Da magnífica obra de João Céu e Silva, vários episódios podem ser recordados ou descobertos. Desta feita, a menção à alusão que Saramago inscreveu no seu "memorial", onde por palavras com origem num livro de Camilo Castelo Branco, este recupera a famosa carta de um abade beneditino de Tibães. Eis, algumas passagens alusivas à entrevista e ao excerto do texto.
"Está a falar da preparação do "Memorial do Convento", livro que, apesar do sucesso mundial, não deixou algumas pessoas de Mafra muito satisfeitas?
O problema foi ter incluído uma carta de um abade do Norte, um beneditino acho, que criticava aquela obra gigantesca e o modo como milhares e milhares de pessoas foram levadas até lá para a fazer. 0 Camilo Castelo Branco escreveu um livro em que falava dessa carta e onde se dava a cada uma das letras que fazem a palavra Mafra um significado. Como fiz referência a este abade, quem era e o que tinha dito exactamente, isto foi transformado em algo que eu tinha dito em vez de se atribuir ao verdadeiro autor como eu fizera. Disseram que eu caluniara e que insultara os habitantes de Mafra! Ainda me ocorreu dizer «Olhem lá! Eu não disse isso», mas mesmo que mostre que não é verdade serei sempre aquele que fez isto, aquilo e aqueloutro. Ninguém aceita as provas em contrário ou os factos que se apresentem, transformou-se numa espécie de lenda urbana ou campestre. O Saramago disse isto ou o Saramago disse aquilo e ninguém vai realmente ver se foi verdade.
Sente-se injustiçado com as coisas que dizem sobre si?
Injustiçado?! Para isso era preciso que essa gente soubesse o que significa justiça! São simplesmente caluniadores, mentirosos e nada mais. Nem vou dar grandes nomes a essas atitudes."
em, Uma longa viagem com José Saramago
de João Céu e Silva
Porto Editora, página 183
(fotografia do interior da Biblioteca do Convento de Mafra)
Referência à descrição da biblioteca,
"O maior tesouro de Mafra é sua biblioteca (c.1730) que, juntamente com a biblioteca de Coimbra, representam o que de mais belo e elegante há nesse tipo de arquitetura em Portugal.
As prateleiras, feitas em madeira brasileira, medem, ao todo, 83 metros de extensão. Entalhadas em estilo rococó, as estantes abrigam mais de 40 mil obras; entre elas vemos verdadeiras raridades bibliográficas, como os incunábulos.
Todas as encadernações em couro marroquino gravado a ouro, são prova viva de que as bibliotecas antigas são, na verdade, porta-jóias que guardam jóias.
A sala imensa, com 88 m de comprimento, 9,5m de largura e 13m de altura, recebe iluminação natural que até hoje impressiona pela perfeição com que a luz do dia foi aproveitada, invadindo o salão e iluminando o piso principal e a galeria, através de enormes janelas que além de funcionais, são muito belas.
A biblioteca tem planta em cruz; na parte mais a sul, ficam os livros religiosos, com manuscritos religiosos ainda em pergaminho. Prática habitual nas bibliotecas antigas, os códices e incunábulos eram acorrentados, como podemos ver na foto à esquerda.
No centro, encontramos os livros sobre os quais a inquisição tinha reservas, que vão da filosofia à anatomia, e entre eles uma preciosa relíquia: o manuscrito do “Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente.
Na parte a norte da cruz, perto da entrada, estão os livros de arquitetura, direito, medicina e música. Ali fica uma primeira edição de "Os Lusíadas", impressa em 1572.
Na foto abaixo uma mesa especial para o estudo e desenho de mapas; não consegui descobrir seu nome, e olhem que já fui a Mafra algumas vezes... E quantas mais pudesse ir, iria: tudo lá é um verdadeiro deslumbramento!"
Aqui remeto para o importante desta alusão.
O episódio do abade beneditino
Excerto da obra "Memorial do Convento"
"De madrugada, muito antes de nascer o sol, e ainda bem, porque estas horas são sempre as mais frias, levantam-se os trabalhadores de sua majestade, enregelados e famintos, felizmente os libertaram das cordas os quadrilheiros, porque hoje entraremos em Mafra e causaria péssimo efeito o cortejo de maltrapilhos, atados como escravos do Brasil ou récua de cavalgaduras. Quando de longe avistam os muros brancos da basílica, não gritam, Jerusalém, Jerusalém, por isso é mentira o que disse aquele frade que pregou quando foi levada de Pêro Pinheiro a pedra a Mafra, que todos estes homens são cruzados duma nova cruzada, que cruzados são estes que tão pouco sabem da sua cruzadia. Fazem alto os quadrilheiros, para que desta eminência possam os trazidos apreciar o amplo panorama no meio do qual vão viver, à direita o mar onde navegam as nossas naus, senhoras do líquido elemento, em frente, para o Sul, está a famosíssima serra de Sintra, orgulho de nacionais, inveja de estrangeiros, que daria um bom paraíso no caso de Deus fazer outra tentativa, e a vila, lá em baixo na cova, é Mafra, que dizemos eruditos ser isso mesmo o que quer dizer, mas um dia se hão-de rectificar os sentidos e naquele nome será lido, letra por letra, mortos, assados, fundidos, roubados, arrastados, e não sou eu, simples quadrilheiro às ordens, quem a tal leitura se vai atrever, mas sim um abade beneditino a seu tempo, e essa será a razão que tem para não vir assistir à sagração da bisarma, porém, não antecipemos, ainda há muito trabalho para acabar, por causa dele é que vocês vieram das longes terras onde vivíeis, não façam caso da falta de concordância, que a nós ninguém nos ensinou a falar, aprendemos com os erros dos nossos pais, e, além disso, estamos em ,tempo de transição, e agora que já viram o que vos espera, sigam lá para adiante, que nós, ficando vocês entregues, vamos buscar mais."
Caminho, 20.ª edição, página 295
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