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"Ao lançar O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago faria inimigos e tornaria sua fama fora dos círculos literários ainda maior. Só não contava com uma censura."
José Saramago em sua casa em Lanzarote, 1994. (Foto por Micha Bar Am)
"Em 1991, o português José Saramago já era um escritor consolidado em seu país e no exterior. Havia publiado uma sequência de romances memoráveis – Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989) – até que na última década do século XX lançou seu livro mais polêmico: O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
A ideia do livro surgiu em 1987. Enquanto andava pelas ruas de Sevilla, o escritor julgou ver numa banca de jornais o título: “O evangelho segundo Jesus Cristo”. A história que passou a fermentar na mente do autor partia daquela que seria uma das cenas centrais do romance, Deus revelando o futuro de Jesus, assim como a religião fundada a partir da sua morte. A história que se contaria era de um Jesus fugindo de seu destino, embora Deus se adiantasse e fizesses os milagres que seriam atribuídos ao filho, de forma que este não pudesse escapar da cruz.
Entre outros trechos polêmicos, o livro apresenta um o messias nascido de carne e osso, filho de Maria e José, que teria sido um criminoso. Traz também um Jesus que vivia maritalmente com Maria de Magdala (Maria Madalena). No entanto, talvez o que mais chame atenção no livro sejam duas personagens: 1) Deus, cuja descrição de Salma Ferraz no Dicionário de personagens da obra de José Saramago merece ser citada, “um exigente diretor da trama que não permite que nada se altere e que exige o máximo do protagonista Jesus”; 2) e o Diabo, o qual também recorreremos à descrição de Salma Ferraz, “não é um enganador do homem, nem um fanático inimigo de Deus, mas, às vezes, um parceiro dele, embora extremamente moderado e menos sentimental.”
Como definiu João Marques Lopes , biógrafo de Saramago, o livro é “a negação de toda uma cultura judaico-cristão que se transmudara de contrapoder em instituição dominante, repressora e autorreferencial contra a própria humanidade.”
"De onde veio a censura ao livro?"
"Entre as declarações mais polêmicas após o lançamento do livro está a do Arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueiras, de maio de 1992:
“Um escritor português, ateu confesso e comunista impenitente, como ele mesmo se apresenta, resolveu elaborar uma delirante vida de Cristo, na perspectiva da sua ideologia político-religiosa e distorcida por aqueles parâmetros. (…) A apregoada beleza literária, a existir nesta obra, longe de atenuante e muito menos dirimente, constitui circunstância agravante da culpabilidade do réu, seu autor.”
Outra crítica recebida veio do jornal Trás-Os-Montes: “Por dever de ofício, tive de ler um livreco pestilento e blasfemo onde o enfunado autor se enterra até as orelhas nas ocorrências que destila como falsário, aleivoso e cínico”; o tipo de crítica que não poderia realmente atingir Saramago.
Contudo, a verdadeira censura partiu de um frente menos provável, afinal já se poderia esperar críticas assim dos religiosos ou da imprensa mediana, com sua necessidade diária de gerar polêmica. O evangelho segundo Jesus Cristo foi suprimido de uma lista de livros propostos por instituições culturais. O responsável foi o subsecretário Sousa Lara, que alegou ser uma obra “profundamente polêmica, pois ataca princípios que têm a ver com o patrimônio religioso dos cristãos e, portanto, longe de unir os portugueses, desunia-os naquilo que é seu patrimônio espiritual”.
Tal exclusão levou Jack Lang, ministro da cultura e da educação da França, a se pronunciar: “não hesitamos em considerar este gesto como um ato inaceitável que atinge um dos maiores escritores do nosso tempo.”
É evidente que havia o aspecto da perseguição pessoal, posto que Saramago sempre se declarou comunista, além do fato de o escritor ter mexido em temas intocáveis de uma sociedade mais religiosa do que demonstra. E tudo isso fez com que em 1993, Saramago partisse para Lanzarote, uma ilha do arquipélago das Canárias, em uma espécie de exílio voluntário, muito embora tenha mantido pelo resto da vida sua casa em Lisboa.
Nem a tradição, o preconceito ou a ignorância puderam calar este que é um dos melhores romances do século XX, O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago."
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