A concepção desta obra - "O Homem Duplicado", é mais um passo dado, por José Saramago, no aprofundamento da interpretação do homem enquanto ser social. Este é considerado à partida, seu ponto primeiro de identificação e diferenciação sobre os restantes seres vivos, como estando dotado de consciência e sentimentos, reacções e acções, inteligência e capacidade para alcançar o bem pessoal e o bem comum, através da partilha e desenvolvimento de laços harmoniosos.
Representando o período "pós-estátua", há aqui uma real preocupação em retirar as várias camadas que suportam a superfície da estátua já esculpida, descobrindo-lhe a pedra, ou o seu mais profundo âmago, o que chamamos - a Identidade.
Com este processo, de forma intencional, Saramago, como que coloca as suas mãos de escritor, dentro das personagens, não para as comandar como fantoches, mas para as abanar e mostrar o seu interior, fazendo-as assim descobrirem-se e darem a conhecer a sua identidade. O "Eu", o "Eu e o tu", o "Eu e o nós", o "Eu e os outros", e por fim, a soma destas identidades, na visão de José Saramago, nos irá permitir conhecer e perceber, logo à nascente, o espírito global da sociedade que determinada época (tempo), ou local (espaço) apresenta. A acção de cada um é multiplicada, replicada e reproduzida, naquilo que se torna no resultado e consequente consciência social, seja sob a perspectiva do olhar de uma família (Cipriano Algor com a sua filha e genro), de uma nação (a capital em o "Ensaio sobre a Lucidez") , ou do mundo em que vivemos (Alabardas, alabardas, Espingardas, Espingardas).
Esta preocupação é reproduzida transversalmente em toda a obra de José Saramago, independentemente do momento cronológico em que é gerado, seja numa fase inicial (e interrompida durante muitos anos), ou, seja em plena década de 70, já num momento mais activo da sua produção literária, em que o primado "dúvida" sobre a real intenção ou capacidade do ser humano, prevalece sobre a visão utópica que poderia ser adoptada.
Em minha opinião, com a devida ressalva de uma eventual interpretação menos atenta, Saramago criou diversos momentos chave ou "personagens", que o não sendo, foram tornadas influentes na reorientação dos actores e seus conflitos. São momentos de consciência profunda, onde a desorientação da personagem, ou, o conflito social e consequente falta de esperança, obrigam a uma intervenção que permita estabilizar o rumo da história. Lembro-me por exemplo, das diversas figuras caninas neste universo "Saramaguiano". O Achado de Cipriano Algor, em "A Caverna", o Constante de Pedro Orce, na "Jangada de Pedra", ou o cão das lágrimas em o "Ensaio sobre a Cegueira", são determinantes para os seus "companheiros" recuperarem a sua "identidade", ou o seu "eu". Esta ascensão de uma figura animal, em primeiro lugar retira o factor místico e do "inexplicável", de uma eventual intromissão no decorrer da história, e ganha o poder de fazer chamar cada um dos seus intervenientes à "razão" - redescoberta da identidade.
Miguel de Azevedo
Em "A Estátua e a Pedra", Fernando Gómez Aguilera, traduz esta questão de forma límpida. Atendemos às suas palavras (Fundação José Saramago, páginas 50 e 51).
(...) "Com "O Homem Duplicado", regressaria, de certo modo, a uma questão de que se havia ocupado em "Todos os Nomes", a da alteridade, enfrentada agora a partir de um ângulo complementar, o da identidade. Sem dúvida, trata-se de um dos grandes temas da arte e da literatura contemporâneas, explorado por Saramago sob a capa de romance de intriga, para colocar em manifesto as tensões entre o «eu» que se protege e exclui o «outro» que inevitavelmente nos constrói: «O que no fundo eu quero tratar é o tema do "outro". Se o "outro" é como eu, e o "outro" tem todo o direito de ser como eu, eu pergunto-me: até que ponto eu quero esse "outro" entre e usurpe o meu espaço? Nesta história, o "outro" tem um significado que nunca antes teve. Actualmente, no mundo, entre o "eu" e o "outro" há distâncias e não é possível superar essas distâncias, e por isso o ser humano cada vez consegue menos chegar a um acordo. As nossas vidas são compostas em cerca de 95% pela obra dos outros». (2007) (...)
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