Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 30 de abril de 2020

The James Joyce Pub em Madrid

Quem visita o The James Joyce Pub em Madrid 
encontra-se também com grandes criadores. 
Um deles, José Saramago.





terça-feira, 28 de abril de 2020

"Não tenho esse sentido do artista torturado. Para mim escrever é um trabalho" - O Mirante (15/08/1992)


"Reportagem de Joaquim António Emídio e Alberto Bastos
Texto publicado na edição de O MIRANTE de 15 de Agosto de 1992"
Pode ser recuperado e consultado aqui
em https://omirante.pt/textos-que-fizeram-historia/2020-03-12-Nao-tenho-esse-sentido-do-artista-torturado.-Para-mim-escrever-e-um-trabalho


"José Saramago esteve na Golegã a conversar com os leitores do seu concelho.
"Cada acto cometido à nossa volta, quer pelos nossos parentes, quer pelos nossos amigos, quer pelos nossos inimigos, influi de maneira decisiva na nossa vida. Os livros que eu escrevi, existem por esta razão muito simples: porque o meu pai foi para Lisboa quando eu tinha três anos. Se não fosse assim eu, provavelmente, tinha ido para a loja do senhor Vieira vender açúcar ou para a loja defronte vender chitas e riscados. Era agora o José Saramago da Azinhaga, digno cidadão, mas não existiam os livros que escrevi.".

José Saramago, esteve na segunda-feira, 10 de Agosto de 1992, nas piscinas da Golegã e falou de si e dos seus livros. Natural de Azinhaga, freguesia daquele concelho, o autor de "O Evangelho segundo Jesus Cristo", foi o principal convidado do FTM - Encontros de Arte Contemporânea.

Falou durante mais de duas horas para perto de uma centena de pessoas. Respondeu a perguntas, contou histórias e irritou-se por duas vezes com observações, a despropósito, de um espectador. Chamam-lhe vaidoso e escritor de livros chatos. A conversa começou por aí. Sobre a pluralidade que existe em cada um de nós. Sobre quem é o José Saramago. O autor visto pelos outros e o autor visto por ele próprio.

"Cada um de nós, fisicamente, é apenas um, mas contudo, se olharmos para dentro de nós, encontramos várias pessoas e o grande esforço que fazemos ao longo da vida é para que os outros nos vejam como um só. É o esforço para controlarmos a nossa pluralidade.".

Faz uma pausa, reflecte, e retoma a resposta. "Eu tenho uma péssima reputação neste país. Não porque tenha roubado ou assassinado, mas sou tido como uma pessoa antipática, presunçosa, complicada, orgulhosa. Aqueles que me querem mesmo mal, até dizem que eu sou muito vaidoso. O que eu posso dizer de mim é que, pelo menos, sou uma pessoa bastante coerente. Quase me apetece dizer que eu sou de uma coerência total. Não renego nada do que fiz.".

Saramago foi minucioso nas respostas, como é minucioso nos livros. Nunca se importou de se alongar até sentir que todos tinham compreendido exactamente o que ele tinha para dizer. Deu conselhos sobre leituras, confessou que está a ler George Steiner e o último livro de contos do Gabriel Garcia Marques e lembrou e citou outros escritores: Fernando Pessoa, Camilo Castelo Branco, Gil Vicente, Alexandre O'Neil.

"O Alexandre O'Neil dizia, com muita graça e com muita inteligência, dirigindo-se aos autores, aos escritores: "Não contem a vidinha. A vidinha não tem importância nenhuma". Eu trato de ir procurar os meus temas, não na minha própria vida pessoal, mas na visão que eu tenho do mundo, da sociedade, do homem, da história e da cultura. É aí que procuro os meus temas.".

Numa conversa com José Saramago era quase inevitável falar do livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" e da polémica que causou (em Abril de 1992, o subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, vetou o livro para o Prémio Literário Europeu). Saramago reconheceu que a Igreja portuguesa foi bastante discreta relativamente ao assunto e considerou que a atitude de Sousa Lara, o seu censor, foi uma atitude a nível puramente pessoal.

Sobre o livro disse ser fundamentalmente um livro sobre a culpa. "A culpa do pai de Jesus, José, que tendo sabido, conforme se conta nos evangelhos, pela visita de um anjo, que Herodes ia mandar matar os meninos de Belém, não fez aquilo que era natural, que era bater à porta dos vizinhos e dizer-lhes para porem os filhos a salvo.".

Com a noite a arrefecer, arrefeceu também a conversa. Apesar disso o escritor ainda respondeu a algumas outras questões sobre a maneira como escreve, para quem escreve e qual a relação entre escritor e leitores. "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" foi o único livro em que Saramago contrariou o seu hábito de escrever apenas de tarde. A meio do livro teve um problema numa vista, estava em Roma e esteve em risco de cegar. Depois recuperou. Recuperou da vista e da escrita que praticou em ritmo intensivo. De resto, confessa, não dramatiza no acto de escrever.

"Não tenho esse sentido do artista torturado. Escrever é uma coisa que eu faço, da parte da tarde, sem romantismo nenhum. Para mim escrever é um trabalho. Um trabalho com a matéria. Um trabalho com a palavra. Não estou à espera que o Espírito Santo me venha segredar ao ouvido como é que eu vou escrever.".

Acrescenta que também não pensa nos eventuais leitores. "Também não escrevo para ninguém. A ideia de que o escritor tem em mente um público, é uma ideia que eu considero absurda. Não há um público para o autor. O que se estabelece depois entre o escritor e os leitores é o afecto. Afecto no sentido de que para o leitor, aquele autor é necessário. A grande tarefa do leitor não está em perceber a história que está a ser contada, mas reconhecer que em cada livro vem uma pessoa, que é o autor, que é preciso conhecer.".

Reportagem de Joaquim António Emídio e Alberto Bastos

Texto publicado na edição de O MIRANTE de 15 de Agosto de 1992"

sábado, 25 de abril de 2020

"A Noite" - Peça de teatro, 1979






"A Noite" - Peça de teatro, 1979





















Sinopse que pode ser consultada e recuperada na página da Fundação José Saramago


«Depois de ter feito jornais, escreveu sobre eles. Foi em “A Noite”, a primeira obra dramática de Saramago que o escritor dedica a Luzia Maria Martins, a pessoa que o “achou capaz de escrever uma peça”. Seria mesmo. A noite de que se fala nesta peça ficou para a história: de 24 para 25 de Abril. A acção passa-se na redacção de um jornal em Lisboa e autor avisa: “Qualquer semelhança com personagens da vida real e seus ditos e feitos é pura coincidência. Evidentemente.” Nem outra coisa seria de esperar. A ironia passa também pela história desta noite em que administradores e redactores entram em conflito. Uns a gritar que a máquina “há-de parar” e outros a defender que ela “há-de andar”. Quando o escreveu, Saramago já sabia que, para o bem e para o mal, a máquina tinha continuado a andar. “A Noite” chegou aos palcos em Maio de 1979 pelo Grupo de Teatro de Campolide. Com encenação de Joaquim Benite e direcção musical de Carlos Paredes, a peça contava, entre outros, com a participação de António Assunção no papel do chefe de redacção Abílio Valadares.» (Diário de Notícias, 9 de Outubro de 1998)

25 de Abril - Continuar Abril - Continuar Saramago


Três obras emblemáticas de José Saramago 
onde o despontar e a presença do 25 de Abril de 1974 marca presença de forma muito vincada. 
O senhor "H" do manual, 
a redacção e as rotativas de A Noite 
os Mau-Tempo no Lavre que resistem à ditadura da fome

25 de Abril de '74

sexta-feira, 24 de abril de 2020

"Emergência climática e feminismo são as chaves para o tempo em que vivemos" Entrevista a Pilar del Río à revista "Marie Claire" Brasil 15/03/2020

"Pilar del Río: "Emergência climática e feminismo são as chaves para o tempo em que vivemos"

Jornalista, tradutora, presidenta da Fundação José Saramago e herdeira do legado do escritor português, de quem foi companheira por 22 anos, Pilar del Río fala em entrevista exclusiva à Marie Claire sobre envelhecimento, feminismo, trabalho, os principais desafios para o mundo e, sobretudo, para as mulheres nesta nova década

A entrevista pode ser consultada e recuperada aqui
em https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/03/pilar-del-rio-emergencia-climatica-e-feminismo-sao-chaves-para-o-tempo-em-que-vivemos.html

De Mariana Pontual (Lisboa, 15.3.20)


"Nascida na cidade de Castril, na Espanha, em 15 de março de 1950, Pilar del Rio completa 70 anos como uma verdadeira potência da natureza, reunindo "todas as forças do mundo". Faz questão de ir de metrô ao trabalho, viaja pelo mundo representando a Fundação José Saramago, é ativa e engajada no Twitter, tudo isso ao mesmo tempo em que preza por conversar e tirar fotos com os fãs de Saramago pelas ruas de Lisboa. De onde ela tira toda essa energia? Da lucidez e consciência de uma vida bem vivida.

Marie Claire. Você acaba de completar 70 anos. Essa marca lhe surpreende de alguma forma? Como vê o passar do tempo?
Pilar Del Río. Da maturidade à senilidade, dizia um sábio brasileiro. Vemos como o nosso corpo muda, como se perde agilidade e diminui-se as expectativas que criamos, ao mesmo tempo que aumenta a consciência que temos de nós mesmos. É que cada dia acumulamos mais experiências e memória, por isso podemos dizer “eu” sem tanta inseguranças e medos. E sem egoísmo, com a certeza de estar viva sabendo que o final não está tão longe.


No livro "José e Pilar" (2011), de Miguel Gonçalves Mendes, você afirma "viver todos os dias como se fosse o primeiro e como se fosse o último. Isso eu tenho muito claro toda manhã quando me levanto, que se for o último não vão ficar coisas por fazer, e que vou vivê-lo com a mesma ilusão do primeiro." O que move e confere toda essa energia a Pilar?
Saber que sou uma privilegiada, que recebi muito. Fazemos a conta? Nasci num tempo em que tínhamos água quente e numa casa onde havia comida todos os dias. Fui à escola, pude aprender a ler e continuei lendo. Nunca tive que andar muitos quilômetros para ir trabalhar, recebi salários confortáveis, tenho amigas e amigos, uma família que festeja a vida diariamente, tive encontros sentimentais surpreendentes... Nessa situação, como não vou ter forças? Tenho todas as forças do mundo. Desistir seria não restituir à vida tudo o que ela me deu, seria cometer uma injustiça.


Como encara o desafio de levar adiante o rico legado de José Saramago, mantendo vivas as suas ideias e obra? Quais as maiores dificuldades e as maiores recompensas?
Fernando Pessoa, através do heterônimo Ricardo Reis, disse: "Põe quanto és no mínimo que fazes". É o que procuro fazer para encarar o desafio, coloco tudo o que sou e tenho. E trabalho todos os dias consciente de que, não sendo o escritor, tenho a responsabilidade de continuá-lo.

As maiores dificuldades nascem da constatação dos limites: observar que a dimensão do escritor é outra e que por muito que tente, não chego ao seu nível. As maiores recompensas chegam dos leitores: quando sinto que o livro ou o espaço em que se trabalha - a Fundação, em Lisboa, ou A Casa, em Lanzarote - é incorporado por pessoas distintas, que chegam até nós para nos agradecer. Receber essas respostas compensa o esforço, e muito.

Graças aos avanços da medicina, as pessoas estão vivendo mais e a expectativa de vida aumenta a cada ano. No entanto, nossa sociedade cultua fortemente a juventude, especialmente entre as mulheres. Acha que nós, mulheres, "sofremos" mais com o envelhecer que os homens? Como você percebe e lida com essas questões?
Os chamados “valores triunfantes” da sociedade de consumo me importam muito pouco, entre outros motivos porque são claramente falsos: valora-se a juventude, dizem, mas quando um jovem se apresenta, por exemplo, a um cargo político ou um posto de responsabilidade ele é descartado por ser inexperiente. Sejamos claros, a velhice me chateia porque gostava mais da imagem que o espelho me devolvia no passado e, além disso, enxergava melhor, sem necessidade de óculos, mas não sofro por isso. Claro que os homens são “maduros” e nós somos “velhas”, isso é verdade. Mas os homens maduros são mais feios que as mulheres velhas, sobretudo são muito feios os que sustentam essa besteira que vincula beleza à juventude delas enquanto eles são obscenamente arrogantes.


Entramos em 2020 e anunciamos uma nova década. Na sua opinião, quais serão as questões mais urgentes para a humanidade nos próximos dez anos?
A irrupção das mulheres na direção da sociedade de mudanças em que agora vivemos. Os valores até agora defendidos pelo patriarcado, com os seus heróis, guerras, beligerâncias variadas, fronteiras, bandeiras, domínios e submissões, devem ser substituídos por políticas diferentes: somos uma sociedade global, existe a consciência de que temos que caber todos ou o planeta explode. Por isso, meio ambiente ou emergência climática, e feminismo são as chaves para o tempo em que vivemos. No mundo todo será assim, o novo no lugar dos discursos de prepotência social e de gênero que já não são aceitáveis.



Se fizermos uma retrospectiva para a década em que nasceu, 1950, você acha que essas questões mudaram muito? Percebe de alguma forma que estejamos talvez "regredindo" em algumas delas?
De um modo geral, progredimos. Embora as resistências, vamos avançando. Quando eu nasci, nos anos 50, Espanha e Portugal viviam em ditadura, as pessoas não tinham direito a voto e, além disso, as mulheres tinham status de obediência ao marido, e as relações estavam governadas pela religião. Na Espanha o nacional-catolicismo imperava, tudo era pecado, dogmas, religião sem espírito, nos inoculavam que fôssemos submissas e que não chamássemos atenção. Depois, nos anos 60, começaram a chegar exemplos de revoltas em outros lugares. Por muito tempo que eu viva não seria capaz de agradecer o devido ao Maio de 1968 francês, que para mim foi definitivo. Foi a liberdade, deixar atrás uma sociedade sem alegria, descobrir tantas coisas. 


E para as mulheres, quais as lutas mais urgentes nessa nova década? O que mais lhe preocupa hoje e quais os caminhos possíveis para o feminismo?
Preocupa-me que se usem as facilidades da comunicação global para vender novos tipos de escravidão e submissão. Tomara que as e os feministas saibam explicar que a igualdade é liberação para todas e todos. Precisamos de base cultural para que não nos façam de mercancia e é imprescindível a educação e o humanismo para que isso seja construído sem dogmas, a partir da cidadania. Este é o tempo da ética da responsabilidade e, no quesito responsabilidade, somos campeãs. Mesmo quando só servíamos para parir e servir, o mundo só se sustentou porque nós, mulheres, o mantivemos em pé.

É muito diferente ser feminista hoje do que nos anos 1970 na Espanha Franquista?
É muito diferente, claro que sim. Naqueles tempos não havia luz, hoje em dia conquistamos a rua, temos voz e palavra. Somos aquilo que queremos ser no trabalho, no amor e na sociedade. Isso sim, mas não podemos esquecer que muitas mulheres ainda não estão incorporadas no fabuloso mundo da política eleitoral.

O que a Pilar de 70 anos falaria para a Pilar de 20?
Que resista. Que para chegar aos 70 com força, sonhos, desejos e vitalidade é preciso ter combatido e aguentado muito. Mas é possível, se vamos juntas, claro, se consegue."

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Assinalamos a data! Viva o Dia Mundial do Livro

Fotografia tirada na Fundação José Saramago em Agosto de 2012


Fotografia composta "Levantado do Chão" e alianças

Cartaz alusivo ao Dia Mundial do Livro (de Mariana Rio)


quarta-feira, 22 de abril de 2020

"Quero que as coisas nunca mais voltem ao normal" Entrevista a Fernando Meirelles ao portal brasileiro UAI (Mariana Peixoto, 12/04/2020)

(foto: Ricardo Matsukawa/Divulgação)

"'Quero que as coisas nunca mais voltem ao normal', diz Fernando Meirelles
Cineasta e ambientalista, Fernando Meirelles afirma que a pandemia do novo coronavírus talvez seja a última oportunidade de reformularmos nossa relação com o planeta e um estilo de vida que não estava correto"

Entrevista de Mariana Peixoto publicada no portal UAI em 12/04/2020
Pode ser consultado e recuperado aqui


“A única coisa mais aterradora do que a cegueira é ser a única pessoa que consegue enxergar.” A frase é do escritor José Saramago (1922-2010) e ganhou a voz da atriz Julianne Moore, intérprete da única mulher que continua capaz de ver, depois que uma epidemia viral cega toda a população, no Ensaio sobre a cegueira criado pelo escritor português e levado ao cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles em 2008.

A mulher que mantém a capacidade de enxergar assiste, em meio ao caos crescente, a comportamentos marcados pelo egoísmo, autoritarismo e violência sexual. Vinte e cinco anos após sua publicação, o livro do Nobel português de literatura voltou à tona, por razões mais do que óbvias. “Saramago dizia que a humanidade era uma experiência que não deu certo”, afirma Fernando Meirelles. Na entrevista a seguir, franca, sem meias palavras, como lhe é de praxe, o cineasta reflete sobre o meio ambiente, a política, o cinema, a família. O mundo dele, o seu, o nosso, não serão os mesmos pós-COVID 19. “Seria uma pena desperdiçarmos a oportunidade para repensar. Talvez a última oportunidade.”


Impactados, profissional e pessoalmente, todos estamos diante dos acontecimentos. Em que medida a pandemia está afetando sua produtora, a O2 Filmes? O que é possível fazer agora?
A O2 Filmes estava rodando três séries e preparando mais duas quando o mundo parou. As filmagens foram interrompidas de um dia para o outro, com previsão de retomar entre junho e julho. Campanhas de publicidade também foram adiadas na boca do gol. A produtora estava funcionando a todo vapor e, em três dias, deu uma freada de 90%. Se fecharmos o ano no zero a zero, vamos comemorar. Mas esta é a hora de engolir o choro e fazer o que tem que ser feito. O poeta e amigo Tadeu Jungle tinha um poeminha impresso em uma camiseta de que eu gostava muito. Na frente dizia: TUDO PODE. Era poderoso. Quando ele ia embora se lia nas costas: PERDER-SE. Nossa civilização é muito menos sólida do que queremos acreditar.

E no nível familiar? É hora de nos recolhermos com aqueles que nos são mais caros?
Goste ou não, a convivência agora é mandatória. Você vai ter que encarar! Sorte para quem tem uma família funcional e amorosa. Sou um destes. Sinto por quem estava naquelas de empurrar as insatisfações com a barriga usando a distância. Agora é hora de entrar em contato. Seria um bom momento para assistir Entre quatro paredes (1944), peça do Sartre em que a conclusão a que chegam os personagens é que o inferno são os outros. Mas o tropeção joga a gente para a frente – ou para fora de casa, depois que passar o surto.

Além da pandemia do novo coronavírus, há também uma epidemia de cegueira em curso? Que relações você traça entre o que está ocorrendo e a história de Saramago que filmou?
Só agora soubemos que esta pandemia e as outras que virão estavam anunciadas há um tempo. Aquele TED Talk de 2015 do Bill Gates parece uma consulta a um vidente, mas mesmo quem assistiu não enxergou o que ele dizia. Nossa mente parece trabalhar com filtros para enxergar só o que precisa. Lembro que quando a minha mulher ficou grávida, eu via grávidas em todo lugar. Achava que estava acontecendo um boom de nascimentos no mundo. Filtros. Saramago dizia que a humanidade era uma experiência que não deu certo, seu Ensaio sobre a cegueira fala sobre isso e sobre a nossa incapacidade de ver o que está na nossa frente.

Que reações positivas você viu por parte dos governos mundo afora?
Apesar de um ou outro vacilo, no geral as reações dos governos ao redor do mundo pareceram rápidas e responsáveis, mesmo tendo que adotar medidas duras que comprometem o futuro próximo. No Brasil, se tivéssemos um governo no modelo que o Partido Novo propõe, o do Estado mínimo, estaríamos ferrados. É fato que muitos empresários estão fazendo doações, mas por sorte temos um Estado mais forte que pode fechar o comércio, criar estruturas hospitalares da noite para o dia, defender os cidadãos, importar ventiladores, testes e máscaras. A iniciativa privada diria que não é problema dela ou tenderia a mandar o pessoal de volta ao trabalho. Eu me recuso a entrar num pingue pongue ideológico, mas esta experiência é uma oportunidade para quem acredita na lógica do mercado como solução para todos os problemas rever alguns conceitos.

Como você comentou no Twitter, os esquilos já voltaram para o jardim da sua casa. Que pontos positivos você enxerga como decorrência do isolamento social?
Depois de 10 anos, um casal de pandas do Ocean Park, em Hong Kong, acasalou esta semana porque fecharam o parque, dando a eles alguma privacidade. Golfinhos voltaram ao canal de Veneza. Em cidades no Norte da Índia, agora os Himalaias podem ser vistos depois de 30 anos. Há sinais assim por todos os lados, os esquilos no meu jardim são só mais um deles. Será que colocaremos o pé no freio quando tudo passar? Ou vamos correr ansiosos para retomar o ritmo frenético? Não posso falar pelo mundo, mas eu aprendi algumas coisas e espero voltar com a voltagem mais baixa, viver menos como se estivesse numa prova de 100 metros rasos e mais como se caminhasse num parque. Seria uma pena desperdiçarmos a oportunidade para repensar. Talvez a última oportunidade. Outro dia me mandaram uma pergunta: 'E se o vírus for o anticorpo?'. Pareceu mais que uma boa piada.

Que mundo você imagina para depois da COVID-19?
Podemos enveredar para um mundo mais autoritário, onde a monitoração e o controle do cidadão passem a ser vistos como normal. Onde a falta de empregos que se seguirá leve à consolidação da perda de conquistas de quem trabalha todo dia. Ou podemos pegar o outro viés, onde a solidariedade que está pipocando em todo canto floresça como um vírus e os cidadãos assumam o seu destino. O que eu gostaria? Que as coisas nunca mais voltassem ao normal, porque aquele normal de normal não tinha nada.

Você filmou O jardineiro fiel (2005) no Quênia. Qual a sua opinião sobre os países africanos neste momento?
Ouvi um biólogo indiano/americano que afirma com muita segurança que a vitamina D é uma prevenção decisiva. O que as pessoas atribuíram ao frio do inverno onde tudo começou, ele diz que, na verdade, foi a falta de sol que fez o vírus explodir nos países do Norte e em playboys nos países do Sul (ele não usou o termo playboy). Por outro lado, mostrava que em países como o Mali, onde a população vive sob o sol do Saara, o vírus não foi para a frente. De fato, na África o bicho ainda não pegou. Espero que o biólogo esteja certo. De qualquer maneira, pelo sim ou pelo não, já peguei um bronze.

Como uma pessoa que viaja muito mundo afora, como você se sente em relação ao desafio da sustentabilidade do planeta? 
É curioso como este vírus, que ameaça 2% da humanidade por um período curto, conseguiu nos mobilizar e mudar nossos hábitos tão rapidamente, enquanto a crise do clima, que ameaça toda a humanidade definitivamente, tipo extinção, não consegue gerar um décimo das medidas necessárias para podermos enfrentar o baque que vem. Isso deve ter relação com nosso foco no presente. Uma gripe com risco de hospital na semana que vem, para a maioria, é imensamente mais preocupante do que um problema cujas previsões catastróficas são só para 2100. Caramba, acorda! Em 2100, minha neta vai ser 17 anos mais jovem do que a minha mãe hoje. Está na porta.

O que um cidadão responsável deve fazer neste momento e o que um cidadão responsável e famoso pode fazer agora?
O cidadão responsável e que possa se dar ao luxo de não se expor deve seguir as recomendações, seja famoso ou não. Tem famosos muito mobilizados na ajuda a comunidades, gente que não está só no Twitter, mas com a mão na massa. E tem famoso, como os Malafaias que, como o demo, parecem ter vindo para confundir, iludir, piorar o que já não está fácil.

Seu próximo filme é sobre a crise  do clima. Você já está repensando esse projeto? 
Como estou em fase de desenvolvimento de roteiro, esta crise não afeta tanto o projeto, mas eu e o Bráulio Mantovani, roteirista, estamos pensando se devemos trazer a história até o momento pós-vírus. A ideia me parece interessante, mas ainda não sei como fazer isso sem perder o foco. Tem que esperar decantar para ver como fica.

O streaming está aparecendo como tábua de salvação para muita gente durante a pandemia. Acredita que toda a cadeia audiovisual será repensada? O cinema não será o mesmo pós-COVID?
Essa COVID-19 parece vir em ondas, por isso há uma grande parte da indústria que acredita que os cinemas não serão reabertos até o final do ano. Se isso acontecer, haverá um bom tempo para consolidação de novos hábitos, o que pode afetar fortemente as salas. Fora isso, em geral os festivais de Telluride, Veneza e Toronto são as plataformas para lançamento dos filmes fortes do ano que concorrerão a Oscars. Este ano, é possível que todos festivais sejam cancelados. Também sem lançamentos em salas, não haverá quase nada para ser premiado. Algo muito transformador deve acontecer no setor sem seus mercados e eventos principais. 


terça-feira, 21 de abril de 2020

Sobre a interpretação e poema "Nesta esquina do tempo" de José Saramago no canal RTP2 (18/11/2013)

"Magazine literário, com apresentação de Teresa Sampaio, dedicado ao livro "Nesta esquina do Tempo", poemas de José Saramago musicados por Luís Pastor, em edição bilingue (português e espanhol), comentado pelo canto-autor Luís Pastor e por Pilar del Río, com recurso à memória fílmica de uma inesquecível reunião de amigos, e pessoas improváveis, que festejaram a obra de Saramago no dia da inauguração da sua Biblioteca, em Lanzarote.

Nome do Programa: Ler+, Ler Melhor
Personalidades: Teresa Sampaio, Luís Pastor, Pilar del Río
Temas: Artes e Cultura
Canal: RTP 2
Apresentação e produção: Teresa Sampaio Realização: António Pinto

Pode ser recuperado e visualizado aqui
em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/a-jose-saramago-nesta-esquina-do-tempo/


segunda-feira, 20 de abril de 2020

"El don envenenado de la mirada" de Miguel Alberto Koleff no HoyDia (16/04/2020)

"El don envenenado de la mirada"
Por Miguel Alberto Koleff
16/04/2020

Publicado no HoyDia Noticias de Córdoba - Argentina

Pode ser consultado e recuperado, aqui
em https://www.hoydia.com.ar/cultura/68374-el-don-envenenado-de-la-mirada.html



"No es seguro que la pandemia del coronavirus nos alcance el cuerpo físico pero sí es un hecho que ya se apoderó de nuestra mente haciéndonos prisioneros del pánico. La expresión más cabal se pone en evidencia a la hora de amarrotar mercaderías en los supermercados a la vez que nos sobreexponemos al contacto de la multitud durante esa hazaña. Da la impresión de que, si construimos un almacén paralelo al fondo de nuestra casa, estamos más protegidos del mal e, incluso, inmunes a sus efectos. Un extraño convencimiento nos hace pensar que podemos socavar la enfermedad y pasarle al lado sin sufrir consecuencias. Y lo que ocurre verdaderamente es que –en esta encrucijada- podemos ser alcanzados al menor suspiro por un cruce circunstancial, por un accidente, por un encuentro fortuito, por un desatino…

Claro que hay que cuidarse y cuidar a los demás pero sin falsas presunciones creyendo tener la solución en nuestras manos ya que –en casos así- el azar se vuelve imponderable y el destino nos vigila desde una hendija. Precisamente, este malabarismo de lo impredecible es el que lleva al pensador francés Georges Didi-Huberman a hacer interactuar los términos «similar» y «simultáneo» en un brevísimo artículo con ese nombre, para demostrar el funcionamiento de la sincronicidad. Toma, para ello, el curioso ejemplo de una partida de dados que –más allá del juego en el que se inscribe- convoca la fatídica suerte que le cabe a sus destinatarios. Tres dados arrojados al mismo tiempo devengan resultados diferentes que van desde un extremo al siguiente. El prefijo «simul» que vincula los dos vocablos (y las dos acciones) conjura esa circunstancia.

En su razonamiento, el filósofo imagina a tres sujetos como partes responsables de la apuesta y decide que «a uno le toca la vida; al otro, la herida; al tercero, la muerte» (Didi-Huberman, 1998, p. 23). No explica cómo llegan a ese lugar ni tampoco las motivaciones personales que los instalaron en ese sitio. Ninguno sabe de antemano el resultado ni tampoco se anima a cuestionarlo pero cada uno por su lado confía en ser el afortunado. Tanto así que, en medio de la contienda, no abdica de sus oportunidades. El accidente automovilístico se produce después pero sigue cálculo a cálculo el pronóstico de los dados. Uno se consume en el interior de los despojos y queda reducido a «esa gran superficie de sangre que va aumentando en silencio» (p. 24), otro mensura los gravísimos daños y no deja de requerir ayuda, mientras que el tercero resiste, atontado, desde fuera. Ha sido expulsado del coche y puede testimonar con horror la sina de sus compañeros de viaje. Didi-Huberman sintetiza con estas palabras el perfil de la escena:

Ese es el sentido de la tirada de dados –tres dados similares arrojados simultáneamente-: al tercero, le toca ser reducido a una mancha que solo avanza con el poder de la muerte. Al segundo, la locura y lo infinito, tal vez hasta la muerte, de los sufrimientos físicos. Al primero, sin duda para siempre, el don envenenado de la mirada (p. 24).

La pandemia del coronavirus puede homologarse perfectamente a este desafío que –para el autor- toma la forma de una tragedia con un saldo fatal irreversible. La resolución silogística no es difícil de prever, tampoco sus alcances. No podemos negar el número de víctimas fatales que engrosará las estadísticas, tampoco desconocer ese otro conjunto que quedará ileso pero que soportará el grave impacto el resto de sus vidas. Menos aún, la existencia de un último grupo, tal vez el más expansivo formado por sobrevivientes, a los que le cabe sostener «para siempre, el don envenenado de la mirada». Es necesario detenernos en estos mientras sea posible contar con el efecto benéfico de sus ojos todavía altivos a los fines de hacer productiva la supervivencia.

Llegado a este punto de la argumentación, me interesa convocar al debate, el libro del nobel portugués José Saramago publicado en 1995: Ensayo sobre la ceguera. Primero, porque parece calcado a la realidad que estamos viviendo ya que el universo narrativo de la pandemia que comienza a expandirse (la ceguera blanca) mucho se asemeja a la que nos rodea aunque sus síntomas sean diferentes; y después, porque se anima a dar una prudente respuesta al acto de responsabilidad solidaria que exige una coyuntura como la actual a través de la metáfora de la visión. No se puede decir que Saramago ignore la «rivalidad de la suerte» (p. 24) que describe Didi-Huberman porque lo hace muy bien y el marco de la ficción es una muestra extraordinaria de esa lógica ambivalente que trae aparejada la distopía. Pero la clave que enriquece esta perspectiva radica en el papel del testigo ocular, de aquel que puede ver todo lo que le está pasando a su lado y el modo como procesa su misión de cara al futuro.

Precisamente, en el caso del autor lusitano, le cabe sólo a una única mujer conservar la vista cuando todos han quedado ciegos y por eso puede dar cuenta –con incisión e sin impostura- el curso de los acontecimientos desde el inicio destemplado hasta el caos en que se transforma durante su apogeo. Pero esta virtud no se desarrolla sin el peso de la herida y por eso, muchas veces la misma protagonista –entronizada como heroína- prefiere quedarse ciega también antes de cargar el deber que lleva encima. No lo hace, sin embargo. Resiste y avanza hasta el final porque –a su modo- se sabe conductora del resto de humanidad que todavía nos hermana como especie. En un bellísimo diálogo que mantiene sobre el final con una de las apestadas a las que guía y conduce, afirma sin ambages: «Hoy es hoy, mañana será mañana, y es hoy cuando tengo la responsabilidad, no mañana si ya estoy ciega, Responsabilidad de qué, La responsabilidad de tener ojos cuando otros lo han perdido» (Saramago, 1995, p. 287).

En el capítulo final de la novela, la pandemia llega a su fin porque el primer ciego recupera la vista y así lo hacen todos los demás, de manera escalonada y en orden creciente en un breve lapso. El coronavirus también llegará su fin –al menos en forma masiva- pero no estamos todavía en condiciones de medir sus consecuencias. Hasta hoy ha mostrado la fase más oscura del ser humano, la del consumismo servil y capitalista que no piensa en las necesidades del prójimo y que se autoenajena en el propio sustento. Tal vez mañana sea otra cosa. No lo sabemos a ciencia cierta pero no perdemos nada con esperar. Lo que sí está claro es que no hay tiempo para derrochar y que los que poseen los ojos bien abiertos tienen que ayudar a los que ya lo cerraron o van en ese camino. La novela de José Saramago abre un interrogante que estamos prontos para responder y que nos marcará como humanidad. No tengamos fe pero tampoco desalentemos la esperanza. Quien sabe, el juego del azar nos depare una alternativa inapreciable a esta altura y que valga la pena.
Fuentes consultadas
Didi-Huberman, G. (1998). Similar y Simultáneo. En G. Didi-Huberman, Fasmas (págs. 23-24). Cantabria: Shangrila.
Saramago, J. (1995). Ensaio sobre a cegueira. Lisboa: Caminho. Traducción al español de Alfaguara"

sábado, 18 de abril de 2020

"A humanidade não merece a vida" José Saramago ao Folha de São Paulo - Brasil (29/11/2008)

Pode ser recuperado aqui


"JOSÉ SARAMAGO
A humanidade não merece a vida

Prêmio Nobel português se define como um "comunista hormonal" e afirma que os instintos servem melhor aos animais do que a razão aos homens

O ESCRITOR português José Saramago, 86, disse ontem que "a história da humanidade é um desastre" e que "nós não merecemos a vida". O autor, vencedor do Nobel de Literatura em 1998, participou de sabatina da Folha em celebração dos 50 anos da Ilustrada. O debate, assistido por 300 pessoas em um Teatro Folha lotado, teve como mediador o secretário de Redação do jornal Vaguinaldo Marinheiro. Participaram também, como entrevistadores, o crítico Luiz Costa Lima, a repórter da Ilustrada Sylvia Colombo e Manuel da Costa Pinto, colunista do caderno.

DA REPORTAGEM LOCAL

HUMANIDADE
A história da humanidade é um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a se enfrentar... Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em mim, uma espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não a merecemos. Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar o outro animal. Mas nós não, nós matamos por prazer, por gosto. Se fizermos um cálculo de quantos delinqüentes vivem no mundo, deve ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos a razão para defender a vida; usamos a razão para destruí-la de todas as maneiras -no plano privado e no plano público.

MARXISMO HORMONAL
Desde muito novo orientei-me para a consciência de que o mundo está errado. Não importa aqui qual foi o grau da minha militância todos esses anos. O que importa é que o mundo estava errado, e eu queria fazer coisas para modificá-lo. O espaço ideológico e político em que se esperava encontrar alguma coisa que confirmasse essa idéia era, é claro, a esquerda comunista. Para aí fui e aí estou. Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista.

CRISE ATUAL
Marx nunca teve tanta razão quanto agora. O trabalho constrói, e a privação dele é uma espécie de trauma. Vamos ver o que acontece agora com os milhões de pessoas que vão ficar sem emprego. A chamada classe média acabou. Ou melhor: está em processo de desagregação. Falava-se em dois anos [para a recuperação da economia depois da crise financeira]; agora já se fala em três. Veremos se Marx tem ou não razão.

DEUS E BÍBLIA
Por que eu teria de mudar [a concepção de Deus após a doença]? Porque supostamente me salvou a vida? Quem me salvou foram os médicos e a minha mulher. E Deus se esqueceu de Santa Catarina? Não quero ofender ninguém, mas Deus não existe. Salvo na cabeça das pessoas, onde está o diabo, o mal e o bem. Inventamos Deus porque tínhamos medo de morrer, acreditávamos que talvez houvesse uma segunda vida. Inventamos o inferno, o paraíso e o purgatório. Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle, não tanto das almas, porque à igreja não importam as almas, mas dos corpos. O sonho da igreja sempre foi nos transformar em eunucos. A Bíblia foi escrita ao longo de 2.000 anos e não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos...

RELAÇÃO COM PORTUGAL
Espalham por aí idéias sobre minha relação com meu país que não estão corretas. Saímos [Saramago e sua mulher, Pilar] de Lisboa [para a ilha de Lanzarote] em conseqüência de uma atitude do governo, não do país nem da população. Mas do governo, que não permitiu que meu livro ["O Evangelho Segundo Jesus Cristo"] fosse inscrito num prêmio da União Européia. Nunca tive problemas com o meu país, mas com o governo, que depois não foi capaz de pedir desculpas. Nisso, os governos são todos iguais, dificilmente pedem desculpas. Fomos para lá e continuamos pagando impostos em Portugal. Agora temos duas casas. Mudei de bairro, porque o vizinho me incomodava. E o vizinho era o governo português.

ACORDO ORTOGRÁFICO
Em princípio, não me parecia necessário. De toda forma, continuaríamos a nos entender. O que me fez mudar de opinião foi a idéia de que, se o português quer ganhar influência no mundo, tem de adotar uma grafia única. Se Portugal tivesse 140 milhões de habitantes, provavelmente teríamos imposto ao Brasil a nossa grafia. Acontecem que os 140 milhões estão no Brasil, e o Brasil tem mais presença internacional. Perderíamos muito com a idéia de que o português é nosso, nós o tornaríamos uma língua que ninguém fala. Quando acabou o "ph", não consta que tenha havido uma revolução.

LITERATURA BRASILEIRA
Houve um tempo em que os autores brasileiros estavam presentes em Portugal, e em alguns casos podíamos dizer que conhecíamos tão bem a literatura brasileira quanto a portuguesa. Graciliano Ramos, Jorge Amado, os poetas, como João Cabral [de Melo Neto], Manuel Bandeira, essa gente era lida com paixão. Para nós, aquilo representava a voz do Brasil. Agora, que eu saiba, não há nenhum escritor brasileiro que seja lido com paixão em Portugal. Culpo a mim, talvez, por não ter a curiosidade. Mas também não temos a obrigação de descobrir aquilo que nem sabemos se existe.

LEITOR
O leitor me importa só depois que escrevi. Enquanto escrevo, não importa, porque não se escreve para um leitor específico. Há dois tempos, o tempo em que o autor não tinha leitores e o tempo em que tem. Mas a responsabilidade é igual, é com o trabalho que se faz. Agora, eu penso nos leitores quando recebo cartas extraordinárias. É um fenômeno recente. Ninguém escreveu a Camões, mas hoje há essa comunicação, essa ansiedade do leitor.

"Em nome de todos os brasileiros, obrigada por existir", disse alto, ao final da sabatina, uma integrante da platéia, enquanto Saramago terminava de falar."



Ilustração constante da obra "Alabardas" de José Saramago


Ilustração constante da obra "Alabardas" de José Saramago


Carta Universal de Deveres e Obrigações dos Seres Humanos

Carta Universal de Deveres e Obrigações dos Seres Humanos

(...) "Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reinvindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor." (...)
José Saramago
#ContinuarSaramago



Palavras expressas por Saramago aquando da cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Literatura coincidindo com o 50.° aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos


sexta-feira, 17 de abril de 2020

UnBTV Entrevista: Pilar del Río fala sobre o legado de José Saramago

Pode ser recuperado e visualizado aqui

Sinopse
"A jornalista e tradutora Pilar del Río fala do legado do escritor português José Saramago. Ela foi companheira dele e traduziu várias de suas obras para o espanhol."

Crónica de Pedro Ivo Carvalho (Evasões) "Lanzarote: o caminho das pedras e dos catos" (15/09/2019)

A presente crónica pode ser consultada e recuperada aqui
"Lanzarote: o caminho das pedras e dos catos"
Pedro Ivo Carvalho (Evasões)


"Não é necessária uma orquestra de cores para nos deixarmos enredar. Esta ilha vulcânica consegue ser monocórdica, mas não há, nessa leveza de caráter, qualquer assomo de vulgaridade ou enfado."

"Por mais ínfima que seja, há alguma possibilidade de nos deixarmos arrebatar pela aridez em estado puro? E por aridez entendam a mais completa secura de paisagem. Rocha, rocha, rocha. Sim, há. Pedras negras encavalitadas, formando um intrincado puzzle natural, tão desalinhadas na geometria que parecem ter vida própria. De certeza que foram parar lá sozinhas, só podem ter ido parar lá sozinhas, hospedadas que jazem numa cama definitiva e secular.

Os castanhos dão lugar aos cinzentos, há fases em que o dourado desponta, o vento que sopra de todos os quadrantes assobia de fininho ao nosso ouvido. O vento fala. “Não te distraias, não tentes segurar-me com as mãos”. O caminho das pedras é também o caminho dos catos. Pedras e catos. Catos e pedras. Numa sinfonia agreste sem palco. E sem bichos. Esperem. Minto.

Ali há, rezam as vozes autorizadas da ilha, uma réstia de vida. Um mosquito microscópico que só os apaixonados por mosquitos microscópicos distinguem nas gravuras dos livros de lombada generosa. Não há flores, não há lobos, nem gatos. Não há gaivotas. Mas há mar. Eu não vi o mosquito. Eu não consigo acreditar que ele se multiplique ali. Aquele vale bíblico não é cenário para romance.

Sigo. Garganta seca e olhos escancarados, sempre escancarados. Os vulcões forram a linha do horizonte e garantem a pequenez necessária à nossa condição de invasor. Qual é mesmo o nosso lugar? Verde escuro, castanho claro, negro cerrado. De uma ponta à outra do território duro, cavalgando a pacatez do alcatrão imaculado que rasga as bases das montanhas, podemos repousar, serenamente, sem trânsito, sem barulho. Catos e pedras. Se fecharmos os olhos, quase escutamos o bater de asas do mosquito microscópico. Já alguém o viu fora das lâminas do laboratório? Fujam da estrada, vem aí um carro.

Saramago entregou-se àquela ilha por alguma razão. 
Não quero acreditar que tenha sido apenas por uma, não saberia escolher apenas uma.

O norte. Juram-nos que o vinhedo é um espetáculo à parte. Que não nos deixará os olhos humedecidos como a imponência do adormecido Timanfaya, mas que a peculiaridade dos berços ovalizados amparados da ventania por pedras gastas confere à vinha um estatuto cosmético próximo do bonsai. Posso confirmar: filigrana licorosa, meus amigos.

Não é necessária uma orquestra de cores para nos deixarmos enredar. Lanzarote consegue ser monocórdica, mas não há, nessa leveza de caráter, qualquer assomo de vulgaridade ou enfado. As águas são cálidas, mesmo no oceano revolto, a areia brilha, mesmo quando escura. Saltitamos de estádio mental para estádio mental. A paz seria absoluta se não fossem as hordas de camionetas e de turistas italianos com a mesma projeção vocal de um vulcão zangado. Lemos o que havia para ler dele.

Saramago entregou-se àquela ilha por alguma razão. Não quero acreditar que tenha sido apenas por uma, não saberia escolher apenas uma. Lanzarote são pedras e catos, mas é, sobretudo, uma via-sacra que vai dar a um lugar melhor dentro de nós. Fica uma cicatriz enorme no corpo encolhido. Deem-nos luxúria, sinfonias, o Olimpo, até. Mas poucas imagens serão tão plenas na função de nos humanizar como a aspereza deste ancoradouro vulcânico. Catos e pedras. Pedras e catos. Flores."

Edição especial sobre a obra de José Saramago pela "Santa Barbara Portuguese Studies"

Foi publicado no Facebook na página da I Cátedra Internacional José Saramago noticia da futura publicação de um trabalho sobre a obra de José Saramago.
Será uma edição especial a sair nesta primavera pela Santa Barbara Portuguese Studies

Santa Barbara Portuguese Studies
Department of Spanish and Portuguese
University of California Santa Barbara
Santa Barbara, CA 93106-4150


Informação em detalhe e que vamos seguir com enorme atenção.

 O draft do primeiro artigo já pode ser consultado aqui

"A SUA JANGADA AINDA FLUTUA SOBRE AS ÁGUAS — HOMENAGEM A JOSÉ SARAMAGO DEZ ANOS APÓS A SUA MORTE"
editado por Burghard Baltrusch e Antía Monteagudo Alonso, e que reunirá os seguintes estudos:

A sua jangada ainda flutua sobre as águas. Revisitando José Saramago dez anos após a sua morte — com Sena e Sartre ao fundo
Burghard Baltrusch (Universidade de Vigo)

Deitado no chão. O romance Claraboia no contexto de uma pré-história literária de José Saramago
Luís Ricardo Duarte (Jornal de Letras, Artes e Ideias)

A língua do Poder segundo Saramago
Rosaria de Marco (Università degli Studi Suor Orsola Benincasa)

Los mil y un relatos politológicos de Saramago en su Balsa de piedra
Enrique José Varela Álvarez (Universidade de Vigo)

A Jangada de Pedra e a súa localización política
Celso Cancela (Universidade de Vigo)

A Jangada de Pedra como personagem: da consciência de si à construção de um modelo alternativo à sociedade capitalista
Ana Cláudia Henriques (Universidade de Aveiro)

Literatura, política e amor em Último Caderno de Lanzarote (O diário do Nobel)
Manuel Frias Martins (Universidade de Lisboa)

Caim, um herói da post-modernidade
José Vieira (Universidade de Coimbra)

A cidade en O Ano de 1993
Antía Monteagudo Alonso (Universidade de Vigo)

Monumentos e espaço ficcional: ficções e realidades em O Ano da Morte de Ricardo Reis
Mirielly Ferraça (Unicamp/Brasil)
Stanis David Lacowicz (UFPR/Brasil)

A construção do Eu em Todos os nomes: uma visão a partir da psicologia narrativa
Raquel Sabino (Universidade de Évora)

No início era a palavra: a força da narrativa saramaguiana na construção cinematográfica, a partir de O Homem Duplicado
Maria de Lourdes Pereira (Universitat de les Illes Balears)

La Passarola. Proyectos de Animación a partir de una representación y adaptación libre de los pasajes originales del texto de José Saramago, Memorial del convento
Sol Alonso Romera (coord.), Andrea Alonso Casado, Gels Caletrío, Sarah Espinosa, Yvonne M. López Gaus, Alba Velázquez García (Facultade de Belas Artes, Universidade de Vigo)

Presentación de proyecto. Resultados alcanzados en la realización de un cortometraje de animación, basado en el texto de José Saramago el Cuento de la Isla Desconocida (Conto da Ilha Desconhecida)
Sol Alonso Romera (Facultade de Belas Artes, Universidade de Vigo)

Planificación de la animación de Desquite 
José Chavete Rodríguez (Facultade de Belas Artes, Universidade de Vigo)



quinta-feira, 16 de abril de 2020

Entrevista de Clara Ferreira Alves a José Saramago - Programa Falatório RTP2 (6/11/1997)


A primeira parte do programa pode ser recuperada e visualizada aqui

"Primeira parte da entrevista conduzida por Clara Ferreira Alves ao escritor José Saramago, sobre a sua vida pessoal e a sua escrita, a propósito do novo romance "Todos Os Nomes"."



A segunda parte do programa pode ser recuperada e visualizada aqui

"Segunda parte da entrevista conduzida por Clara Ferreira Alves ao escritor José Saramago, sobre a sua vida pessoal e a sua escrita, a propósito do novo romance "Todos Os Nomes"."

Nome do Programa: José Saramago
Nome da série: Falatório
Locais: Lisboa
Personalidades: Clara Ferreira Alves, José Saramago
Temas: Artes e Cultura, Sociedade
Canal: RTP 2
Menções de responsabilidade: Autoria: Clara Ferreira Alves Produção: Maria Otília Ribeiro e Nuno Figueira Realização: Leonilde Rodrigues

Recuperação de três entrevistas a José Saramago no programa "Roda Viva" (1992, 1998 e 2003 - Brasil)

Programa Roda Viva 1992
Pode ser recuperado e visualizado, aqui

Sinopse
"O Roda Viva recebeu, em 1992, o escritor português contemporâneo e também conhecido por sua incansável militância política, José Saramago. Ele veio visitar o Brasil, onde abriu o Congresso Internacional promovido pela Universidade de São Paulo, a USP, sobre o tema “América 92: raízes e trajetórias” e discutiu, neste programa, alguns assuntos como literatura e política, dentre outros. 
Participaram da bancada de entrevistados Luiz Antonio Giron, repórter do jornal Folha de S. Paulo; Hamilton dos Santos, editor do suplemento Cultura, do jornal O Estado de S. Paulo; Edla Van Steen, escritora; Gilberto Mansur, jornalista e escritor; Roberto Pompeu de Toledo, editor-especial da revista Veja; Fábio Lucas, crítico e professor da Universidade de Brasília; Ivan Ângelo, editor-executivo do Jornal da Tarde; e Jayme Martins, jornalista da TV Cultura. 
O programa não contém edição e foi ao ar em 1992."

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Programa Roda Viva - 26 de Outubro de 1998
Pode ser recuperado e visualizado, aqui

Sinopse
"O escritor português contemporâneo mais famoso no Brasil e no mundo é reconhecido também pela incansável militância política."

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Programa Roda Viva - 23 de Outubro de 2003
Pode ser recuperado e visualizado, aqui

Sinopse
"Saramago reúne em sua obra o pensamento social e humanista que o caracteriza não só como um dos mais reconhecidos romancistas da língua portuguesa, mas também como um dos pensadores mais críticos da globalização, da lógica do mercado e do individualismo que marcam  homem no mundo atual"

Faleceu Luis Sepúlveda, escritor chileno aos 70 anos





Através do site da Porto Editora é possível ter uma pequena biografia do falecido autor.
Pode ser consultada aqui

"BIOGRAFIA
Luis Sepúlveda nasceu em Ovalle, no Chile, a 4 de outubro de 1949 e morreu a 16 de abril de 2020 em Oviedo, Espanha. O seu pai era militante do Partido Comunista e proprietário de um restaurante. A mãe era enfermeira e tinha origens mapuche. Cresceu no bairro San Miguel de Santiago e estudou no Instituto Nacional, onde começou a escrever por influência de uma professora de História.
Aos 15 anos ingressou na Juventude Comunista do Chile, da qual foi expulso em 1968. Depois disso, militou no Exército de Libertação Nacional do Partido Socialista. Após os estudos secundários, ingressou na Escola de Teatro da Universidade de Chile, da qual chegou a ser diretor. Anos mais tarde, licenciou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha.
Da sua vasta obra – toda ela traduzida em Portugal –, destacam-se os romances O Velho que Lia Romances de Amor e História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar. Mas todos os seus livros conquistaram em todo o mundo a admiração de milhões de leitores.
Em 2016, recebeu o Prémio Eduardo Lourenço – que visa galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cooperação e da cultura ibérica –, uma honra de definiu como «uma emoção muito especial».
Para além de romancista, foi realizador, roteirista, jornalista e ativista político. Em 1970 venceu o Prémio Casa das Américas pelo seu primeiro livro, Crónicas de Pedro Nadie, e também uma bolsa de estudo de cinco anos na Universidade Lomonosov de Moscovo. No entanto, só ficaria cinco meses na capital soviética, uma vez que foi expulso da universidade por “atentado à moral proletária”. Membro ativo da Unidade Popular chilena nos anos 70, teve de abandonar o país após o golpe militar de Augusto Pinochet. Viajou e trabalhou no Brasil, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Peru. Viveu no Equador entre os índios Shuar, participando numa missão de estudo da UNESCO. Em 1979 alistou-se nas fileiras sandinistas, na Brigada Internacional Simon Bolívar, que lutava contra a ditadura de Anastácio Somoza. Depois da vitória da revolução sandinista, trabalhou como repórter.
Em 1982 rumou a Hamburgo, movido pela sua paixão pela literatura alemã. Nos 14 anos em que lá viveu, alinhou no movimento ecologista e, enquanto correspondente da Greenpeace, atravessou os mares do mundo, entre 1983 e 1988. Em 1997, instalou-se em Gijón, em Espanha, na companhia da mulher, a poetisa Carmen Yáñez. Nesta cidade fundou e dirigiu o Salão do Livro Ibero-americano, destinado a promover o encontro de escritores, editores e livreiros latino-americanos com os seus homólogos europeus.
Luís Sepúlveda vendeu mais de 18 milhões de exemplares em todo o mundo e as suas obras estão traduzidas em mais de 60 idiomas."


A Fundação José Saramago através das suas várias plataformas de comunicação, divulgou o fax de José Saramago dirigido a Luis Sepúlveda, então à data tratando de assuntos relacionados com ataques que era alvo. Ficou a mensagem de solidariedade. 



quarta-feira, 15 de abril de 2020

"O despertar da palavra" por Horácio Costa na revista Cult (Brasil 14.11.1998)

O presente trabalho pode ser recuperado e consultado aqui
em https://revistacult.uol.com.br/home/o-despertar-da-palavra/




A entrevista que segue teve lugar em fevereiro passado, em Madri. O Instituto do México, na Espanha, organizou, no primeiro trimestre deste ano, um ciclo de conferências: Portugal desde México. A diretora do Instituto, Luz del Amo, que tivera a idéia de organizar o ciclo algo inédito, ou pelo menos pouco usual no mundo hispânico, onde via de regra Portugal, ainda mais do que o Brasil, sofre de uma espécie singular de obnubilação programada , tinha-me pedido que convidasse Saramago; ele aceitou, sem cobrar cachê. Pediu para ficar no mesmo hotel de sempre (o Suécia), a trezentos metros do Prado. Não é o primeiro favor que me faz e espero que não seja o último. Já anteriormente me brindara com muitas informações e respondera às muitíssimas questões que lhe apresentei, enquanto escrevia minha tese para Yale, José Saramago, o período formativo. A presente entrevista, portanto, não é, latu sensu, a primeira que me deu.

Há catorze anos, quando completei trinta, recebi de presente de minha amiga e ex-professora Renina Katz, uma leitora inveterada, o romance Memorial do convento. O entusiasmo com o qual Renina me recomendou a leitura, uma vez feita e já de volta aos Estados Unidos, transferi para Emir Rodríguez-Monegal. Naqueles meses, eu andava atrás de um tema de tese; numa tarde do verão de 1985, a caminho do teatro em Hartford, pude conversar longamente sobre Saramago com Emir, que recentemente estivera com ele durante um congresso de escritores, e que seria o meu orientador, se tudo desse certo (não deu: a Monegal sobravam poucos meses de vida).

Por meu lado, perguntava-lhe como era o homem em pessoa; pelo seu, e muito menos afoitamente, Emir me interrogava sobre a radicação de Saramago na literatura portuguesa contemporânea. Não é necessário dizer que ele soube responder às minhas perguntas, traçando-me o perfil de um cavalheiro lusitano de humor mordente, de viés irônico, que Emir comparava ao de Borges, a quem tinha conhecido tão bem; entretanto, à medida que o crítico uruguaio aumentava em agudeza as suas questões, crescentemente eu me dava conta do pouquíssimo que sabia, e que de fato era então conhecido, sobre o autor português. Eu já me dedicara, em Yale, a pesquisar sobre esse escritor que me chegara às mãos sem nenhum antecedente; ainda que a Biblioteca Sterling seja uma das maiores e melhores do mundo, eu me decepcionara com o pouco que nela havia sobre Saramago.

O que tínhamos em mãos era apenas o Memorial. Portanto, qualquer consideração crítica que podíamos fazer se limitava ao tipo de escritura que Saramago nele adotava. Diante dela, e assumindo como base o realismo maravilhoso em versão hispano-americana, concluímos que a qualidade do imaginário de Saramago dele diferia em um ponto básico: estava prenhe de lirismo e escapava dos padrões de alegorização mais óbvios e tão freqüentes neste. Havia pontos evidentes de contato para começar, o fascínio pelo barroco, que na narração reverberava temática e linguisticamente , mas o tônus geral do relato não apontava para as terras americanas.

Anos mais tarde, em Portugal, pesquisando sobre o Memorial, terminei por assegurar-me disto: se muito da postura de um Carpentier ou de um García Márquez se fazia notar (principalmente, no nível do anedótico, na pesquisa de fontes da época e por aí), a base era diferente. A velha cultura portuguesa, às vezes excepcional quando representada por um Fernão Lopes, um Camões ou um Vieira , mas frequentemente marginal à Europa dos grandes debates, ainda que muitas vezes ironizada pelo escritor, se impunha com uma clareza meridiana. Aí estava, e está, o quid de Saramago. Não só de estilemas individualizadores vive um grande escritor: nunca é demais lembrá-lo, ele ou ela via de regra (há exceções) pisam o terreno conhecido que lhe dá a sua própria cultura, a sua própria língua. Naquela tarde, disse a Emir que eu pesquisaria mais sobre o romancista e que, em função do que encontrasse, talvez escolhesse a sua obra como objeto da minha tese de doutorado. À época, muito pouca gente entendeu que eu escolhesse Saramago, então um escritor com alguma bagagem (o melhor viria depois), e menos ainda que me dedicasse a sua obra menor. Optei por estudar o período de formação do escritor por duas razões: primeiro, por jamais ter ele recebido atenção crítica (uma importante estudiosa italiana da literatura portuguesa não há muito me dizia que Saramago tinha nascido feito, assim como se um Gulliver qualquer); segundo, porque estudar um período não canonizável de um escritor em vias de canonização (agora já plena, depois do Nobel) pode colocar uma série de questões críticas de interesse, entre elas a de discutir como o cânone funciona para canonizar os seus eleitos, como a crítica procede para eleger os seus objetos de estudo.

Se Saramago, ao longo de suas décadas de experimentação ou deriva entre vários gêneros literários, apresentou uma notável distância, ou mesmo, defasagem, perante as estéticas dominantes à época no contexto português (apesar da dicção neorealista fundamental em sua produção política, afinada com uma vertente da poesia portuguesa dos anos 40 e 50 porém usada por ele vinte anos depois!), um discurso crítico que procurasse acercar essa obra de exceção (frente aos modismos, às oposições quase sempre conjunturais que caracterizam o processo literário) teria que, de alguma maneira, sê-lo também, abandonando as interpretações mais circunstanciais de análise. Ir até uma obra que se divide entre fraca e forte, ignorada e estudada (e in e out , boa e ruim), foi o que eu tentei, centrando sempre as minhas interpretações no sinuoso processo de trabalho de José Saramago, antes que em seu melhor resultado, aparentemente para sempre canonizado.

A entrevista que segue constantemente refere-se a essa injunção e a essa preferência crítica minha. Pensei que valesse a pena alertar o leitor sobre a razão das perguntas que nela fiz. Agora, definir o que possam as respostas a elas esclarecê-lo sobre a obra e o indivíduo José Saramago é coisa sua.

Horácio Costa – Eu queria que você dissesse o que ficou da experiência dos gêneros que você praticou ao longo de várias décadas crônica, poesia, ensaio, teatro antes da publicação do Manual de pintura e caligrafia. Por que você acha que demorou vinte anos para escrever um segundo romance? Há um primeiro, uma tentativa pouco madura nos anos 40, mas a sua primeira obra em prosa de ficção sólida é esse Manual.

José Saramago- Em primeiro lugar, quando se pergunta o que ficou de uma obra, que supostamente pertence a um tempo passado, pressupõe-se uma dúvida, se alguma coisa terá ficado. Porque, se não existisse essa dúvida, então a pergunta não teria sentido. Quando se começa a escrever muito jovem, corre-se o risco e, afinal, isso me aconteceu, porque aos 25 anos publiquei um romance. Romance que ficou por aí, que foi reeditado apenas em 1997 porque o editor achou que se o romance fazia 50 anos, desde a primeira publicação, tinha que ser novamente publicado e então temos uma edição nova de um romance que se chama, perdoem, Terra do pecado. Eu não tenho culpa de o romance ter esse título, a culpa é do editor. O romance se chamava A viúva. Um jovem de 25 anos, que era o que eu tinha, não sabia muito de pecados, e menos de viúvas… Mas eu percebi que não tinha tanta coisa para dizer, nada importante. E me calei, me calei por vinte anos praticamente.

Isso não é verdade, porque escrevi um outro romance que se chama Clarabóia, que permaneceu inédito e, esse sim, permanecerá inédito. Não o destruí porque não devo destruir as coisas que faço; se não posso destruir todas, por que vou destruir algumas? Se eu pudesse apagar todas as coisas ruins e agora não estou falando do livro, estou falando de coisas ruins que a gente faz na vida , eu as apagaria. Mas como Terra do pecado, apesar de tudo, não é a pior coisa que eu fiz na vida, então que fique aí; e Clarabóia ficará, mas com a condição de não ser publicado enquanto eu viver.

Até 1966, quando eu tinha 44 anos, não escrevi nada. Salvo no período imediatamente anterior a 1966, que foi quando escrevi um livro de poesia chamado Os poemas possíveis. E por que eu o escrevi? Bom, a resposta é sempre a mesma, ou quase sempre: porque me apaixonei. E eu já havia feito uns quantos sonetos e coisas assim no tempo que fazíamos sonetos, aos dezoito anos. Acho que os jovens de hoje já não sabem o que é escrever sonetos e as meninas não têm a felicidade de receber um soneto dos garotos. Isso acabou, que pena! Bom, então eu me apaixonei nessa época e daí saiu o livro. Confesso que, quatro anos depois, me apaixonei de novo e saiu outro livro de poemas que se chama. Provavelmente alegria. E então acabou-se a história de publicar pelo fato de me apaixonar [risos].

A partir de 1966, por circunstâncias da vida, me encontrei mais próximo do mundo literário porque trabalhava numa editora desde os anos 50 e durante quase 15 anos. Eu tive uma vida que não tinha nada a ver com a literatura. Eu fui várias coisas na vida: trabalhei numa oficina mecânica, fui desenhista, funcionário da saúde pública, depois não sei o quê, depois editor, e era assim. Então, eu não me preparei para ser escritor. Sou escritor por um acaso. E que acaso é esse? É que chegou um momento em que eu, além de me apaixonar e por isso pôr sobre a mesa livros de poesia, comecei a colaborar em jornais, escrevendo crônicas. De 1966 até 1977, houve onze anos de publicação: publiquei três livros de poesia e o terceiro não tem nada a ver com minhas paixões, crônicas, ensaios políticos, que no fundo eram editoriais de jornal, de um jornal que já não existe, chamado Diário de Notícias, e acho que tudo começa aí. Quando, em novembro de 1975, ocorreu a contra-revolução, o que se chamava o processo contra-revolucionário e talvez algumas pessoas não estejam de acordo com a qualificação ou com a classificação , eu fiquei na rua, sem emprego, sem salário, sem trabalho e sem possibilidade de encontrar outro facilmente, porque o jornal estava com a revolução.

Aí eu tomei a decisão definitiva da minha vida, que era a de não procurar trabalho, e me dizia: você tem sete ou oito livros escritos, que são dignos, sérios, honestos, mas por aí você não vai chegar a lugar nenhum. Se você está pensando na história da literatura, então, resigne-se a que digam (se disserem) que o senhor fulano nasceu nessa data, morreu numa outra, publicou alguns livros e ponto. Uma linha, duas linhas e nada mais. Não que eu aspirasse a um capítulo completo da história da literatura, não é isso. A decisão de não procurar trabalho era enfrentar essa idéia de que, talvez, eu seria um escritor, mas faltava uma prova, porque aqueles livros não eram na minha opinião suficientes para tal. Isso foi o que depois levou a toda essa série de livros, romances, obras de teatro, diários que caracterizam esses últimos 20 anos. Isso é o que me leva a dizer que eu sou um jovem escritor, que eu sou um velho escritor da nova geração porque a verdade é que eu estou escrevendo obras mais sólidas não há cinqüenta, mas há vinte anos; portanto, supondo que se começa, talvez, a escrever e publicar aos 20, 23 anos, então, agora, literariamente, eu não tenho mais do que 45 anos. Sou um menino… [risos]

O que ficou do que ficou para trás? Eu diria que ficou tudo. E ficou tudo em que sentido? Eu muitas vezes digo que se alguém quiser entender bem o que eu estou dizendo nos romances que estou escrevendo é preciso ir às crônicas que escrevi nos jornais e que estão em dois livros: Deste mundo e do outro e A bagagem do viajante. Quase todos os temas que estão agora nos romances, certos pontos de vista, visão de mundo, obsessões e preocupações de ordem não apenas literária, preocupações de ordem política, de ordem civil, tudo isso se encontra nesses pequenos textos publicados em jornais, e quem se interesse pelo que eu faço além dos romances que têm maior reputação, dos quais se fala, que saem na crítica, que estão nas livrarias e tudo isso tem que ir a esses pequenos textos porque eu mesmo, quando por algum motivo tenho que voltar a esses textos, me reencontro.

Nessas crônicas há muito de ficção, e sobretudo há o trabalho sobre a memória, a memória da infância, da adolescência, a memória dos adultos, dos avós, das coisas vistas e esse, se eu chegar a escrevê-lo, será o conteúdo de um livro que já tem título, mas que ainda não está escrito e que se chamará O livro das tentações. Já estou me antecipando, mas uma coisa chama a outra. É uma autobiografia minha. Eu sou tão vaidoso que inclusive vou escrever a minha biografia. Mas é uma autobiografia um pouco estranha, porque termina aos catorze anos de idade. O que eu quero fazer é isso, recordar o menino que eu fui. Tentar saber quem era esse menino. Porque a verdade é que nós pensamos que toda a nossa vida está aí para que nos tornemos adultos. E, quando somos adultos, nos comportamos como se olhássemos para nós como algo que saiu do estado de crisálida, imaginando que a infância e a primeira adolescência é a crisálida, e que depois da crisálida saiu o inseto adulto com todo o seu esplendor, as suas cores, com toda a sua beleza. Nos casos em que têm esplendor e que são belos, claro; há insetos que deveriam ter ficado na crisálida e não sair.

Eu não penso assim. Para dar-lhes uma ideia do que eu penso nesse sentido: não sei se o meu leitor percebeu que eu ponho sempre epígrafes; a epígrafe de Todos os nomes, para falar do último romance publicado, é Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens, é uma citação de um livro chamado Livro das evidências, que não existe, como em outro romance, História do cerco de Lisboa, há uma outra epígrafe que foi tirada do Livro dos conselhos, que também não existe. E isso é um pouco borgeano, e se isso continuar, não terei mais remédio do que escrever o Livro das evidências e o Livro dos conselhos. E, então, a epígrafe que terá o Livro das tentações e com isso, acho que terei explicado tudo o que tentei explicar até agora é a seguinte: Deixa-te levar pelo menino que foste. Porque, na verdade, de nada eu gostaria mais ou de poucas coisas eu gostaria tanto do que poder passear pela rua, não levando pela mão o menino que fui, mas sendo levado pela mão desse menino. Se eu pudesse recuperá-lo, tê-lo agora mesmo, quanto eu gostaria. Vocês podem pensar: mas que ideia estranha essa, você é ele e ele é você. Não, eu sou ele, mas ele não sou eu. Um deles não conhece o outro; e o fato de que um deles não conheça o outro me perturba. E por isso eu digo: deixa-te levar pelo menino que foste. Talvez o menino, supondo que os meninos não são maus alguns são péssimos, claro , fosse capaz de, na hora que vamos fazer uma coisa errada, de puxar pela nossa roupa e dizer: não faça isso.

Há uma continuidade de pensamento e inclusive uma continuidade de sensibilidade no que estou fazendo agora e que vêm dos textos mais antigos. Como os textos não nascem do nada, nascem de alguém que está vivendo, mesmo que não esteja escrevendo, então tudo é uma relação que vai pelo interior da vida e que une tudo a tudo. O que eu posso dizer, claro, é que há algumas coisas que fiz antes e que, se eu as fizesse agora, tentaria fazê-las melhor. Mas não se trata aqui de mais qualidade literária ou de menos qualidade literária, trata-se do que se está dizendo aqui.

A forma como se desenvolve sua carreira é bastante atípica, especialmente em relação ao que cada vez mais acontece no mundo literário, afetado por uma série de problemas externos, a questão do mercado, os prêmios literários etc… Num texto crítico dos anos 60, parte das suas colaborações para a Seara Nova, você escreveu: A literatura não é uma carreira. Aquele momento era especialmente significativo, porque então você era conhecido em Portugal como poeta. Você estava publicando o seu segundo livro de poesia, ou prestes a publicá-lo, e entrava na literatura ou na vida cultural lisboeta por meio da atividade poética. E você começa a escrever essas notas críticas numa publicação importante da literatura portuguesa contemporânea, a Seara Nova. Então, eu gostaria de que você desenvolvesse essa ideia de autor, naquele momento biologicamente já não muito jovem, nos anos 60, que tem consciência de que a literatura não é uma carreira; e como você vê isso agora, não só com relação ao mundo contemporâneo, mas também à luz da sua produção posterior.

Quando me convidaram para fazer crítica nessa revista, eu só havia publicado esse livro de poesia chamado Os poemas possíveis. Inclusive impus uma condição, a de que não faria crítica de livros de poesia. Porque me parecia que isso não teria muito sentido para mim, um jovem poeta, com apenas um livro, e que não era Rimbaud nem Fernando Pessoa. Pode-se perguntar: você não quis fazer crítica sobre livro de poesia, mas estava disposto a fazer sobre romances? Sim, do ponto de vista do leitor, como se eu fosse um leitor, já que no fundo o crítico é um leitor. No entanto, é um leitor que tem o direito de publicar a sua opinião. Essa é, suponho, a diferença mais visível que há entre um e outro.

E é verdade que numa dessas críticas eu escrevi que a literatura não é uma carreira. Depois de 30 anos, e com tudo o que aconteceu na minha vida, parece que há uma contradição entre a minha vida e essa afirmação, porque eu vivo do que escrevo. Mas não tenho os tipos de obrigações de um trabalho, não tenho ações, não tenho bens, não tenho nada senão o que pode ser posto sobre a mesa, o que escrevo. Eu nunca me lancei a isso que chamamos uma carreira de escritor. Entendo que uma pessoa se lance a uma carreira de advogado, médico, engenheiro ou algo parecido porque isso significa que se preparou para exercer uma atividade profissional e, portanto, está nisso e vai trabalhar nisso. Os médicos precisam de doentes, mas estão certos de que doentes sempre existirão, não? E, portanto, estão certos de que podem abrir o seu consultório para recebê-los. Esses, sim, podem falar de uma carreira.

De repente, amanhã pode ser que eu não tenha nenhuma ideia para um livro e se isso acontecer eu deixarei de escrever. E o fato de que eu esteja vivendo da literatura, porque é verdade, não significa que eu não escreva nada de que eu necessite escrever como homem. Isto é, eu não posso viver sendo duas pessoas em uma a pessoa corrente e normal, que, afinal, sou, e uma entidade, um pouco estranha, que se chama escritor. Esses dois não vivem lado a lado, são um apenas, estão fundidos um no outro. E se o homem não tem nada para dizer como homem, também não terá nada para dizer como escritor. Se isso acontecer, e eu já disse isso, me calarei. E poderia ter acontecido de eu me calar depois do Memorial do convento, do Ano da morte de Ricardo Reis, da História do cerco de Lisboa, ou do Evangelho segundo Jesus Cristo. Poderia não ter tido mais nenhuma ideia, e fim. E é verdade que, cada vez que eu termino um romance, não tenho nenhuma outra ideia e fico esperando para ver o que acontece. Pode levar um mês, dois, três, seis meses, até me ocorrer uma ideia. Eu acho que os que me leem perceberam que os meus livros não se repetem. Eles percebem que o autor é este pela forma de narrar, pelas preocupações que expressa, mas cada livro contém alguma coisa que aí se acaba. E isso tudo é o contrário do que se necessitaria para uma carreira. Para uma carreira, o conveniente seria explorar os filões encontrados para que ela pudesse se desenvolver, não? Mas eu fico assim, sem enredo, esperando para ver o que acontece.

Você disse que não teve uma educação formal em literatura, que foi um leitor. Mas eu lhe peço que comente a importância que tiveram a atividade crítica que você exerceu e a atividade de tradutor nesse período de formação, de autoaprendizagem.

É preciso dizer algo que ainda não foi dito e que deve ser considerado. Se eu, aos 20 e poucos anos, escrevi um romance, foi porque alguma coisa eu tinha lido. E tinha lido muitíssimo. Onde? Nas bibliotecas públicas. Entre 16 e 22 anos, eu fui um leitor noturno, porque tinha que trabalhar de dia, ia a uma biblioteca pública de uma cidade pequena e lia tudo o que encontrava. Às vezes, não entendia nada, ou quase nada, de alguns livros que lia; não tinha ninguém que me dissesse: esse agora não convém, é melhor que você leia esse outro. Mas, de qualquer modo, com todos disparates, erros e incompreensões, creio que pude ler uma gama bastante ampla de autores. Eu diria que Terra do pecado, por um lado, funcionou como uma sedimentação de leituras; pode-se dizer que não há nada de original ali, mas, se não somos Rimbaud, o que entendemos por original aos 20 e poucos anos?

Você pergunta se o fato de fazer traduções influiu em alguma coisa. Não, em nada, nada, nada… É muito diferente sentar-se para traduzir uma obra pelo desejo de traduzi-la, por vontade própria e, então, desfrutar do trabalho de tradução, buscando as funções mais adequadas e tudo isso… Mas eu não traduzi por gosto, por prazer; eu traduzi para ganhar a vida e traduzi de tudo: livros de política, de economia, de arte, romances, coisas tontas como uns livros de um senhor chamado Jivkov, que era búlgaro, secretário-geral do Partido Comunista da Bulgária e ao mesmo tempo presidente, e eu tive que traduzir coisas dessas. Com isso não aprendi nada. Mas claro que há outro tipo de aprendizagem. Quando tive que traduzir Bonnard, aprendi muito. Mas não aprendi a escrever e acho que quem tem que traduzir nas mesmas condições e circunstâncias que eu corre o risco de ter a sua escrita prejudicada pela variedade de estilos, de modos de narrar dos diferentes autores que tem que traduzir.

Então, posso dizer que não aprendi nada. Agora, acho que aprendi a escrever porque li muito. Sempre li muito, desde menino, desde adolescente, ia à biblioteca pública para ler, para ler e nada mais, e no dia seguinte tinha que me levantar cedíssimo para ir à oficina onde estava trabalhando. Não estou idealizando a minha vida, não estou fazendo romantismo barato e falso, estou falando de fatos e nada mais; sem cair na tentação de exagerar para uma vida extraordinária, senão o contrário. Eu comecei por esse romance, depois a poesia, depois a crônica, depois fiz um pouco de teatro. Mas o teatro não foi por uma iniciativa minha. Eu tenho quatro obras de teatro, todas elas foram representadas, e aparentemente eu poderia dizer: sou dramaturgo. Não, não sou, eu não me vejo como dramaturgo. Romancista, sim; mas depois de todas essas experiências e de tudo isso. Mas talvez o romancista que sou deva algo a uma circunstância que a que ver com uma obra da qual não se fala muito, e é uma pena que não se fale muito dela, que é esse romance que publiquei em 1980 e que se chama Levantado do chão. Em 1975, como disse, fiquei sem trabalho. Em 1976, eu estava no Alentejo, no sul de Portugal. Eu venho de uma família de camponeses pobres, sem terra, do norte de Lisboa, a uns 100 km, mais precisamente do nordeste; e, nessas alturas, quando eu estava com essas dúvida o que vou fazer da minha vida? escrevo, não escrevo? como? o quê? para quem? e com que meios? , veio-me a ideia de escrever algo sobre a minha gente avós, pais , que viveu no campo nas condições que os mais velhos aqui podem imaginar, se viveram no campo há 40, 50, 60, 70, 100 anos: saberão o que é isso. E eu soube, não muito profundamente, mas, de qualquer forma, soube. O estranho é que eu deveria ir diretamente aos meus lugares, à minha cidade, e ficar ali, mas, talvez porque eu conhecesse muito bem tudo isso, não queria escrever sobre isso. Então, fui ao Alentejo em 1976 e fiquei lá dois meses, falando com as pessoas, indo ao campo onde trabalhavam, comendo com eles, dormindo com eles. E voltei, depois, por mais algumas semanas. Portanto, juntei um quantidade de idéias, informações, histórias e tudo isso. E esse livro foi escrito em 1979 e publicado em 1980. Quer dizer, foram precisos três anos para que eu pudesse escrever esse romance.

Na verdade, durante esse tempo escrevi um livro de relatos curtos, Objeto quase, e publiquei o Manual de pintura e caligrafia. Portanto, estive fazendo algumas coisas. Mas não estava fazendo o que tinha de fazer agora sei disso, mas naquela época eu não sabia. Porque eu não sabia de uma coisa, muito mais importante do que às vezes se imagina: eu tinha uma história para contar, a história dessa gente, de três gerações de uma família de camponeses do Alentejo, com tudo: a fome, o desemprego, o latifúndio, a polícia, a igreja, tudo. Mas me faltava alguma coisa, me faltava saber como contar isso. Então eu descobri que o como tem tanta importância quanto o quê. Não se pode contar como se não há o que contar, mas pode acontecer de você ter o que e ficar paralisado porque não tem o como. O tema que eu tinha estava claríssimo, era um romance neo-realista, bastavam camponeses, fome, desemprego, luta, tudo isso. E modelos do romance neo-realista português, nós os temos, e grandes romances. Portanto, o molde eu já tinha e só precisava colocar nele a minha própria matéria e, então, já teria o romance. Mas, não, algo dentro de mim dizia: não, não e não; enquanto você não encontrar a sua própria forma, não poderá escrever. Claro que isso eu estou dizendo agora, com certeza vocês não estarão imaginando que naquela época eu conversasse dessa forma comigo mesmo: não, eu não conversava. Mas eu tinha uma barreira que me impedia de ir adiante. Quando eu voltava ao Alentejo e encontrava os amigos que eu tinha feito lá, gente de uma qualidade humana impressionante, eles me perguntavam: e o romance, quando você vai publicá-lo? Eu dizia: é que estou ocupado agora com outros assuntos e tal. Não, na verdade eu estava em pânico [risos]. Em pânico porque eu não tinha o como. Até que, em desespero de causa, pensei: isso não pode ficar assim e tenho de começar a escrever esse romance e comecei a escrevê-lo como um romance normalzinho. E quando eu digo romance normalzinho, e há grandíssimos romances normaizinhos, não estou dizendo nada contra, ao contrário: surpreende-me que numa forma quase canônica possam ser escritos romances magníficos, sem rupturas… Claro que há outros romances magníficos que o são por vários motivos, entre eles porque romperam com convenções e com tudo isso. E comecei a escrever com cada coisa no seu lugar: roteiro e tal… Mas eu não estava gostando nada do que estava fazendo.

Então, o que aconteceu? Na altura da página 24, 25, estava indo bem e por isso eu não estava gostando. E sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores hoje sabem que eu escrevo: sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais, de todos os sinais que vamos pondo aí. O que aconteceu? Não sei explicar. Ou, então, tenho uma explicação: se eu estivesse escrevendo um romance urbano, um romance com um tema qualquer de Lisboa, com personagens de Lisboa, isso não aconteceria. E tenho certeza de que hoje estaria escrevendo esses romances como todo mundo talvez bons, talvez não tão bons, mas estaria acatando respeitosamente toda a convenção do que se chama escritura. Mas alguma coisa aconteceu aí: eu havia estado com essa gente, ouvindo, escutando-os, estavam contando-me as suas vidas, o que tinha acontecido com eles. Então, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles. A minha maneira tão peculiar de narrar, se tiver uma raiz, penso que está aqui. Não estou certo de que seja a única, mas com certeza, essa conta. Quando esse romance foi publicado em Portugal, houve um reboliço porque as pessoas não entendiam nada, inclusive um amigo meu me chamou para dizer: olha, eu sou seu amigo, mas a verdade é que leio três páginas e me perco, eu não entendo o que você diz. E eu disse: você tem em casa um corredor comprido, não? Pois então, acenda a luz à noite e comece a andar de um lado para o outro no corredor, lendo em voz alta. Se você ler em voz alta, vai ver o que acontece. Da mesma forma que, quando nos comunicamos oralmente, não necessitamos nem de travessões, nem de pontinhos, nem nada do que parece necessário usar quando escrevemos, pois então, você, como leitor, colocará aí, não o que falta, porque não falta nada… A palavra