiva, a alegoria é sempre uma significação segundo o outro, com um papel moral e cognitivo, e não apenas ornamental. A comunicação não pode a priori restringir-se a ser um acto de codificação/descodificação puramente linguístico; a noção de metáfora como desvio obedece ao pressuposto de que um enunciado se interpreta em geral através de simples codificação/descodificação do código linguístico. A literariedade ou a poeticidade de uma metáfora está ligada não apenas à riqueza das inferências que ela implica, como também à polifonia que manifestam. Por exemplo, os enunciados que constituem o texto poético não são próprios do locutor-poeta, sim de enuncia-dores-estafetas, que traduzem antes de mais uma voz universal, como no caso dos provérbios ou dos ditados, cujo parentesco com as formas poéticas (aliterações, ritmo, paralelismos, etc.) é nítido. O processo da enunciação assumido por um enunciador universal explica-se pelo facto de o texto «poético» não exprimir uma experiência singular, mas o desenrolar de protótipos conhecidos de todos, remetendo não para um real singular mas para um universo prototípico que evoca um saber partilhado. O romance de Sara-mago está recheado dessa polifonia. O polilogismo desta escrita fica bem visível no recurso ao ditado, por exemplo, que é muito recorrente: «Morrendo o bicho acaba-se a peçonha.» (p. 88) Ou: «Ódio velho não cansa.» (p. 86)
"Os mundos possíveis"
"O romance, que tinha outrora uma função nítida —fazer de sociologia —, perdeu hoje esse desígnio. Mas não perdeu os recursos do para além do descritivo próprios da linguagem, como não perdeu o alcance cognitivo que vem da capacidade expressiva da linguagem. A Escrita ou a Vida, de Jorge Semprún, ilustra admiravelmente aquilo a que Paul Ricoeur chama a possibilidade e a impossibilidade de representar o mal absoluto. Impor cânones narrativos/descritivos a uma experiência limite, nisso consiste hoje a arte de contar histórias. E que é contar histórias se não construir mundos? Como construir um mundo? — esta é a pergunta a que todo o autor tenta responder. O mundo da cegueira é um mundo entre dois mundos. Como descrevê-lo?
Há uma tentativa clássica, à maneira de Diderot. No mundo da cegueira todo o aparelho do sentido comum soçobra: nenhuma síntese central, nenhuma finalidade preencherá a ausência de ligação entre o seu repertório sensível, o tacto, e a visão que serve de modelo àqueles que roubam. O único problema que se põem diz respeito à unidade da sua experiência, dado que a cegueira os condena a viver entre dois mundos. Que podem fazer? Construir um mundo próprio, continuando ligados ao resto dos homens, persistindo em falar a sua linguagem. O tacto supre tudo, é o filme de trama, a intensidade dominante que entra em ressonância com todas as ordens sensíveis. Por sobreposições, recria para o seu próprio mundo o universo do visível. O poder secreto do artificio é a ideia da selecção interna: a produção de um acordo imanente, apenas pela prática. Saramago inscreve-se neste modo de apresentar o mundo da cegueira, acrescentando-lhe um outro mundo — o da microfísica do poder. A sociedade contemporânea é uma sociedade disciplinar. As figuras da quarentena e do manicómio resumem o dispositivo concentracionário em que se tornam as relações sociais quando o fantasma do contágio aflora.
Comecemos pelo problema do género: Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, é um ensaio ou um romance? O ensaio é o género literário mais livre que existe. O seu modo bem poderia ser aquele que Montaigne enuncia como «Je vais enquérant et ignorant.» J. Starobinski acrescenta: só um homem livre ou libertado pode inquirir e ignorar. Um dis-curso sem falha é o contrário do ensaio. Só o intuito pedagógico que preside à escrita de Saramago poderia fazer passar este Ensaio Sobre a Cegueira por ensaio. Mas a pedagogia é apenas uma das modulações deste livro que visa uma ética da inquirição: «Vejo outro mundo» (p. 309) e da «visão sem olhos» (p. 196). O romance assume figurativa-mente o saber, o fazer saber, a comunicação injuntiva, logo, também uma parte do ensaio, sem ser ensaio. Um género define-se por interacções de normas que envolvem as quatro componentes do nível semântico: a temática dá conta dos conteúdos investidos, isto é, do sector do universo semântico presente no texto; a dialéctica dos intervalos temporais no tempo representado, da estruturação dos estados entre estes intervalos e do desenvolvimento aspectual dos processos nestes intervalos; a dialógica dá conta das modalidades, sobretudo enunciativas e avaliativas, assim como dos espaços modais que descrevem; a táctica dá conta da disposição sequencial do significado ( tier: 1994: 40). Por esta tipificação se vê que o livro de Saramago pertence ao género romance e não ao ensaio, mais do tipo valorativo, argumentativo ou retórico. Como se aplicam neste livro tais categorias? Há evidentemente uma temática fixa (isotopia genérica de campo figurativo, moléculas sémicas próprias ao idiolecto do autor) — a «cegueira» contém neste livro o sema mesogenérico /mal/; este interpretante permite actualizar o sema no semema do Ensaio Sobre a Cegueira. Na dialéctica, o inventário dos actores é fixo. As funções são reversíveis (ver/deixar de ver) e a sua sucessão é ordenada fixamente. A dialógica caracteriza-se pela preponderância do factual e os nichos enunciativo e interpretativo são tanto fixos como variáveis. A táctica não corresponde a nenhuma sucessão temporal, mas a uma sucessão estrita."
"O papel da sentinela cabe aqui ao «cronista», o último sobrevivente da era do livro,
mesmo se as notícias que conta têm já o estatuto de «histórias desfiguradas».
Se resiste, em nome de que resiste? Arrisque-se uma hipótese: em nome de uma arte
narrativa, afinal um «saber oficinal» que Saramago controla, e mais, em
nome da ética do rosto: «a responsabilidade de ter olhos».
Há uma ética do rosto, em que o outro se me mostra simultaneamente desarmado,
vulnerável e defendido, aberto e em fuga."
"A pulsação do sentido"
"O Ensaio principia, caminha, faz-se, através de rupturas dramáticas que vêm criar a angústia, o estupor e o anúncio de um acontecimento iminente que o leitor espera, mas tarda. Este suspense, juntamente com a saturação do quadro narrativo constituem a trama diegética de uma crónica permanente de um acontecimento anunciado. A história patina, o leitor satura-se, o desenvolvimento linear é mínimo, pobre, só o ritmo da escrita sustém o espaço fechado da narrativa. A «inquietante estranheza» do romance assenta num contexto simbólico muito geral — o do mal, v.g., e a maneira como o poder, impiedosa, lucidamente trata o seu «outro», cujos dispositivo carceral e microfísica do poder Foucault luminosamente desmontou.
A arte narrativa de Saramago consiste muito, neste livro, em manter a pulsação do sentido o mais próxima da lentidão em que decorre a «história». No efeito de descrição pormenorizada, implacável do espaço concentracionário em que os cegos se revêm, pode-se ver o batimento desta pulsão que liga o passado e o futuro virtual a que podemos chamar expectativa. Não há personagem que não viva desse patamar modalizante, às portas da esperança. A orientação de um caminho está ligada ao sentido de um desejo. Talvez a felicidade seja um lugar utópico: vivível e não vivível. O lugar em que os cegos agora vivem — asilo, prisão, hospital, campo de concentração — é um vivível lugar de morte, um inferno.
Não se trata aqui da cegueira como destino individual, a mancha de Borges ou de Milton, mas de uma história de contágio que atinge uma comunidade inteira. Toda a gente está cega. O mundo caminha cruelmente, para a barbárie mais primitiva de milhões de cegos governados por cegos que, vendo, não vêem a noite em que precipitaram o mundo. Cegueiras várias, que invadem tudo: cegueira de lutar, de matar, de mandar, de organizar (pp. 134, 189,198), cegueira de sentimentos (p. 242). O efeito-Saramago neste livro deriva da pobreza temática trazida pelos diferentes actores à superfície do texto e sobretudo da condensação da intriga. Fazer aparecer aos olhos de todos as realidades menos sensíveis. A alegoria da cegueira serve aqui fins morais e cognitivos, tanto religiosos como políticos. Saramago desempenha o papel do moralista, pintor das paixões humanas sob a forma da alegoria. Eis um livro que teremos de chamar sapiencial, pela temática e pela forma de expressão. Mas o Ensaio é também um livro sobre a questão da escrita. A escrita inscreve-se na indecisão entre a língua, marca do uso colectivo, e a fala, que depende da liberdade individual. Escrever, em Saramago, exige uma cautela vocabular, um tactear à procura das palavras (pp. 32,31,199). Mesmo o desenvolvimento da narrativa, do género SITUAÇÃO I: ontem vimos, SITUAÇÃO II: hoje não vemos, SITUAÇÃO I1• amanhã veremos, está minado, ou modalizado, por «uma ligeira entoa-ção interrogativa na situação final, ameaçada pela reticência de uma dúvida à esperançadora conclusão» (p. 124). Não fora a arte narrativa do autor, a história perderia o fôlego, o ritmo, a cabeça e o leitor a paciência. Só uma sensibilidade meteorológica permite destacar o tempo dos personagens e a aceleração da intriga. A passagem da SITUAÇÃO I à SITUAÇÃO III é demasiado nevrótica, retensiva, para que o equilíbrio entre o pragmático e o cognitivo se faça sem risco de ruptura. A desestabilização do ritmo narrativo advém no Ensaio Sobre a Cegueira de uma certa desarmonização das temporalidades — a do narradora do narratário."
"Apocalipses"
"O romance de Saramago é do género apocalíptico: obriga a interpretar. Que proclamam os seus cegos? Leia-se atentamente a tábua dos acontecimentos anunciados na praça pública e que vão do fim do mundo (a salvação penitencial, visão do sétimo dia, advento do anjo, colisão cósmica, extinção do sol, espírito da tribo) à morte da palavra (p. 284). É espantosa esta enumeração. Aqui se regista a emergência de sintomas do fim, com a proliferação de adventismos, angelologias selvagens, hermetismos de todas as cores, castratismos, mortes.
Saramago, como o analista, procura a palavra que cura estas inclinações apocalípticas, detectando os desestabilizadores nos seus analisandos que são os personagens sem nome. O livro tem, por vezes, a aparência de uma longa recensão documental, como se o horrível da cegueira só numa litote do horrível pudesse ser apresentado. O papel da sentinela cabe aqui ao «cronista» (p. 161), o último sobre-vivente da era do livro, mesmo se as notícias que conta têm já o estatuto de «histórias desfiguradas>, (p. 150). Se resiste, em nome de que resiste? Arrisque-se uma hipótese: em nome de uma arte narrativa, afinal um «saber oficinal» que Saramago controla, e mais, em nome da ética do rosto: «A responsabilidade de ter olhos» (p. 141). Há uma ética do rosto, em que o outro se me mostra simultaneamente desarmado, vulnerável e defendido, aberto e em fuga. O olhar e o dizer caminham juntos: a palavra e a fonte da imagem; mesmo o cego diz que vê. A figura apela para o infigurável, o interdito da representação. A exterioridade do outro a quem o discurso se propõe atesta a impossibilidade de a linguagem se fechar na imanência e a necessidade de se referir a um interlocutor que o transcende. Este é um livro também sobre a interpretação. Trata-se, sem equívoco, de um Ensaio Sobre a Cegueira conduzido como uma história da cegueira (no plano narrativo) metaforicamente transposta. O Ensaio resulta da operação de interpretação que o leitor deve fazer: visto isto, olhemos aquilo. Donde também o seu carácter parabólico: é uma narrativa escatológica do ser humano (p. 133), o mundo está todo aqui dentro (p. 102), concentrado (p. 151); o mal branco (p. 150) atinge--nos a todos. A cegueira é como as paixões e a moral da paixão, metonímica deriva do contágio, «rastilho» (p. 150)."
"Coda"
"A transmissão de uma obra de arte é antes de mais a transmissão da sua abertura, logo também da sua interrupção, que é também o seu meio: o ponto em que ela deixou o seu autor para se enxertar num auditor/leitor que ela interroga: e tu, que vês tu?
As ideologias que até aqui sustentaram o mundo são eufóricas e estreitas, com semiologias sólidas. Remédios semióticos contra tais estados são a arte, a literatura, a sabedoria, o afecto (comunidades interprecrita parabólica procede por encadeamentos figurativos, avança de lado, paralelamente ao discurso causal, linear. A. J. Greimas pretendia que as parábolas apelavam para o fiduciário, reconhecível nas relações humanas mais quotidianas e nos discursos inovadores. A parábola era para ele uma forma de abertura, «um estilo de resposta à vida», «uma for-ma de vida». Escrever para responder à vida pode ser uma boa divisa para quem exerce o ofício de escrever. Escrever para nada, em nome de nada? Saramago atribui-se a si próprio uma «costela pedagógica», fac-to que não o reduz a ser um bom contador de histórias mas, antes, o apresenta como alguém preocupado com o nosso destino comum. A mulher do médico encarna esse ponto critico, vidente de quem circula entre cegos, descendo até ao limite do horror, sem perder a esperança. É através dela que Saramago nos olha. Sem ceder ao niilismo, ele mantém-se de pé como a sentinela que perscruta o horizonte, respondendo a quem pergunte: «Sentinela, em que pé está a noite?» E a sentinela responde, invariavelmente: «A manhã chega, igualmente a noite. Se quereis sabê-lo, voltai a interrogar.» (Is. 21, 11) Demasiado tempo desconfiámos dos dados da experiência, sem acreditarmos na intangibilidade das verdades eternas. O primado do inteligível sobre o sensível, que é a marca da condição humana e do conhecimento finito. O consentimento a esta reviravolta que é também o princípio de uma nova legitimação da esfera estética deixou também em nós as suas marcas: deixámos de reflectir. Perdemos o «mundo» e o «juízo». Ora, o homem que não reflecte é como o animal que se abate, diz o salmista. Paradoxalmente, é quando o mundo se faz imagem — o saber publicitado, o sagrado dos congressos e do desporto, as artes plásticas — que a cegueira cobre o mundo do seu véu de cinismo e de desaparição. O triunfo do audio-visual é afinal o triunfo do simulacro. Em semiótica diz-se que o parecer promete o ser. No audiovisual, ser é ser percebido, parecer é ser. Quem olha o simulacro é tentado a tornar-se simulacro. O esplendor do falso, seduzindo, cega. O livro de Saramago denuncia essa tentação, convocando para a vigilância crítica e para a compaixão. Porque sem piedade pelo que foi, o juízo peremptório, definitivo, será apenas violência."
"A arte narrativa de Saramago consiste muito neste livro em manter a pulsação
do sentido o mais próxima da lentidão em que decorre a «história».
No efeito de descrição pormenorizada, implacável do espaço concentracionário
em que os cegos se revêm, pode-se ver o batimento desta pulsão que liga
o passado e o futuro virtual a que podemos chamar expectativa.
Não há personagem que não viva desse patamar modalizante, às portas
da esperança. A orientação de um caminho está ligada ao sentido de um desejo."
"A cegueira está a invadir tudo. Até as imagens dos santos estão de olhos vendados, condenadas a ver a sua própria cegueira. É verdade: as imagens só vêem com os olhos que as vêem. Denúncia da estupidez de ídolo que a imagem estática manifesta? A proscrição das imagens — supremo mandamento do monoteísmo — proíbe a imitação enganosa e paralisante da eternidade. A imagem, a cegueira como alegoria são fenómenos ambíguos: é preciso pôr em movimento a estátua imóvel e fazê-la falar: «A voz é a vista de quem não vê.» (p. 120) Responsabilizá-la: «Como queres tu que continue a olhar para estas misérias, tê-las permanentemente diante dos olhos, e não mexer um dedo para ajudar?» (p. 135) E quem melhor para ajudar do que o romancista Saramago, que nos dá em sinais aquilo que se rebela a qualquer significação ideal prévia: a literatura?
«As metáforas absolutas dão resposta àquelas perguntas supostamente ingénuas e em princípio sem contestação possível, cuja importância radica pura e simplesmente em que, porque não as fazemos, não são elimináveis, encontra-mo-las todavia como já feitas de antemão no fundo da própria existência.» O absolutismo da metáfora está no seu modo de caracterizar o sentido, na sua orientação e modo de ver o homem e o mundo. As metáforas são absolutas quando não se deixam substituir por conceitos. A metáfora da cegueira — mar de leite, mal-branco — obriga a olhar para a realidade em que vivemos de olhos abertos (p. 152), sem conceitos. De frente. «A cruz da natureza eminente-mente escatológica do ser humano.» (p. 133) •"
"BIBLIOGRAFIA
José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, Lisboa. Caminho e Círculo de Leitores, 1995.
Quatremère de Quincy, Essai sur la nature, le but et les moyens de l'imitation dans les beaux-arts (1823, p. 333).
Diderot, Lettre sur les aveugles à l'usage de ceux qui voient, Vernière, in Oeuvres philosophiques, Garnier.
Jean Starobinski, Cahiers pour un temps. Centre Georges Pom-pidou, 1985.
A. J. Greimas, «Le savoir et le croire: un seul univers cognitif», Du sens II, Paris, Seuil, 1983.
Hans Blumenberg, Paradigmen zu einer Metaphorologie, Bonn, 1960. Cf. Franz J. Wetz, Hans Blumenberg. La modernidad y sus metáforas. Novatores, 1996."