Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

José Saramago, um homem com música e musicalidade dentro de si...

(um homem com música e musicalidade dentro de si...)


“Naquele tempo eu ia à ópera sem pagar. Um porteiro simpático do Teatro Nacional de São Carlos, bom amigo de meu pai, fazia-me sinal para entrar quando faltavam dois ou três minutos para começar a função e os espectadores pagantes já tinham ocupado os seus lugares. Excitado, nervoso, subia rapidamente as íngremes escadas que levavam ao último andar, aonde chegava com o coração a saltar-me da boca. (A porta que o benévolo guardião fiscalizava não dava acesso à plateia nem aos camarotes, era só para espectadores pouco abonados, os que tinham que contentar-se com as torrinhas, que assim se chama aos camarotes de última ordem, e com o galinheiro, cujo nome já está a dizer tudo.) Como eu era um dos que não deixavam sequer um centavo na bilheteira, o meu lugar tinha de ser o galinheiro, se é que, chegando no último segundo, ainda lá encontrava um sítio para me sentar... Por diabólico castigo, exceptuando os pouquíssimos espectadores que se apertavam na primeira fila, ninguém conseguia ver dali o palco por inteiro. A culpa tinha-o o enorme camarote real (presidencial depois da República) que, começando à altura dos camarotes de primeira ordem, trepava pelo teatro acima, quase alcançando o tecto, onde, praticamente, pairávamos. Quando os cantores, cumprindo as marcações de cena, se deslocavam para o lado escondido, era como se tivessem passado para a outra face da lua. Ouvíamos-lhes as vozes (os entendidos afirmavam que a melhor acústica do São Carlos era a do galinheiro...), mas tínhamos de esperar pacientemente que a continuação do enredo trouxesse outra vez os artistas à nesga de palco visível de onde estávamos. Encimando o camarote presidencial e dificultando ainda mais a visão, havia (e lá continua) uma grande e sumptuosa coroa real, de talha dourada, símbolo que sobrou das monarquias passadas, agora reduzida a mero adorno figurativo. Com propriedade e com rigor, porém, o que víamos não era a coroa na sua plenitude aparente, a que oferecia a sua magnificência e o seu esplendor aos espectadores privilegiados dos camarotes e da plateia. Nós, os do galinheiro, tínhamos de contentar-nos com o reverso dela, a parte de trás, o outro lado, numa palavra, a ausência. Sim, a ausência. Ou porque tinha querido poupar algum dinheiro em madeira e em folha de ouro, ou porque acharam que as pessoas que viriam a sentar-se ali não eram merecedoras de mais consideração, a coroa do Teatro nacional de São Carlos não é uma coroa completa, é três quartos de coroa, ou ainda menos. Lá dentro, amparando a real estrutura, viam-se naquele tempo uns sarrafos mal aplainados, fixados com pregos torcidos, muito pó, teias de aranha, alguma vingativa e republicana ponta de cigarro. Como se alguém, nesses distantes e ingénuos dias, tivesse acendido a luz que haveria de iluminar-me a existência, compreendi que o ponto de vista do galinheiro é indispensável se realmente quisermos conhecer a coroa.”

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