Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 25 de março de 2015

O olhar, ver e reparar... uma constante na obra de José Saramago

“Se podes olhar, vê. 
Se podes ver, repara”

Epígrafe imortalizada na obra "Ensaio sobre a Cegueira"



A famosa epígrafe, que consta já imortalizada na obra "Ensaio sobre a Cegueira", em que José Saramago, com precisão cirúrgica, desmonta estas semelhantes formas de ver, onde o ver, enquanto objecto e veículo de recepção de imagens, é tão só, ou o muito que possa representar, um estágio de profunda interpretação e descodificação do conhecimento. Olhar, ver e reparar...  
Em a "História do Cerco de Lisboa", datada de 1989, este já antecipa e interpreta neste excerto, a futura epígrafe, inscrita, quase de forma metafórica, no "Ensaio sobre a Cegueira" de 1995. 
Aqui fica em detalhe.


"Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista, cada qual com a sua intensidade própria, até nas degenerações, por exemplo, olhar sem ver, quando uma pessoa se encontra ensimesmada, situação comum nos antigos romances, ou ver e não dar por isso, se os olhos por cansaço ou fastio se defendem de sobrecargas incómodas. Só o reparar pode chegar a ser visão plena, quando num ponto determinado ou sucessivamente a atenção se concentra, o que tanto sucederá por efeito duma deliberação da vontade quanto por uma espécie de estado sinestésico involuntário em que o visto solicita ser visto novamente, assim se passando de uma sensação a outra, retendo, arrastando o olhar, como se a imagem tivesse de produzir-se em dois lugares distintos do cérebro com diferença temporal de um centésimo de segundo, primeiro o sinal simplificado, depois o desenho rigoroso, a definição nítida, imperiosa de um grosso puxador de latão amarelo, brilhante, numa porta escura, envernizada, que subitamente se torna presença absoluta. Diante desta porta, muitas e muitas vezes, tem Raimundo Silva esperado que lha abram de dentro, o ruído de disparo que faz o trinco eléctrico, e nunca como hoje teve uma consciência tão aguda, assustadora quase, da materialidade das coisas, um puxador que não é a sua simples superfície luzidia, polida, mas um corpo de cuja densidade pode aperceber-se até ao encontro com essa outra densidade, a da madeira, e é como se tudo isto fosse sentido, experimentado, palpado dentro do cérebro, como se os seus sentidos, agora todos eles, e não só a visão, reparassem no mundo por terem finalmente reparado num puxador e numa porta. O trinco estalou, os dedos empurraram a porta, dentro a luz parece fortíssima, e não o é, mas Raimundo Silva sente-se como se vogasse num espaço sem referências, tal essas atmosferas saturadas de claridade agora em moda nos filmes de sobrenatural ou de aparições de extraterrestres, com dispêndio excessivo de vóltios, espera que a telefonista dê um grito de terror ou caia em transe extático se pelo lado de fora de si próprio se manifesta, numa proliferação de tentáculos sensitivos ou numa irradiação de beleza suprema, a vibração caleidoscópica em que, por um instante que já se extingue, se tornou a sua sensibilidade."

em a "História do Cerco de Lisboa"
Caminho, 2.ª edição
Páginas 166 e 167

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