Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 21 de dezembro de 2014

"Memorial do Convento" - Era uma vez um rei, os homens que construíram o convento...

(ilustração da "passarola")


"Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra.
Era uma vez a gente que o construiu esse convento. 
Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes.
Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido.
Era uma vez."

(Imagem aérea do Convento de Mafra)

"Enfim, chegou o mais glorioso dos dias, a data imorredoira de vinte e dois de Outubro do ano da graça de mil setecentos e trinta, quando el-rei D. João V faz quarenta e um anos e vê sagrar o mais prodigioso dos monumentos que em Portugal se levantaram, ainda por acabar, é verdade, mas pela catadura se conhece o catacego. Não se descrevem tantas maravilhas, Álvaro Diogo não viu tudo, Inês Antónia tudo confundiu, Blimunda foi com eles, parecia mal não ir, mas não se sabe se sonha, se está acordada. Eram quatro da manhã quando saíram de casa para apanharem um bom lugar no terreiro, às cinco formou a tropa, ardiam archotes por toda a parte, depois começou a amanhecer, bonito dia, sim senhores, Deus cuida bem da sua fazenda, agora se vê o magnífico trono patriarcal, ao lado esquerdo do pórtico, com as suas cadeiras e dossél de veludo carmesim, com guarnições de ouro,
o chão coberto de alcatifas, um primor, e numa credência a caldeirinha e o hissope, mais os restantes instrumentos, já se armou a procissão solene que dará a volta à igreja, el-rei vai nela, atrás os infantes e a fidalgaria, conforme as suas precedências, mas o principal da festa é o patriarca, benze o sal e a água, atira água benta às paredes, porventura não foi tanta quanta devia de ser, ou não cairia Álvaro Diogo de trinta metros daqui a poucos meses, e depois vai bater por três vezes com o báculo na porta grande do meio, que estava fechada, às três foi de vez, é a conta que Deus fez, abriu-se a porta e entrou a procissão, pena temos nós de que não entrem Álvaro Diogo e Inês Antónia, e também Blimunda, apesar do nenhum gosto, veriam as cerimónias, umas sublimes, outras tocantes, umas de derrubar-se prostradamente o corpo, outras de sublimar-se aceleradamente a alma, por exemplo, estar o patriarca escrevendo com a ponta do báculo, em montes de cinza dispostos no pavimento da igreja, os alfabetos grego e latino, parece mais obra de bruxedo, eu te talho e retalho, do que ritual canónico, como é também o caso de toda aquela maçonaria que além está, ouro moído, incenso, cinza outra vez,
sal, vinho branco numa garrafa de prata, cal e pó de pedra numa bandeja, uma colher de prata, uma concha dourada, sei lá que mais, não faltam hieroglifos, gatimanhos, passos e passes, para lá e para cá, óleos santos, benzimentos, relíquias dos doze apóstolos, doze, e nisto se passou a manhã e grande parte da tarde, eram cinco horas quando o patriarca começou a missa de pontifical, que, claro está, levou o seu tempo, e não foi pouco, enfim chegou a termo, dali subiu à tribuna da casa de Benedictione para lançar a bênção ao povo que esperava cá fora, setenta mil, oitenta mil pessoas, que num grande sussurro de movimentos e vestes se derrubaram de joelhos no chão, momento inesquecível, por muitos anos que eu viva, D. Tomás de Almeida recitando lá do alto as palavras da bênção, tendo boa vista percebe-se-lhe o mexer dos beiços, ouvidos é que não há que alcancem, havia de ser hoje, clamariam por todo o orbe, urbi et orbis, as trombetas electrónicas, voz verdadeira de Jeová que teve de esperar milénios para que enfim o ouvisse a terra, mas a maior sabedoria do homem ainda continua a ser contentar-se com o que tem, enquanto não inventa melhor, por isso é tão grande a felicidade da vila de Mafra e de quem lá está, bastam-lhe os gestos compassados da mão, de cima para baixo, da esquerda para a direita, o anel faiscante, os ouros e os carmesins resplandecentes,
as alvas cambraias, o retumbar do báculo sobre a pedra que veio de Pêro Pinheiro, lembram-se, vede como ela sangra, milagre, milagre, milagre, aquele foi o último gesto, tirar o calço, retirou-se o pastor com o séquito, as ovelhas já se levantaram, a festa continuará, oito são os dias da sagração e este é o primeiro."

"Memorial do Convento"
Caminho, 20.ª edição
Páginas 350 a 352

Sem comentários:

Enviar um comentário