Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Entrevista de Adelino Gomes a Carlos Fuentes - «Divara é uma ópera estremecedora» (Público, 28/07/2001)

Adelino Gomes, entrevista Carlos Fuentes - "Público", publicado em 28 de Julho de 2001
Link, em http://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/divara-e-uma-opera-estremecedora-160260

Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Belisario Betancourt, José Saramago 
e Eloy Martínez (foto Victor Serra, 2004)


"Divara é uma ópera estremecedora"

"É diplomata, professor em Harvard e escritor consagrado (prémios Cervantes, Príncipe das Astúrias, Picasso, entre muitos outros). Acaba de entregar à editora francesa Grasset o original de um novo livro, onde fala de tudo - da política, da religião, do sexo, da família, da globalização. Carlos Fuentes, 72 anos, é também um apaixonado de ópera. De férias por uma semana em Portugal, onde veio pela primeira vez nos anos 50, o "Público" descobriu-o esta segunda-feira, no Teatro Luís de Camões, em Lisboa, no espectáculo de encerramento da temporada lírica do Teatro Nacional de São Carlos. Ao lado de José Saramago, o escritor mexicano assistiu, entusiasmado, à última representação da ópera "Divara - Água e Sangue", de Azio Corghi, baseada na peça "In Nomine Dei", que o Nobel português escreveu a pedido do Teatro de Münster, em 1993.

Carlos Fuentes, refere:
«É emocionante, estremecedora. Não faz concessão nenhuma. Nem lírica, nem romântica. Há uma coincidência total, uma fraternidade bárbara entre o tema, a música, a interpretação. Não se separam em nenhum momento: a representação não se separa do tema, a música não se separa do tema, e este não se separa da música, de modo que fazem uma unidade perfeita sobre a cegueira, a intolerância que caracterizou a história dos homens. Temos um lado de luz e um lado obscuro e quando este lado aparece é realmente a noite que aparece.»

P - A acção desenrola-se no século XVI. Acha que tem actualidade?
R - A violência é sempre actual. A imposição de dogmas é actual. Tudo coisas que é bom ir recordando para que não se repitam, embora, na verdade, se repitam. 

P - E a figura da mulher, nesta ópera?
R - São os seres mais poderosos. Quatro mulheres estão sentadas no final e são como uma coluna, o centro do universo nesse momento.

P - Já conhecia a peça?
R - Sim, claro.

P - O espectáculo corresponde à leitura que fez da peça?
R - É perfeito.

P - A reacção do público hoje [como na representação anterior] não foi muito calorosa...
R - Nem podia ser. Não se enfrentam acontecimentos como estes facilmente. Não se lhes pode responder como se responde à "Madama Butterfly"...

P - É amante de ópera. Qual foi a última a que assistiu?
R - Tive o enorme gosto de ver num espaço de dois meses, imagine, no Metropolitan de Nova Iorque e em Glyndebourne, Inglaterra, a ópera "O Caso Makropulos" do [compositor checo Leos] Janacèk [apresentada em Portugal na Lisboa 94]. Em duas interpretações diferentes. Uma grande experiência. Antes desta...

P - Está de férias em Portugal?
R - Sim, vim com a minha mulher. O embaixador do México [escritor José María Pérez Gay, de quem acaba de sair no México "Tu nombre en el silencio", Leon y Cal editores] é um velho amigo nosso e não podíamos perder a oportunidade de ver Saramago, Pilar e a ópera.

P - É a primeira vez que vem de férias a Portugal?
R - O meu pai foi embaixador do México aqui, nos anos 67, 68. E antes já cá tinha estado. Foi a primeira cidade europeia que conheci. Vim directamente para aqui, nos anos 50. Impressionou-me esta extraordinária mescla do mundo mediterrâneo, árabe, lusitano. Ela mostrou-me desde o primeiro momento uma Europa já mestiça, nesses anos 50. Tenho muitas recordações de Portugal, muitas leituras.

P - Essa Lisboa dos anos 50, reencontrou-a agora?
R - O perfil urbano sim, mas felizmente a situação política mudou. Esta ópera não podia ter sido representada sob Salazar. Havia sempre um censor sentado a ver o que se ia dizendo e representando. Nós riamo-nos, os intérpretes riam-se dele, ele ria-se um pouco, era de certo modo uma ditadura branda. O país mudou.

P - E a cidade?
R - Mal acabo de chegar, não a vi ainda. Sinto que há um perfil novo, moderno, mas parece-me que a cidade de sempre está aí. Essa Lisboa antiga não desapareceu, felizmente.

P - O que vai fazer durante estas férias em Portugal?
R - Ler, apanhar sol, nadar. Acabo de terminar um livro.

P - Como se chama?
R - É um livro de uma série francesa, da editora Grasset, chamada "Ce Que Je Crois". Iniciou-a François Mauriac, há 40 anos. O escritor diz o que pensa, naquilo em que crê.

P - Religião, política, globalização?
R - Fala-se de tudo: literatura, sexo, família, filhos, política. Fi-lo por ordem alfabética - amizade, amor, Balzac, beleza, Buñuel, ciúmes. Também globalização...

P - O que diz da globalização?
R - Que ela está aí. E que não vai desaparecer. O desafio é convertê-la em algo que sirva o ser humano. Não que o esmague e o aliene, como está a fazer. O Renascimento foi globalização. E o descobrimento da América. Vasco da Gama foi um globalizador. Faz parte de um fenómeno que temos que dominar. Não está sujeito à política, não está sujeito a leis e isso é o que a faz tão ameaçadora. É um mercado tão desbocado que não tem nenhum limite, nenhuma lei que o domine. (...)

P - O que disse a José Saramago no final do espectáculo?
R - Que intensidade! Que intensidade!..."

Por Adelino Gomes, publicado no "Público" a 28/07/2001

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