Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O "Eu" e o "Outro" em "O Homem Duplicado" como resposta à interpretação do "homem"

A concepção desta obra - "O Homem Duplicado", é mais um passo dado, por José Saramago, no aprofundamento da interpretação do homem enquanto ser social. Este é considerado à partida, seu ponto primeiro de identificação e diferenciação sobre os restantes seres vivos, como estando dotado de consciência e sentimentos, reacções e acções, inteligência e capacidade para alcançar o bem pessoal e o bem comum, através da partilha e desenvolvimento de laços harmoniosos.
Representando o período "pós-estátua", há aqui uma real preocupação em retirar as várias camadas que suportam a superfície da estátua já esculpida, descobrindo-lhe a pedra, ou o seu mais profundo âmago, o que chamamos - a Identidade. 
Com este processo, de forma intencional, Saramago, como que coloca as suas mãos de escritor, dentro das personagens, não para as comandar como fantoches, mas para as abanar e mostrar o seu interior, fazendo-as assim descobrirem-se e darem a conhecer a sua identidade. O "Eu", o "Eu e o tu", o "Eu e o nós", o "Eu e os outros", e por fim, a soma destas identidades, na visão de José Saramago, nos irá permitir conhecer e perceber, logo à nascente, o espírito global da sociedade que determinada época (tempo), ou local (espaço) apresenta. A acção de cada um é multiplicada, replicada e reproduzida, naquilo que se torna no resultado e consequente consciência social, seja sob a perspectiva do olhar de uma família (Cipriano Algor com a sua filha e genro), de uma nação (a capital em o "Ensaio sobre a Lucidez") , ou do mundo em que vivemos (Alabardas, alabardas, Espingardas, Espingardas).
Esta preocupação é reproduzida transversalmente em toda a obra de José Saramago, independentemente do momento cronológico em que é gerado, seja numa fase inicial (e interrompida durante muitos anos), ou, seja em plena década de 70, já num momento mais activo da sua produção literária, em que o primado "dúvida" sobre a real intenção ou capacidade do ser humano, prevalece sobre a visão utópica que poderia ser adoptada.
Em minha opinião, com a devida ressalva de uma eventual interpretação menos atenta, Saramago criou diversos momentos chave ou "personagens", que o não sendo, foram tornadas influentes na reorientação dos actores e seus conflitos. São momentos de consciência profunda, onde a desorientação da personagem, ou, o conflito social e consequente falta de esperança, obrigam a uma intervenção que permita estabilizar o rumo da história. Lembro-me por exemplo, das diversas figuras caninas neste universo "Saramaguiano". O Achado de Cipriano Algor, em "A Caverna", o Constante de Pedro Orce, na "Jangada de Pedra", ou o cão das lágrimas em o "Ensaio sobre a Cegueira", são determinantes para os seus "companheiros" recuperarem a sua "identidade", ou o seu "eu". Esta ascensão de uma figura animal, em primeiro lugar retira o factor místico e do "inexplicável", de uma eventual intromissão no decorrer da história, e ganha o poder de fazer chamar cada um dos seus intervenientes à "razão" - redescoberta da identidade. 

Miguel de Azevedo



Em "A Estátua e a Pedra", Fernando Gómez Aguilera, traduz esta questão de forma límpida. Atendemos às suas palavras (Fundação José Saramago, páginas 50 e 51).   

(...) "Com "O Homem Duplicado", regressaria, de certo modo, a uma questão de que se havia ocupado em "Todos os Nomes", a da alteridade, enfrentada agora a partir de um ângulo complementar, o da identidade. Sem dúvida, trata-se de um dos grandes temas da arte e da literatura contemporâneas, explorado por Saramago sob a capa de romance de intriga, para colocar em manifesto as tensões entre o «eu» que se protege e exclui o «outro» que inevitavelmente nos constrói: «O que no fundo eu quero tratar é o tema do "outro". Se o "outro" é como eu, e o "outro" tem todo o direito de ser como eu, eu pergunto-me: até que ponto eu quero esse "outro" entre e usurpe o meu espaço? Nesta história, o "outro" tem um significado que nunca antes teve. Actualmente, no mundo, entre o "eu" e o "outro" há distâncias e não é possível superar essas distâncias, e por isso o ser humano cada vez consegue menos chegar a um acordo. As nossas vidas são compostas em cerca de 95% pela obra dos outros». (2007) (...)


  

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