(um homem com música e musicalidade dentro de si...)
“Naquele tempo eu ia à ópera sem pagar. Um porteiro simpático do Teatro Nacional de São Carlos, bom amigo de meu pai, fazia-me sinal para entrar quando faltavam dois ou três minutos para começar a função e os espectadores pagantes já tinham ocupado os seus lugares. Excitado, nervoso, subia rapidamente as íngremes escadas que levavam ao último andar, aonde chegava com o coração a saltar-me da boca. (A porta que o benévolo guardião fiscalizava não dava acesso à plateia nem aos camarotes, era só para espectadores pouco abonados, os que tinham que contentar-se com as torrinhas, que assim se chama aos camarotes de última ordem, e com o galinheiro, cujo nome já está a dizer tudo.) Como eu era um dos que não deixavam sequer um centavo na bilheteira, o meu lugar tinha de ser o galinheiro, se é que, chegando no último segundo, ainda lá encontrava um sítio para me sentar... Por diabólico castigo, exceptuando os pouquíssimos espectadores que se apertavam na primeira fila, ninguém conseguia ver dali o palco por inteiro. A culpa tinha-o o enorme camarote real (presidencial depois da República) que, começando à altura dos camarotes de primeira ordem, trepava pelo teatro acima, quase alcançando o tecto, onde, praticamente, pairávamos. Quando os cantores, cumprindo as marcações de cena, se deslocavam para o lado escondido, era como se tivessem passado para a outra face da lua. Ouvíamos-lhes as vozes (os entendidos afirmavam que a melhor acústica do São Carlos era a do galinheiro...), mas tínhamos de esperar pacientemente que a continuação do enredo trouxesse outra vez os artistas à nesga de palco visível de onde estávamos. Encimando o camarote presidencial e dificultando ainda mais a visão, havia (e lá continua) uma grande e sumptuosa coroa real, de talha dourada, símbolo que sobrou das monarquias passadas, agora reduzida a mero adorno figurativo. Com propriedade e com rigor, porém, o que víamos não era a coroa na sua plenitude aparente, a que oferecia a sua magnificência e o seu esplendor aos espectadores privilegiados dos camarotes e da plateia. Nós, os do galinheiro, tínhamos de contentar-nos com o reverso dela, a parte de trás, o outro lado, numa palavra, a ausência. Sim, a ausência. Ou porque tinha querido poupar algum dinheiro em madeira e em folha de ouro, ou porque acharam que as pessoas que viriam a sentar-se ali não eram merecedoras de mais consideração, a coroa do Teatro nacional de São Carlos não é uma coroa completa, é três quartos de coroa, ou ainda menos. Lá dentro, amparando a real estrutura, viam-se naquele tempo uns sarrafos mal aplainados, fixados com pregos torcidos, muito pó, teias de aranha, alguma vingativa e republicana ponta de cigarro. Como se alguém, nesses distantes e ingénuos dias, tivesse acendido a luz que haveria de iluminar-me a existência, compreendi que o ponto de vista do galinheiro é indispensável se realmente quisermos conhecer a coroa.”
Sem comentários:
Enviar um comentário