Em, "A Estátua e a Pedra"
Fundação José Saramago
Fernando Gómez Aguilera, ensaio complementar à obra, "o autor diante do reflexo da sua obra"
Páginas 57 a 59
(...) "A aparição de "Caim" em 2009 significou o regresso do autor ao tema da religião, encarado novamente de forma frontal; embora, nesta ocasião, situando-se no Antigo Testamento para ler literalmente e reescrever uma dezena de episódios extraídos do Génesis, do Êxodo e do Livro de Job, cuja característica comum é a violência e o absurdo lógico em que se sustentam. Confronta-se, pois. com um dos últimos grandes relatos vigentes esgrimindo o seu ateísmo anti-religioso, que o faz considerar a Bíblia um «manual de maus costumes», «um catálogo de crueldade». No final dos seus dias, regressa à literatura apetrechado do seu voltaireanismo mais radical, para combater a superstição e a irracionalidade do dogma e das crenças, que, na sua opinião, escravizam o homem, porque, no marco da fé, a felicidade repousa sobre a sua missão. Sai em defesa do livre arbítrio, do direito à liberdade individual e, diante do mito, esgrime lucidez e a razão como valores universais que protegem a dignidade humana, numa leitura alternativa, num dialogo crítico que recorre também ao riso irreverente, à sátira, para censurar um deus, fruto da criatividade humana, que, aos seus olhos, se comportava com modos arbitrários e soberbos, opressivos e cruéis. Saramago aceita e emprega a literatura como possibilidade de subversão do poder, como instrumento de pensamento e de rebeldia, de combate intelectual, apegado ao humanismo libertador que sempre orientou a sua visão do mundo." (...)
(...) "Caim conclui com uma «negação total» que, em boa medida, sintetiza a visão estratégica e desencantada do mundo que o acompanhou até ao final dos seus dias: «A terra está completamente corrompida e cheia de violências, só encontro nela corrupção, pois todos os seus habitantes seguiram caminhos errados, a maldade dos homens é grande, todos os seus pensamentos e desejos pendem sempre e unicamente para o mal, arrependo-me de ter criado o homem.» Inverter o sinal desse destino só podia estar nas nossas mãos. Daí que, para Saramago, fosse imprescindível uma revolução ética que, reivindicando o valor supremo da bondade, reconhecesse como única prioridade o ser humano."
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