Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

"Sobre Fernando Pessoa" - 30 de Novembro, data em que se assinalam os 81 anos da morte de Fernando Pessoa

30 de Novembro, data em que se assinalam os 81 anos da morte de Fernando Pessoa

25 de Novembro (de 1995)
"Sobre Fernando Pessoa: 
«Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é, arrumando palavras de uma certa maneira. Começou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Camões, um Camões muito maior do que o antigo, mas, sendo uma criatura conhecidamente discreta, que soía andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele próprio. Ainda bem. Afinal, um super-Camões não vai além de ser um Camões maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoas, fenómeno nunca antes visto em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um desses, ao passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance, outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de óptica, das que sempre estão a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último copo de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à cautela, deu um passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os espelhos não se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela rapada. Num movimento inconsciente, Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou com infantil alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que apareçam nos espelhos, menos que falem. E como estes, Fernando e a imagem que não era sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: "Chamo-me Ricardo Reis." O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, pálido, com aspecto de quem não vai ter muita vida para gozar. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém não fez qualquer comentário, só disse: "Chamo-me Alberto Caeiro." O outro não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora. Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que não há dois sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem do tipo daqueles que têm saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: "Chamo-me Álvaro de Campos", mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do espelho, afastou-se ele, provavelmente cansado de ter sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho. Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então: "Chamo-me Bernardo Soares", e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito adiantado nos trabalhos de tradução e de poesia, morreu. Os amigos diziam-lhe que tinha um grande futuro à sua frente, mas ele não deve ter acreditado, tanto que decidiu morrer injustamente na flor da idade, aos 47 anos, imagine-se. Um momento antes de acabar, pediu que lhe dessem os óculos: "Dá-me os óculos", foram as suas formais e finais palavras. Até hoje nunca ninguém se interessou por saber para que os quis ele, assim se vêm ignorando ou desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente la´estava. Não lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia no quarto. Este Fernando Pessoas nunca chegou a ter verdadeiramente a certeza de quem era, mas por causa dessa dúvida é que nós vamos conseguindo saber um pouco mais quem somos." 
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 204 a 206 (25/11/1995)

Citador #27 ... Pessoa e Reis num hipotético diálogo envolto em inquietude...

30 de Novembro, data em que se assinalam os 81 anos da morte de Fernando Pessoa

Citador #27
em "O Ano da Morte de Ricardo Reis"
Caminho, 11.ª edição, página 144

(...) Se um morto se inquieta tanto, a morte não é um sossego, Não há sossego no mundo, nem para os mortos nem para os vivos, Então onde está a diferença entre uns e outros, A diferença é uma só, os vivos ainda têm tempo, mas o mesmo tempo lho vai acabando, para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de a não ter dito, morre-se de não o ter feito, é disso que se morre, não de doença, e é por isso que a um morto custa tanto aceitar a sua morte, Meu caro Fernando Pessoa, você treslê, Meu caro Ricardo Reis, eu já não leio. Duas vezes improvável, esta conversação fica registada como se tivesse acontecido, não havia outra maneira de torná-a plausível. (...)

Memorial do Convento com ilustrações de João Abel Manta (Guerra e Paz)

(Capa da edição)

A notícia pode ser recuperada e consultada aqui

"O romance “Memorial do Convento”, de José Saramago, é publicado a 07 de dezembro, numa nova edição, “especial e limitadíssima”, com ilustrações de João Abel Manta, adiantou à Lusa fonte editorial.
“O nascimento deste livro dava um pequeno romance. O editor José da Cruz Santos sonhou esta edição com José Saramago”, afirmou à agência Lusa fonte da Guerra e Paz, que chancela a obra.
Numa carta enviada a José da Cruz Santos, Saramago escreveu: “Ter o João Abel Manta e o Carlos Reis connosco é um presente do céu, quando o havia. Só de pensar que vou ter um livro meu ilustrado pelo João Abel faz com que o pulso se me acelere”, citou a editora.
O “Sonho” concretiza-se com esta edição, num livro de capa dura, com um formato de 16,5 centímetros de largura, por 24 de altura, com um reforço de lombada em tecido vermelho, incluindo 20 ilustrações inéditas de João Abel Manta a quatro cores, sendo duas das ilustrações reproduzidas em dípticos com 33 centímetros de largura, segundo a mesma fonte.
“Com guardas vermelhas e um fitilho, esta é uma edição raríssima, de apenas 500 exemplares, que não voltará a ser reimpressa”, reforçou a mesma fonte.
Para esta edição contribuíram várias personalidades e entidades, designadamente o editor José da Cruz Santos e a livraria Modo de Ler, que a cederam à Guerra e Paz, e ainda a Porto Editora, a Fundação Saramago e as herdeiras de José Saramago, que a autorizaram, e as autorizações concedidas por João Abel Manta e a sua filha, bem como pelo catedrático em Literatura Carlos Reis.
“Com a publicação da edição especial do ‘Memorial do Convento’, a Guerra e Paz fecha um ano que marcou uma profunda viragem inovadora nas suas linhas editoriais”, disse à Lusa a mesma fonte.
A primeira edição de “Memorial do Convento”, cuja ação decorre nos inícios do século XVIII, em torno da construção do Convento-Palácio de Mafra, nos arredores de Lisboa, foi em outubro de 1982, pela Editorial Caminho.
A ação narrativa decorre no reinado de D. João V, com o país a receber as muitas riquezas do Brasil, e a ação da Inquisição que se endurecia, sendo protagonistas Baltasar, conhecido como Sete-Sóis, porque apenas conseguia ver à luz, e Blimunda, chamada de Sete-Luas, porque conseguia ver no escuro, graças ao dom da “ecovisão”.
Este não é o primeiro romance que João Abel Manta ilustra. Em 1970 ilustrou “Dinossauro Excelentíssimo”, de José Cardoso Pires.
João Abel Manta, de 88 anos, é autor de uma obra multifacetada, da arquitetura ao desenho, passando pela pintura e a caricatura.
Manta tem ainda obra sua nas artes gráficas, tapeçaria, cerâmica e mosaico.
Com Alberto Pessoa e Hernâni Gandra, foi um dos arquitetos responsáveis pelos projetos dos blocos habitacionais da avenida Infante Santo, em Lisboa, que lhe valeu o Prémio Municipal de Arquitectura, em 1957, e da Associação Académica de Coimbra, em 1959.
Em 1961 venceu o Prémio de Desenho na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, com “O Ornitóptero”.
Das suas atividades mais regulares, a par da arquitetura, foi o ‘cartoon’, que desenvolveu de 1945 a 1991, em variadas publicações.
O historiador João Medina considerou-o “o caso mais extraordinário do ‘cartoonismo’ luso do nosso século [século XX], só equiparável [ao] próprio Bordallo Pinheiro”.
Em termos de arte pública, são de sua autoria os painéis da avenida Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e o desenho do pavimento da praça dos Restauradores, também na capital.
O artista fez ainda incursões no teatro, tendo assinado os cenários d’”A Relíquia”, de Eça de Queiroz, e “O Processo”, de Kafka, ambas encenadas por Artur Ramos e levadas à cena em 1970, pelo Grupo de ação Teatral."

O link da editora "Guerra e Paz",pode ser acedido aqui


terça-feira, 29 de novembro de 2016

José Saramago - "Do canto ao romance, do romance ao canto" (16/09/2009)

O presente texto ensaístico de José Saramago, pode ser recuperado e consultado via página da Fundação José Saramago, aqui
em http://www.josesaramago.org/do-canto-ao-romance-do-romance-ao-canto/


"Do canto ao romance, do romance ao canto"

"É conhecido o caso de um moço, habilidoso de nascença, que, sem nunca ter recebido lições de belas-artes nem aprendido de mestres particulares, e não dispondo de outra ferramenta que um canivete, era capaz de transformar em pouco tempo um toco de madeira bruta no mais perfeito e acabado urso de que rezariam histórias da escultura se o objectivo delas fosse ocuparem-se de talentos místicos. Invariavelmente, a gente da terra maravilhava-se com a  rapidez e o jeito apurado, e, também invariavelmente, o rapaz respondia às curiosidades: «Não tem nenhuma dificuldade. Agarro no bocado de madeira e fico a olhar para ele até ver o urso. Depois, é só tirar o que está a mais.»

O nosso escultor dava-nos assim, de uma vez só, duas lições magníficas: a da modéstia e a da generosidade. Revelava-nos sem disfarce nem engano o seu segredo de oficina e ensinava-nos como deveríamos proceder para criar um urso: olhar para onde ele não está e, apenas com o olhar, obrigá-lo a aparecer.

Mas, ai de mim, não há perversidade  pior que a dos ingénuos. Este amável moço, tão prestante em explicar-nos  como fez, não permite que lhe saia da boca uma única palavra sobre  como se faz. Não duvidamos de que o urso ali esteja, mas entre a figura do animal e as nossas inábeis mãos existe uma muralha de madeira fechada, com nós duríssimos, veios intratáveis, traiçoeiras maciezas da fibra: é por de mais evidente que se necessitará muito engenho e muita  arte para abrir um caminho e fazer dele avenida por onde possa alongar-se, enfim comprazido, um olhar fruidor. A arte, afinal de contas, não é fácil, o rapaz dos ursos esteve a divertir-se à nossa custa.

Contudo, imprudente seria o céptico que se atrevesse a jurar que no interior de ada bocado de madeira não se encontra um urso à nossa espera. Está ali, e sempre há-de estar. Ainda que não consigamos vê-lo distintamente, pelo menos seremos capazes de adivinhá-lo, de intuí-lo, aparece-nos ao longe como  uma luz instável e lenta, um vago luzeiro que, por assim dizer, não chegasse a iluminar-se a si mesmo.

E é aqui, num súbito relance, que descubro que não é de ursos que se trata, mas de um tema, exactamente este que vos trouxe: «Do canto ao romance, do romance ao canto». Creio distinguir-lhe e identificar-lhe os contornos, tornar-se-lhe nítido e preciso o vulto, chego a acreditar que me bastará estender a mão e agarrá-lo, mas no momento em que vou exclamar, triunfante: «Minhas senhoras e meus senhores, eis o urso», verifico que tudo não foi mais que ilusão e ludíbrio, e apenas tenho para mostrar isto que vêem aqui, um tronco cortado, um cepo, uma raiz torta, um assunto à procura da sua porta de entrada. E outra vez a luz recomeça a pulsar, como um coração implorando: «Tirem-me daqui.»

Disse: «Do canto ao romance» – e esse percurso, essa viagem por espaços, mundos e tempos, desde os poemas homéricos a Marcel Proust, ou James Joyce, ou Franz Kafka, passando pelas Mil e Uma Noites, pelas epopeias indianas, pelas parábolas dos livros sagrados, pelo Cântico dos Cânticos, pelas fábulas milésicas, pelo Asno de Ouro, pelas canções de gesta, pelas sagas islandesas, pelos ciclos de Roldão, da Demanda do Graal, de Alexandre, de Robin Hood, pelo Roman de la rose e pelo Roman de Renart, por Gargântua, pelo Decameron, por Amadis de Gaula, por Don Quixote, e também por Gulliver e Robinson, Werther e Tom Jones, por Ivanhoe, Cinq-Mars e Os Três Mosqueteiros, pela Nossa Senhora de Paris, pela Comédia Humana, pelas Almas Monas, pela Guerra e Paz, pelos Irmãos Karamazov, pela Cartuxa de Parma, pela Montanha Mágica, até aqui, até aos dias de hoje, essa viagem relata-se e explica-se por si mesma, começou um dia, em voz e em grito, à sombra de uma árvore, ou no interior  de uma gruta, ou num acampamento de nómadas à luz das estrelas, ou na praça pública, ou no mercado, e depois houve alguém que escreveu, e a seguir alguém que escreveu sobre o que antes tinha sido escrito, infinitamente repetindo, infinitamente variando, escrevendo, lendo, escrevendo, lendo…

Pouco importará a mais do que provável incoincidência com a realidade histórica entre esta visão lírica de narrativas entoadas em melopeia e uma escritura organizada e disciplinada, respeitadora de regras, preceitos e normas, e, fatalmente, de sistemas convencionais que nunca o são menos pelo facto inelutável de serem transitórios  e portanto substituíveis por outros sistemas, estes, por sua vez, condenados, mais cedo ou mais tarde, a idênticos processos de mudança. A evocação que aí deixei serviu-me somente para ilustrar, do modo mais persuasivo de que fui capaz, a primeira parte do título que dei a estas breves linhas: «Do canto ao romance», e, para os fins que tenho em vista, tão bem servia esta como outra qualquer. A dificuldade viria sempre depois. Precisamente agora.

Digo: «Do romance ao canto» – e nesta  altura deveria demonstrar, ou pelo menos propor-vos como uma hipótese plausível, que o género literário a que damos o nome de romance, havendo chegado na nossa época ao final do arco de círculo que, tal imaginário pêndulo, traçou através dos tempos, estaria regressando pelo caminho por onde veio, até reencontrar o canto primordial, donde recomeçaria a viagem, porventura com um novo impulso que lhe  permitiria galgar, em direcção ao futuro, mais uns quantos séculos ou milénios. Algo como dois passos para trás e três para diante…

Não sou tão desprovido de senso comum.  Dinâmica e cinética são programas de diferente foro do conhecimento, e a literatura, se repete infinitamente, como já foi dito, também infinitamente varia, como foi dito  já. Posto o que, chegados a este ponto, é irresistível recordar aquele célebre Pierre Menard, autor de um Quixote  idêntico ao de Cervantes, segundo nos explica Jorge Luis Borges nas suas  Ficciones,  o qual Pierre Menard, tendo repetido, palavra por palavra, a obra do imortal «Manco de Lepanto» (assim designam a Cervantes quando não se quer repetir-lhe o nome, destino a que Camões escapou, pois ninguém, até hoje, se atreveu a chamar-lhe «Zarolho de Ceuta»), muitas vezes está a dizer coisas diferentes, não mais que por serem diferentes os modos de as entender neste século XXI em que estamos e naquele século XVII em que nunca estaremos. Porém, este mesmo exemplo nos mostra, derradeiramente, que qualquer repetição exacta é impossível. Naquela sua viagem de retorno às origens, ao outro extremo do arco de círculo, o pêndulo iria supostamente reencontrando e reconhecendo, passo a passo, a identidade  romanesca perceptível nas narrações que conhecemos do passado, ao mesmo tempo que iria deixando atrás de si o rasto de uma alteridade coincidente, se uma tão grosseira contradição em termos (se é alteridade, não é coincidente) pudesse ser admitida. É claro que foi pelos meus próprios passos que me meti no beco sem saída em que de repente me encontro. De facto, se ao romance não é permitido fazer nenhum percurso inverso, se Pierre Menard, quando fiel e escrupulosamente copiou o Quixote, acabou por escrever outro livro, como conseguiríamos nós alcançar novamente o anto, o desejado canto, e, se sim lá chegássemos, de que canto seriam capazes as nossas bocas de hoje, ainda que as palavras fossem iguais e igual a música? Os homéridas já não têm lugar neste mundo, o  tempo é, de todas as coisas, a única que não é recuperável. Que nos resta, então? Como iremos inventar o canto novo, esse a que me está obrigando a segunda parte do meu título? E com que direito me proporia eu, se é de facto essa a minha intenção, anunciar o advento de uma nova era, literariamente falando, claro está, sem cuidar de saber se isso agradaria a quem tivesse de vivê-la? Trazer Homero aos nossos dias, homerizar o romance, terá algum sentido?

Estas perguntas, em si mesmas, e pela ordem por que as apresentei, não são inocentes. Permitem-me, enfim, trocar o geral pelo particular, penetrando no único universo de que posso falar com a legitimidade que dá um conhecimento de causa, isto é, o meu próprio e pequeno universo, o do romance que faço, o seu porquê, o seu como e o seu para quê.

Em primeiro lugar, consideremos a relação do autor com o tempo. Não este em que agora estamos, não aquele outro que foi o do escritor enquanto trabalhou no seu livro, mas sim o tempo contido e encerrado no romance, e que também não é o das horas e dias que levará a ser lido, ou uma referência temporal implícita no discurso ficcional, e menos ainda o tempo explicitado fora da narrativa, por exemplo, no título que ela recebeu, casos de Cem Anos de Solidão ou de Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma Mulher.  Falo, sim, de um tempo poético, feito  de ritmos, de suspensões, um tempo simultaneamente linear e labiríntico, instável, movediço, um tempo dotado de leis próprias, um fluxo verbal que transporta uma duração e que uma duração por sua vez transporta, fluindo e refluindo como uma maré entre dois continentes. Este, repito, é o tempo poético, pertence à recitação e ao canto, aproveita todas as possibilidades expressivas do andamento, do compasso, da coloratura, é melismático ou silábico, longo, breve, instantâneo. De um tempo assim percebido foi meu desejo e minha ambição que se alimentassem as ficções que inventei, consciente de que vou querendo, mais e mais, aproximar-me da estrutura de um poema que, sendo pura expansão, se mantivesse fisicamente coerente.

Afirmam músicos e musicólogos que uma  sinfonia, hoje, é algo impossível, como, na mesma linha de ideias, o seria  também esculpir um capitel coríntio. Obviamente, qualquer pessoa, se dotada de suficiente habilidade, poderá contrariar tal interdição de princípio, compondo, de facto, a sinfonia,  ou esculpindo, de facto, o capitel: o que dificilmente poderá é levar-nos a acreditar que, ao fazê-lo, esteve a responder a uma necessidade autêntica, tanto no plano da criação como no plano da fruição. Ora, quem sabe se não teremos  também nós de enfrentar a gravíssima responsabilidade de aplicar ao romance uma  sentença igual, afirmando, por exemplo, que também ele se tornou impossível nas suas formas paradigmáticas, prolongadas até hoje com mínimas variações, só raramente  radicais e sempre assimiladas e integradas no corpo tópico, o que tem permitido, com a graça de Deus e a bênção dos editores, que continuemos, muitos de nós, a escrever romances como comporíamos sinfonias brahmsianas ou talharíamos capitéis coríntios.
Mas este mesmo romance, que assim parecia estar condenando, contém já em si, nos seus diversos e actuais avatares, a possibilidade de se transformar num espaço literário (propositadamente digo espaço, e não género) capaz de acolher, como um grande, convulso e sonoro mar, os afluentes torrenciais da poesia, do drama, do ensaio, e também da ciência e da filosofia, tornando-se expressão de um conhecimento, de uma
sabedoria, de uma cosmovisão, como o  foram, no seu tempo, os poemas da antiguidade clássica.

Porventura estarei caindo em erro, se recordarmos a crescente e parece que irreversível especialização, já quase microscópica, do homem. Porém, não é impossível que essa mesma especialização, por força de algum mecanismo interior de compensação, e talvez por uma instintiva necessidade de sobrevivência e equilíbrio psicológico, nos leve a procurar uma nova vertigem do geral em oposição às aparentes seguranças do particular. Literariamente, porque só de literatura estamos falando aqui, talvez o romance possa restituir-nos essa suprema vertigem, o alto e extático canto de uma humanidade que ainda não foi capaz, até hoje, de conciliar-se com a sua própria face.

E assim concluo. Manejando o meu canivete rombo, aparei e escavei o bocado de madeira que aqui vos trouxe. Juro-vos que via o urso antes, via-o perfeitamente. Juro-vos que continuo a vê-lo agora. Mas não tenho a certeza – culpa minha – de que o vejais vós. O mais provável foi ter-me  saído um ornitorrinco, esse mamífero desajeitado, com bico de pato, feito de peças soltas doutros animais, desconforme, bicho fantástico – ainda que não tanto  como o ser humano. Este que nós somos quando escrevemos romances, ou os lemos. Interminavelmente."

José Saramago, 16/09/2009

José Saramago e Fidel Castro - Com a ressalva de todas as proximidades e diferenças



sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Morreu Marcos Ana poeta e lutador de causas (Via "El País")

Noticia do El Pais, pode ser recuperada e consultada aqui 

"Se apaga a los 96 años la voz libre y resistente del poeta Marcos Ana - Fue el preso político que más tiempo pasó en la cárceles franquistas: entró con 19 años y salió con 42"

"Se hizo poeta en el lugar más hostil para los versos, una cárcel franquista donde toda la energía se iba en sobrevivir, donde no había paisaje al que mirar. Tituló uno de sus poemas más célebres y su biografía precisamente así: Decidme cómo es un árbol. Marcos Ana, el preso político que más tiempo pasó entre rejas, ha muerto este jueves en Madrid, a los 96 años. Él habría dicho que fue a los 73 porque solía descontarse esos 23 años que habitó las prisiones de la dictadura. Cada cumpleaños hacía esa diferencia: “Tengo 90 años de edad y 67 de vida; tengo 91, es decir, 68….” Nunca aparentó, en cualquier caso, los inviernos que llevaba encima. En una ocasión, a punto de dar una charla en la Cámara de los Comunes, en Londres, le confundieron con su intérprete, un profesor inglés y cojo. Al subir al estrado nadie reaccionó. La gente solo empezó a aplaudir cuando llegó el profesor. El público interpretó que el preso que más tiempo había pasado en las frías celdas del Régimen, el que había estado condenado a muerte, el que había sido torturado... era necesariamente el que caminaba con bastón y no aquel hombre alto que se había plantado en la tribuna en dos zancadas.
Con 15 años se había afiliado, como las 13 rosas, a las Juventudes Socialistas Unificadas. Luego se hizo del Partido Comunista. Quiso ir al frente, pero le mandaron de vuelta a casa por no tener edad suficiente. Ingresó en la cárcel con 19 y salió con 42, en 1961. Le acusaban de tres asesinatos en Alcalá de Henares por los que ya habían sido fusilados otros presos. En prisión se acostó muchas noches pensando que no llegaría a ver el día porque el Régimen había cometido la ridiculez de condenarle no a una, sino a dos penas de muerte. Finalmente, a él le conmutaron la pena, pero dio el último abrazo a muchos compañeros que no tuvieron la misma suerte. Dedico sus años de libertad a rendirles un homenaje permanente. 

“Marcos Ana no se ha mirado complacido en el espejo. Lo ha roto en mil pedazos para que en cada fragmento se vea el rostro de sus camaradas”, dijo el premio Nobel José Saramago.

Con sus compañeros de celda creó en la cárcel un periódico clandestino llamado Juventud. Daban clases y organizaban tertulias literarias sobre los libros prohibidos, que eran casi todos. Apoyándose en la parte de abajo del plato de la comida, Marcos Ana empezó a escribir poemas. Los sacaba clandestinamente de prisión. A veces, con la ayuda de un guardia. Otras, haciendo que un preso al que quedaban días para salir en libertad, los memorizara. Y empezaron a difundirse gracias a la ayuda de poetas en el exilio como Rafael Alberti, y de los comités de solidaridad con los presos políticos. Ahí fue cuando Fernando Macarro se convirtió en Marcos Ana, el seudónimo que escogió uniendo el nombre de sus padres: Marcos Macarro, que había muerto en un bombardeo en enero de 1937 -él mismo encontró el cadáver sobre la acera-, y Ana Castillo, que falleció en la navidad de 1943, después de que a su hijo le condenaran por segunda vez a muerte.
Y con todo, para Marcos Ana lo más difícil, como explicó muchas veces, fue adaptarse a la libertad. Sus ojos sufrían con la luz. Se mareaba en los espacios abiertos. Y fue al verse en la calle cuando supo que había perdido toda su juventud. Cuando se dio cuenta de que, a los 42 años, jamás había estado con una mujer. 
Con sus mejores intenciones, un amigo le llevó una noche a un cabaré, llamó a una chica, le metió 500 pesetas en el bolsillo y le dio las instrucciones: “Para que pases la noche con mi amigo”. “Se llamaba Isabel y era morena, de ojos grandes, hermosísima…”, recordaba a este diario el verano de 2015. Fue incapaz de tocarla. Al final, decidió contarle su historia. Marcos e Isabel pasaron la noche juntos, hablando. Cuando, al volver a casa, descubrió que le había vuelto a meter las 500 pesetas en el bolsillo, Marcos deshizo corriendo el camino hasta ella. Pero antes de llegar a su pensión, decidió que si aquel día pagaba arruinaría para siempre el recuerdo de la noche anterior. Entró en una floristería y pidió 500 pesetas en flores. En la tarjeta escribió: “Para Isabel, mi primer amor”.
No volvieron a verse, pero fue al leer ese episodio de su biografía cuando Pedro Almodóvar quiso convertir la vida de Marcos Ana en una película y compró los derechos de Decidme cómo es un árbol.
En París conoció a Vida Sender, hija de unos anarquistas aragoneses y futura madre de su hijo, Marcos. “La cárcel la viví como un militante, y hasta que no conocí el amor no me di cuenta de lo que me habían quitado. Cuando la vi pensé: 'Para esto he salido yo de prisión, para esto estoy yo en el mundo”, explicaba en la misma entrevista. La convivencia no fue fácil. “Era como un toro”, recordaba ella. Un día le sentó y le dijo: “No quiero ser una segunda cárcel para ti”. "Me regaló otra vez la libertad", explicaba él. El amor dio paso a una amistad que les acompañó toda la vida. Les gustaba bajar a una terraza cerca de la casa de Marcos donde el poeta practicaba uno de sus pasatiempos favoritos: ver pasar a la gente e imaginar qué problemas tenían, en qué cosas irían pensando."



José Saramago se dirigiu assim nos seus "Cadernos", aqui
http://cuaderno.josesaramago.org/43866.html (link em espanhol)
http://caderno.josesaramago.org/44314.html (link em português)

"Marcos Ana"
"Hay personas que parecen no pertenecer al mundo y al tiempo en que viven. Marcos Ana es una de esas personas. Como tantos de su generación, arrastrados por prisiones del fascismo español, sufrió lo indecible en el cuerpo y en el espíritu, escapó in extremis a dos condenas a muerte, es, en el mayor sentido de la expresión, un superviviente. La prisión no pudo nada contra él, y fueron 23 los años que estuvo privado de libertad. El libro que acaba de presentar en Portugal es el relato simultáneamente objetivo y apasionado de ese tiempo negro. El título de las memorias, Decidme como es un árbol, no podría ser más significativo. Con el tiempo, la dura realidad de la prisión acaba sobreponiéndose a la realidad exterior, diluyéndose en una imprecisa neblina que es preciso expulsar de la mente cada día que pasa para no perder la seguridad en uno mismo, por más frágil que se torne. Marcos Ana no sólo se salvó a sí mismo, salvó también a muchos de sus compañeros de cárcel, transmitiéndoles ánimo, solucionando problemas y conflictos, como un juez de paz de nueva especie. Firme en sus convicciones políticas, pero sin permitir que su juicio crítico sea afectado, Marcos Ana transmite a aquel que se le aproxima un irreprimible sentimiento de esperanza, como si pensásemos: “Si él es así, yo también lo puedo ser”. Recuperada la libertad, no se quedó en casa para descansar. Volvió a la lucha política, con riesgo de ser nuevamente encarcelado, y dio inicio a un notable trabajo de asistencia y ayuda a los que continuaban en prisión. En España, unos cuantos amigos y admiradores de su singular personalidad (el premio Nobel Wola Soiynka es un de ellos) lo presentamos como candidato al Premio Príncipe de Asturias de la Concordia. Nada sería más justo. Y más necesario para mostrarle al pueblo español que la memoria histórica sigue viva."

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

De Inês Fonseca Santos "José Saramago Homem-Rio" (Pato Lógico e INCM)

Detalhe da capa do livro

Texto: Inês Fonseca Santos
Ilustrações: João Maio Pinto
Ano de publicação: 2016
Dimensões: 14 x 23,5 cm
ISBN: 978-972-27251-4-9
Páginas: 48

Mais informações aqui 


"José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, nasceu no Ribatejo a 16 de Novembro de 1922 e morreu em Lanzarote a 18 de Junho de 2010. Foi serralheiro mecânico, funcionário da saúde e da previdência social, escritor, desenhador, editor, crítico, tradutor e jornalista. Foi Saramago-menino, Saramago-adolescente, Saramago-adulto e Homem-Rio. Foi múltiplo como só um escritor o sabe ser. 

Ao contrário de um rio, um escritor tem muitas margens. De um rio, sabemos onde nasce e onde desagua; a um rio, conhecemos a margem direita e a margem esquerda. Já um escritor tem tantas margens quantas as palavras que existem — as que ele mesmo escreve e as que, antes dele, outros escreveram.

Grandes Vidas Portuguesas é uma colecção de biografias de personalidades que se destacaram em vários domínios da nossa história. É publicada em parceria pelo Pato Lógico e pela INCM."


Imagens das páginas ilustradas por João Maio Pinto 


Revista Blimunda #54 - Novembro 2016 já disponível para leitura

Imagem da capa da edição #54 - Novembro 2016

A revista Blimunda pode ser consultada e descarregada aqui gratuitamente, via página 

Editorial

Sinopse de apresentação

"Em Novembro de 1986, num momento em que o destino de Portugal parecia atrelado ao da Europa, chegava às livrarias A Jangada de Pedra, romance de José Saramago que trazia consigo a provocadora proposta de aproximação da Península Ibérica à América Latina e a África. Passados 30 anos da publicação do livro, a pergunta que fazemos é: para onde viaja essa jangada? Portugal e Espanha deveriam apostar num futuro conjunto que fosse mais voltado para o Sul do que para o Norte?

Este número 54 da revista Blimunda traz um dossier sobre A Jangada de Pedra, numa tentativa de perceber, à distância de três décadas, a relevância literária e politica desse romance.

O ilustrador Anton Kannemeyer nasceu numa África do Sul onde o Apartheid era a política vigente, e essa realidade está espelhada no seu trabalho. A Blimunda conversou com o artista, que passou por Lisboa para participar no festival Amadora BD. Também em destaque, os 20 anos da Rede de Bibliotecas Escolares de Portugal celebrados num encontro acolhido pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Na secções habituais, Andréa Zamorano aborda a questão do engajamento político no mundo virtual, a par de mais uma Visita Guiada, desta vez à editora Planeta Tangerina.

Boas leituras e até dezembro!"

sábado, 19 de novembro de 2016

Cartas aos avós "O meu avô, também" e "Carta para Josefa, minha avó" - publicadas no livro de crónicas "Deste mundo e do outro"

Crónica emoldurada e presenta na exposição permanente da
Fundação José Saramago

"O meu avô, também"

"Talvez o dia chuvoso seja o responsável desta melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os fios do presente activo se enredam na teia do passado morto, e tudo isto se cruza e entrecruza de tal maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que a vida cai toda sobre nós e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente amputados do futuro. Cai a chuva, o vento desmancha a compostura árida das árvores desfolhadas – e dos tempos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um cajado na mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente, caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem beleza, terrivelmente anónima.
Mas o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede mais próxima, que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. O seu rosto é talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos, pequenos e agudos, têm de vez em quando um brilho claro como se nesse momento alguma coisa tivesse sido definitivamente compreendida. Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nessas comparações tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.
E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira – ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.
Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nessa altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogação das estrelas. Só isto – e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo."

José Saramago 
"Deste Mundo e do Outro: Crónicas" 
1985 (3.ª edição) Editorial Caminho, 29 a 31

Crónica emoldurada e presenta na exposição permanente da
Fundação José Saramago

"Carta para Josefa, minha avó"

“Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio começava a gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua cama, lume da tua lareira, – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz. 
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de palmo. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?). Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. Como tu não vi rir ninguém.
Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de sabes onde é o mundo. Chegaste ao fim da vida e o mundo é para ti o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior.
Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas e dezes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “o mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.”

José Saramago 
"Deste Mundo e do Outro: Crónicas" 
1985 (3.ª edição) Editorial Caminho, 27 e 28

José Saramago, in Deste Mundo e do Outro (1971)

Pilar del Río: «Hay una obra de teatro y varios cuentos inéditos de Saramago» ao "ABC" (Francisco Chacón - 16/11/2016)

A notícia pode ser recuperada e consultada, aqui

Publicado pelo "ABC" (Francisco Chacón - 16/11/2016)

"Pilar del Río recibe a ABC en su morada literaria de la Fundación Saramago, en la antesala de las mejores casas de fado de Lisboa. Allí desarrolla la necesaria divulgación de la obra del Premio Nobel portugués de cara a las nuevas generaciones, una labor que la ha acreditado para hacerse con el Premio Luso-Español de las Artes en su sexta edición.

El galardón, instituido por el Ministerio de Cultura en colaboración con la República portuguesa, se falla cada dos años y arrancó precisamente hace una década con una convocatoria en la que fue jurado el propio José Saramago.

Después de 24 años de vida en común con el autor de «La caverna» o «El evangelio según Jesucristo», Pilar del Río se acostumbró a la constancia de tender puentes entre Portugal y España. Y ahora esta distinción reconoce su esfuerzo.

«Este premio lo ha ganado él», asegura a este periódico al borde de las lágrimas, aunque muy contenta porque la distinción le llega justo en el 30 aniversario de la publicación original de «La balsa de piedra», que fabula sobre la unión ibérica e incluso su separación geográfica de Europa .

«Lo primero que pensé fue "hostia, José" y después me acordé de la casa-museo de Lanzarote [donde falleció el escritor en junio de 2010], que es un proyecto personal mío pero que me cuesta dinero porque es deficitario», relata quien se define como «la primera reivindicadora de su obra».

Pilar del Río preside la Fundación Saramago para «cumplir su mandato». Se desplaza en metro cada mañana para acudir a su despacho y mantener viva la antorcha de quien fue su compañero de viaje y marcó su existencia para siempre.

¿Quedan aún textos inéditos de don José por publicarse?, le preguntamos conscientes de que miles de lectores los aguardan como un maná literario. «Fernando Gómez Aguilera está investigando ese tema y sí, podemos decir que hay una obra de teatro y varios cuentos que todavía no han visto la luz».

En medio de la emoción del momento, le viene a la mente la lucidez de Saramago, omnipresente hoy como ayer: «Aquí, en esta fundación, lo que pretendemos no es otra cosa que construir un mundo mejor. Él nunca hablaba de revoluciones, decía que los cambios no pueden arrancar más que a partir de la responsabilidad individual. Decía también que si hay armas es porque permitimos que las haya, y si hay guerras es también porque lo permitimos. No se trata de gobiernos, se trata de la necesidad de asumir la responsabilidad individual».

De forma inminente, Pilar del Río tiene previsto ir a la Feria del Libro de Guadalajara (México) para presentar el teatro completo de José Saramago, recién publicado por Alfaguara."

"Paulo Coelho e Saramago são os mais traduzidos" via Público (de Luís Miguel Queirós, 15/11/2016)

A notícia (Jornal Público, em 15/11/2016 - Luís Miguel Queirós), pode ser recuperada e consultada, aqui em, https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/paulo-coelho-e-saramago-sao-os-mais-traduzidos-1751172

"O espanhol é a língua com mais traduções do português."

"Exposição com as traduções dos livros de José Saramago" 
Fotografia de RG Rui Gaudêncio

"Nas línguas para as quais mais se traduz, o português está em oitavo, e é a 18.ª língua mais traduzida para outros idiomas. Dados da UNESCO relativos ao período que vai de 1979 a 2015 permitiram ainda aos autores do Novo Atlas da Língua Portuguesa, que esta terça-feira é apresentado em Lisboa, incluir informação mais detalhada, como a lista das línguas e países para os quais o português é mais traduzidos, e ainda os autores lusófonos mais traduzidos no mundo.

O espanhol é a língua com mais traduções do português, seguido do inglês, do francês, do alemão e do italiano. Já o inglês é de longe a língua com mais traduções para português, numa lista cujos 7.º e 8.º lugar são ocupados pelo latim e pelo grego antigo.

No top five dos autores de língua portuguesa mais traduzidos, a maior surpresa é talvez a presença, em 5.º lugar, do teólogo Leonardo Boff, a grande figura da Teologia da Libertação no Brasil. A lista é encabeçada por outro brasileiro, o ficcionista Paulo Coelho, e seguem-se José Saramago, Jorge Amado e Fernando Pessoa.

Se olharmos para as línguas e países para os quais estes cinco autores são mais traduzidos, o que se afasta mais do padrão é Paulo Coelho. Em todos os casos, a língua de destino mais usual é o espanhol, mas enquanto nos outros quatro escritores, os dois lugares seguintes são ocupados por combinações de francês, inglês ou alemão, o autor de O Alquimista goza de particular sucesso em húngaro e sérvio. E se Saramago, Amado, Pessoa e Boff são muito traduzidos em Espanha e na Alemanha, a lista de Paulo Coelho é novamente a que menos tem a ver com as restantes: o país que mais o traduz é a Rússia, seguida da Suíça e da Croácia.

A lista dos dez autores lusófonos mais traduzidos completa-se com dois portugueses - Eça de Queirós e António Lobo Antunes - e três brasileiros: José Mauro de Vasconcelos, Clarice Lispector e Machado de Assis."

Nota Blog
Segundo a notícia, a obra de José Saramago tem 541 traduções em 38 línguas (espanhol, alemão, inglês, catalão e francês) de 50 países (Espanha, Alemanha, Noruega, França e Itália). 

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Luis Pastor e Esperanza Fernández interpretam o verso "Nesta esquina do tempo" inserido na obra de José Saramago "Os Poemas Possíveis" (1966)

"Nesta esquina do tempo"
Actuación Homenaje a José Saramago en el Auditorio Pilar Bardem. Rivas Vacíamadrid
Letra: José Saramago. Música: Luis Pastor
Voz: Luis Pastor
Piano: Luis Fernández
Cavaquinho: Sérgio Tannus
Guitarra: Pedro Pastor
Coros: Lourdes Guerra
Pode ser visualizado via Youtube, aqui

"Nesta esquina do tempo"

"Nesta esquina do tempo é que te encontro, 
Ó nocturna ribeira de aguas vivas 
Onde os lírios abertos adormecem 
A mordência das horas corrosivas 

Entre as margens dos braços navegando 
Os olhos nas estrelas do teu peito, 
Dobro a esquina do tempo que ressurge 
Da corrente do corpo em que me deito 

Na secreta matriz que te modela, 
Um peixe de cristal solta delírios 
E como um outro sol paira, brilhando, 
Sobre as águas, as margens e os lírios"

In, "Os Poemas Possíveis", 1966 

Pode ser visualizado via Youtube, aqui

Esperanza Fernández 
Álbum "Mi voz em tu palabra"
"En esta esquina del tiempo"
Música: Luis Pastor. Arreglos Dorantes y poesía de José Saramago.
Grabado en teatro Lope de Vega de Sevilla. 
CD editado por Discmedi 2013 
Canal de Vídeos de Esperanza Fernández


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

"Programa especial em homenagem aos 90 anos de José Samarago." Conferência gravada em Belo Horizonte em Maio de 1999

No dia em que se assinalam os 94 anos do nascimento de José Saramago,
nada como recuperar as suas palavras.

Pode ser visualizado e recuperado aqui,

"Programa especial em homenagem aos 90 anos de José Saramago. 
Palestra gravada em Belo Horizonte, em maio de 1999, no Grande Teatro do Palácio das Artes"

Exposição de João Vilhena "La Ventana de Saramago" no Teatro Español (Espacio Andrea d'Odorico) - 18/11 a 23/12


Exposición "La ventana de Saramago"
Teatro Español - Espacio Andrea d'Odorico

Mais informações aqui

"El próximo 18 de noviembre comienza la exposición "Lanzarote, la ventana de Saramago" del fotógrafo portugués João Francisco Vilhena, sobre la relación entre el Nobel de Literatura fallecido en 2010 y la isla que eligió para vivir.
La exposición constará de dos niveles de intervención. En el primero estarán imágenes coloridas representando la apertura del escritor para el mundo, una interpretación de Lanzarote como un nuevo instante emocional en la vida de Saramago. El segundo espacio estará compuesto por fotos en sepia, y blanco y negro del escritor.

El espacio estará dividido en dos ambientes (tierra y cielo) y en él se abrirá un camino a los visitantes representando una ruta de los lugares preferidos de Saramago en Lanzarote.

La exposición se completa asimismo con pequeños fragmentos de textos escritos por el autor portugués sobre el lugar. El objetivo consiste en  invitar a los espectadores a descubrir la isla del escritor a partir de la mirada sensorial de un fotógrafo enamorado por las palabras del literato.

'Cultura Portugal– 14ª Muestra de cultura portuguesa en España' es una iniciativa que tiene como objetivo acercar a los españoles la producción cultural lusa más actual con propuestas de distintas disciplinas como música, fotografía, cine, teatro, literatura, arquitectura o artes plásticas.

En esta 14ª edición, destacan como principales exponentes de la cultura de Portugal músicos como José Cid o Rodrigo Leão, reconocido músico del país; la obra de teatro Oda Marítima con el actor Diogo Infante; la intervención del artista visual Vhils; o la conferencia del arquitecto y recién premio FAD, João Mendes Ribeiro, entre muchos otros."

"Fecha
Del 18 de noviembre al 23 de diciembre de 2016Horario
De martes a sábado de 11:30 a 13:30h y de 17:30 a 19:00. Domingos de 11:30 a 13:30h.
Sala - Teatro Español - Espacio Andrea D'Odorico
Dirección - Plaza Santa Ana. Calle Príncipe 25 
Precio - Entrada gratuita"


Imagens da I Cátedra Internacional José Saramago - Vigo

"Algumas impressões das diferentes exposições nas I Jornadas José Saramago em Vigo"

Publicado na página do Facebook, aqui







terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pilar del Río, Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura - Via Fundação José Saramago

Pode ser consultado e recuperado, através da notícia publicada na página da Fundação José Saramago, aqui http://www.josesaramago.org/pilar-del-rio-premio-luso-espanhol-arte-cultura/

"A jornalista e tradutora Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago, foi galardonada nesta terça-feira (15) com o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura pelo seu trabalho «como criadora e Presidente da Fundação Saramago, dedicada à defesa dos direitos humanos, à promoção da literatura portuguesa e ao intercâmbio da cultura portuguesa, espanhola e latino-americana». Segundo o Júri, o prémio é um reconhecimento pelo «amplo trabalho intelectual» como jornalista, tradutora e promotora da cultura luso-espanhola que Pilar del Río desempenha. «Na sua própria pessoa e na Fundação que dirige se encarna o espírito e os valores da fraternidade luso-espanhola», lê-se no comunicado de imprensa divulgado pelos governos de Espanha e de Portugal."


"O Júri foi constituído por Ana Santos Aramburo (Diretora da Biblioteca Nacional de Espanha), José Pascual Marco Martinez (Diretor-Geral de Política e Indústrias Culturais e do Livro) e Juan Cruz Ruiz (Escritor e Jornalista), pela Parte espanhola, e por João Fernandes (Subdiretor do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia), José Bragança de Miranda (Professor Universitário) e Nuno Júdice (Escritor e Poeta), pela Parte portuguesa.

Criado em 2006, o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura já foi entregue a José Bento, poeta y traductor (Portugal), Perfecto Cuadrado Fernández, escritor (Espanha), Álvaro Siza, arquitecto (Portugal), Carlos Saura, cineasta (Espanha) e Lidia Jorge, escritora (Portugal).

A cerimónia de entrega do Prémio será realizada em Espanha, em data a anunciar."

domingo, 13 de novembro de 2016

Porto Editora lança nova edição da obra "Viagem a Portugal" e recuperação do prefácio de Claudio Magris

Link directo para a edição da Porto Editora e restantes obras já reeditadas, aqui
em https://www.portoeditora.pt/noticias/viagem-a-portugal-de-jose-saramago/116222

"Publicado pela primeira vez há 35 anos, Porto Editora lança nova edição do emblemático livro de viagens de Saramago.
“É preciso recomeçar a viagem. Sempre.» escreve José Saramago em Viagem a Portugal, que regressa amanhã às livrarias. 35 anos depois da primeira edição, este é um livro que reúne as crónicas de viagem do Nobel português pelo nosso país, oferecendo-nos um retrato de cada região, das suas pessoas e paisagens.

Entre outubro de 1979 e julho de 1980, José Saramago percorreu o país de lés a lés a convite do Círculo de Leitores, que comemorava o décimo aniversário da sua implantação em Portugal. Disse o autor após essa deambulação, misto de crónica, narrativa e recordações, que «o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite... É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos»."

Já publicados na Porto Editora e as personalidades que colaboraram nas capas: 

Ensaio sobre a Cegueira- Caligrafia da capa por Chico Buarque
O Homem Duplicado - Caligrafia da capa por Lídia Jorge
A Viagem do Elefante -Caligrafia da capa por Mário de Carvalho
Os apontamentos - Caligrafia da capa por Maria do Céu Guerra
Provavelmente alegria - Caligrafia da capa por Nuno Júdice
As Pequenas Memórias - Caligrafia da capa por Gonçalo M. Tavares
As Intermitências da Morte - Caligrafia da capa por Valter Hugo Mãe
Memorial do Convento - Caligrafia da capa por José Mattoso
História do Cerco de Lisboa- Caligrafia da capa por Álvaro Siza Vieira
Os poemas possíveis- Caligrafia da capa por Almeida Faria
A Noite - Caligrafia da capa por Armando Baptista-Bastos
Manual de Pintura e Caligrafia - Caligrafia da capa por Júlio Pomar
Que farei com este livro?- Caligrafia da capa por Carlos do Carmo
Folhas políticas - Caligrafia da capa por Teresa Villaverde
A Caverna - Caligrafia da capa por Eduardo Lourenço
Ensaio sobre a Lucidez - Caligrafia da capa por Dulce Maria Cardoso
Levantado do Chão - Caligrafia da capa por Mia Couto
Objeto Quase – Caligrafia de capa por João Tordo
Terra do Pecado – Caligrafia de capa por José Luís Peixoto
A Jangada de Pedra – Caligrafia de capa por Mário Cláudio
Todos os Nomes – Caligrafia de capa por Miguel Gonçalves Mendes
O Evangelho segundo Jesus Cristo – Caligrafia de capa por Sebastião Salgado
O ano da morte de Ricardo Reis – Caligrafia de capa por Carlos Reis

Capa da edição



"É proibido quebrar ninhos e escrever prefácios
Homenagem a José Saramago"

Claudio Magris
Texto publicado na edição espanhola da Viagem a Portugal de José Saramago, editada pelo jornal El Mundo.
Tradução de José Colaço Barreiros.

"José Saramago não gosta de prefácios. Foi uma das primeiras coisas que o ouvi dizer, quando nos encontrámos pela primeira vez em Lisboa, há muitos anos, e  ele nos ofereceu, a  mim e  a Marisa, precisamente a  Viagem a  Portugal. As linhas iniciais desta viagem põem-nos em guarda contra os prefácios, inúteis se a obra não os requerer ou indícios da sua debilidade se deles precisar.
Eu de facto nunca escreveria — nem ninguém mo pediria — uma introdução ao Ano da Morte de Ricardo Reis, talvez o livro de Saramago que mais amo, ou a outros romances seus amados. Mas a viagem — no mundo e no papel — é em si uma espécie de contínuo prefácio, um prólogo a qualquer coisa que deve sempre estar ainda por vir e está sempre ainda a um canto; partir, deter-se, voltar para trás, fazer e desfazer as malas, anotar no seu caderninho a paisagem fugidia, que se esboroa, que se recompõe, enquanto se atravessa, como uma sequência cinematográfica com os seus
fundidos e encadeados, ou como um rosto muda com o tempo. E depois retocar, apagar e reescrever esses apontamentos, nessa contínua deslocação da realidade para o papel e vice-versa que é a escrita, neste sentido muito semelhante à viagem. Esta última, escreve Saramago no epílogo, recomeça sempre, tem sempre de recomeçar, como a  vida, e  toda a  sua anotação é  um prólogo. 
A Viagem a Portugal desmente as idiossincrasias do seu autor; com efeito tem uma apresentação e uma apostilha. Todo o texto autenticamente poético — e a Viagem é-o intensamente — é mais sabido do que quem o escreveu; esta é aliás uma prova da sua grandeza. Saramago viaja em Portugal, ou seja, dentro de si mesmo e não só, como ele diz, porque Portugal é a sua cultura. É-o no mundo, no espelho das coisas e dos outros homens, que se encontram a si mesmos, como aquele pintor de que fala uma parábola de Borges, que pinta paisagens, montes, árvores e rios, e por fim repara que deste modo retratou o seu próprio rosto. Toda a verdadeira viagem é uma odisseia, uma aventura cuja grande questão é se nos perdemos ou se nela nos encontramos a atravessar o mundo e a vida, se captamos o sentido ou se descobrimos a insensatez da existência. Desde as origens e desde o que é talvez o maior de todos os livros, a Odisseia, literatura e viagem surgem estreitamente ligadas, uma análoga exploração, desconstrução e recomposição do mundo e do eu. Um reconhecimento do real que, na sua fidelidade, se torna invenção e inventa mesmo o eu viajante, uma personagem literária.
A Viagem a  Portugal é  disto um fascinante exemplo. O  viajante avança, tal como na vida, numa mistura de programa e casualidade de metas marcadas e  imprevistas digressões que levam a outro sítio; engana-se no caminho, volta atrás, salta rios e ribeiros; está incerto quanto ao que visitar e ao que descurar, porque também viajar, como escrever e como viver, é acima de tudo abandonar. Detemo-nos em momentos gloriosos, grandes personagens e obras-primas artísticas — a admirável descrição de quadros e  sobretudo de igrejas, cinzeladas ou descascadas pelo vento e pelos séculos — mas também nas figuras das pessoas encontradas e entrevistas só por um instante, em que se lê uma história individual e ao mesmo tempo coletiva, como as mulheres de Miranda do Douro, que não se lembram de terem sido jovens, ou os rostos do Alentejo, ensombrados por antigos jugos sociais. 
O viajante recolhe histórias, célebres e obscuras, detém-se ao perfume de uma mimosa que resgata a mísera ruela de uma vilazinha. Presta atenção às cores, às estações, aos odores, às plantas, aos animais, ultrapassando muitas vezes as delimitações entre a natureza e a história — passar confins é o ofício do viajante — e descobrindo que esta mesma, como todas as fronteiras, é precária. «Onde é a fronteira?», pergunta-se ele e esta questão, que eu também me tenho posto tantas vezes, ao vagabundear ao longo do Danúbio ou nos meus microcosmos, não diz apenas respeito à fronteira entre Portugal e Espanha.
Quando passa por esta, o  viajante dirige-se aos peixes que numa margem nadam no Douro e na outra no Duero, pedindo conselho, talvez lembrando-se de que Santo Iago tinha pregado aos salmões, embora para os converter e induzir a aceitar o seu destino de serem pescados e comidos. Protagonistas desta viagem são, em páginas belíssimas, também o esplendor das águas do rio que encontram as do mar, a luz da praia, o brilho da cascata, a solidão da lagoa, o fragor do oceano nos rochedos, música que evoca um imenso silêncio, o dourado brunido do entardecer que se apaga nas planícies nas vizinhanças de Serpa, as pedras românicas de que até das mais humildes nascia uma grande arte, porque «os construtores estavam conscientes de erigirem a casa de Deus».
Neste livro, que sinto extraordinariamente próximo do meu contínuo vagabundear no mundo e na cabeça, a viagem também penetra não só no espaço mas sobretudo no tempo; é experiência da sua plenitude e da sua fugacidade e ao mesmo tempo guerrilha contra esta última, desejo de reter a tarde que foge e amanhã já não será a mesma, de fazer parar o tempo ou de o manter bem seguro errando no espaço. A viagem, como diz o título de um livro de Gadda, tem a ver com a morte e é por isso que capta momentos tão intensos de vida e se encanta, numa esplêndida passagem do livro, perante uma proibição, sob pena de uma forte multa, de destruir ninhos; proibição que penso que José Saramago aprovará ainda mais do que a de escrever prefácios. 
Para compreender a  sério, o  viajante paradoxalmente teria de parar, ser sedentário, participar a fundo na vida que se atravessa e  se deixa para trás; eu viajo continuamente e  sempre pensei que o viajante é alguém que desejaria ser residente, radicado mas em muitos lugares. A viagem nunca acaba, mas os viajantes, ou seja, nós, sim. Este viajante português diz, a certa altura, que esteve no bairro de Alfama, mas que não sabe o que é Alfama. Também nós estamos na vida, sem saber o que ela é."
Claudio Magris

Podem ser recuperadas e consultadas outras crónicas de Claulio Magris no jornal El Mundo, aqui
em http://ariadna.elmundo.es/buscador/archivo.html?q=claudio+magris&b_avanzada=

sábado, 12 de novembro de 2016

"José Saramago em destaque no Cinema História de novembro" - Biblioteca Municipal de Ponte de Lima

Cartaz alusivo ao evento

Informação pode ser recuperada e consultada aqui

"José Saramago - o primeiro escritor de Língua Portuguesa a arrecadar o Nobel da Literatura - é a personalidade que se segue no Cinema História - rubrica de pendor lúdico-didático dinamizada pela Biblioteca Municipal de Ponte de Lima (BMPL).

No mês de nascimento do autor de "Memorial do convento" - ocasião que coincide com a abertura da exposição biobibliográfica "A universalidade da escrita no Nobel da Literatura", que naturalmente destaca a figura de Saramago - a BMPL disponibiliza o documentário "José e Pilar", da autoria de Miguel Gonçalves Mendes que, filmado entre 2006 e 2009, mostra o quotidiano de um dos mais importantes escritores contemporâneos na sua relação com Pilar del Río, o público, a escrita e a vida.

Como tem sido habitual, a BMPL vai colocar à disposição dos utilizadores um livreto com a biografia da figura visada na edição de novembro do Cinema História, funcionando como complemento informativo do documentário que aborda um período específico da história de José Saramago.

Celebre a cultura portuguesa. Visite-nos!"