Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

"Caim" ou a derradeira tentativa de humanizar a bondade



Em, "A Estátua e a Pedra"
Fundação José Saramago
Fernando Gómez Aguilera, ensaio complementar à obra, "o autor diante do reflexo da sua obra"
Páginas 57 a 59


(...) "A aparição de "Caim" em 2009 significou o regresso do autor ao tema da religião, encarado novamente de forma frontal; embora, nesta ocasião, situando-se no Antigo Testamento para ler literalmente e reescrever uma dezena de episódios extraídos do Génesis, do Êxodo e do Livro de Job, cuja característica comum é a violência e o absurdo lógico em que se sustentam. Confronta-se, pois. com um dos últimos grandes relatos vigentes esgrimindo o seu ateísmo anti-religioso, que o faz considerar a Bíblia um «manual de maus costumes», «um catálogo de crueldade». No final dos seus dias, regressa à literatura apetrechado do seu voltaireanismo mais radical, para combater a superstição e a irracionalidade do dogma e das crenças, que, na sua opinião, escravizam o homem, porque, no marco da fé, a felicidade repousa sobre a sua missão. Sai em defesa do livre arbítrio, do direito à liberdade individual e, diante do mito, esgrime lucidez e a razão como valores universais que protegem a dignidade humana, numa leitura alternativa, num dialogo crítico que recorre também ao riso irreverente, à sátira, para censurar um deus, fruto da criatividade humana, que, aos seus olhos, se comportava com modos arbitrários e soberbos, opressivos e cruéis. Saramago aceita e emprega a literatura como possibilidade de subversão do poder, como instrumento de pensamento e de rebeldia, de combate intelectual, apegado ao humanismo libertador que sempre orientou a sua visão do mundo." (...)



(...) "Caim conclui com uma «negação total» que, em boa medida, sintetiza a visão estratégica e desencantada do mundo que o acompanhou até ao final dos seus dias: «A terra está completamente corrompida e cheia de violências, só encontro nela corrupção, pois todos os seus habitantes seguiram caminhos errados, a maldade dos homens é grande, todos os seus pensamentos e desejos pendem sempre e unicamente para o mal, arrependo-me de ter criado o homem.» Inverter o sinal desse destino só podia estar nas nossas mãos. Daí que, para Saramago, fosse imprescindível uma revolução ética que, reivindicando o valor supremo da bondade, reconhecesse como  única prioridade o ser humano."

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