2015, o ano onde a Europa, continente, mas também símbolo de unidade política e monetária, centro de discussão das artes e culturas, terra de guerras entre povos e suas conquistas territoriais, vive de novo o paradigma de desconhecer o caminha para onde se dirige.
Da Grécia, berço das nações; dos países do sul, dos países do norte, das "Alemanhas" reunificadas que surgem como poder inquestionável pelos demais, das guerras a leste, o cemitério de refugiados no Mediterrâneo, os Balcãs, as ilhas Britânicas, a Península Ibérica, o espectro do radicalismo religioso... tanta Europa para tão pouco Europa.
Em 1989, um homem, "um humanista por acaso escritor" pensava estas questões. Agora se confirmam.
Leia-se o texto, e sentimos que foi hoje escrito.
Rui Santos
Mencionado na obra de Ana Paula Arnaut, "José Saramago" - Edições 70 (2008)
Capítulo 2 - Textos Doutrinários
"Europa", páginas 77 a 80
Publicado originalmente no Jornal de Letras, Artes & Ideias,
10 de Janeiro de 1989, página 32
(Capa da obra de Ana Paula Arnaut
que republica o texto sobre a ideia de "Europa")
"Europa Sim, Europa Não"
"Algumas vezes este romancista, preso nas malhas da ficção que ia tecendo, chegou a imaginar-se transportado na delirante jangada de pedra em que transformara a Península Ibérica, flutuando sobre o mar atlântico, a caminho do Sul e da Utopia. A peculiaridade da alegoria era transparente: embora prolongando algumas semelhanças com o mais comum dos emigrantes que parte para outras terras a buscar a vida, prevalecia, neste caso, uma definitiva e substancial diferença, a de viajarem também comigo, na migração inaudita, o meu próprio país, todo ele, e, sem que aos espanhóis tivesse pedido a devida licença, portanto sem autorização nem procuração, a Espanha. Ora, embalado nestas minhas imaginações, notava eu que não tinha parte nelas qualquer sentimento de pesar, de tristeza, de aflição mais ou menos pânica, ou, para tudo dizer na inevitável [palavra] portuguesa, saudade. Compreender-se-á já porquê. É certo que, pelos vistos irremediavelmente, me ia afastando da Europa, mas os tecidos vitais da barca imensa que me levava continuavam a alimentar as raízes da minha identidade própria e da minha pertença colectiva: logo, não encontrava causa para chorar um bem perdido, se realmente podia ser assim designado o que antes ganho não fora, mesmo tendo tão pouco de bem.
Para não cairmos nos braços da banalidade e da redundância não nos fatiguemos a repetir aqui o longuíssimo catá-logo das maravilhas europeias, desde os gregos e latinos até aos felizes dias de hoje. Por de mais sabemos que a Europa é madre ubérrima de culturas, farol inapagável da civilização, lugar onde haveria de instituir-se o modelo humano que, seguramente, mais próximo estará do projecto que Deus tinha em mente quando colocou no paraíso o mais antigo exemplar da espécie. Pelo menos é desta idealizada maneira que os europeus costumam ver-se ao espelho de si mesmos, e essa é a resposta servil que a si mesmo invariavelmente dão: «Sou eu o que de mais belo, de mais inteligente e de mais culto a Terra produziu até agora.» Dito o que seria a altura de começar a redigir a decerto não menos longa acta dos desastres e horrores europeus, que acabaria por levar-nos à deprimente conclusão de que a famosa batalha celeste, afinal, foi ganha por Lúcifer e que o único habitante do paraíso teria sido a ser-pente, encarnação tangível do mal e seu emblema gráfico, que não precisou de macho, ou de fêmea, se macho era, para proliferar em número e em qualidade. Não faremos pois a acta, como não fizemos o catálogo. Antes cobriremos piedosamente o espelho para que não venha a ser pronunciada sequer a primeira palavra da resposta.
E agora basta de escatologias e ficções. De um ponto de vista ético abstracto, a Europa não tem mais culpas no cartório da História que qualquer outra região do mundo onde, hoje e ontem, por todos os meios, se tenham disputado o poder e a hegemonia. Mas a ética, exercendo-se, como no-lo está dizendo o senso comum, sobre o concreto social, é porventura a menos abstracta de todas as coisas e, ainda que variável no tempo e no espaço, permanece como uma presença calada e rigorosa que, com o seu olhar fixo, nos pede contas todos os dias. Suponho que estamos vivendo o tempo em que a Europa terá de apresentar a juízo o balanço da sua gestão, se não quer prolongar, com o requinte de processos que os modernos meios de comunicação de massa permitem, o seu pecado ou vício maior, que é a existência de duas Europas, a central e a periférica, mais o consequente lastro histórico da injustiça, discriminações e ressentimentos. Já não falo das guerras, das invasões, dos genocídios, das eliminações selectivas, falo sim da ofensa grosseira que é, para além dessa espécie de deformação congénita denominada eurocentrismo, aquele outro comportamento aberrante que consiste em ser a Europa eurocêntrica em relação a si mesma. Para os Estados europeus ricos e, segundo opinião narcísica em que se comprazem, culturalmente superiores, o resto da Europa é algo vago e difuso, um pouco exótico, um pouco pitoresco, merecedor, quando muito, da atenção da antropologia e da arqueologia, mas onde, apesar de tudo, contando com as adequadas colaborações locais, ainda se podem fazer alguns bons negócios.
Ora, não haverá no futuro uma nova Europa se esta não se instituir formalmente como entidade moral, e também não haverá se não for abolido, mais do que os egoísmos nacionais, que tantas vezes não passam de meros reflexos defensivos, o preconceito da prevalência ou da subordinação das culturas. Tenho obviamente presente a importância dos factores económimicos, militares e políticos na formação das estratégias continentais e seu enquadramento nas geoestratégias globais, mas, sendo por fortuna ou desfortuna homem de literatura, é meu dever imediato lembrar que as hegemonias culturais de hoje resultam, fundamentalmente, de um processo duplo e cumulativo de evidenciação do próprio e de ocultação do alheio que teve artes de impor-se como inelutável, quase sempre, pela resignação, quando não pela cumplicidade das próprias vítimas. Nenhum país, por mais rico e poderoso que seja, deveria poder arrogar-se uma voz mais alta. E, já que de cultura esta-mos falando, também nenhum país ou grupo de países, tratado ou pacto, deveria propor-se como mentor ou guia dos restantes. As culturas, comece a Europa por entendê-lo, e entendido tente ficar de uma vez para sempre, não são melhores nem piores, não são mais ricas nem mais pobres, são, simplesmente e felizmente, culturas. Aí, valem-se umas às outras, e é só pela diferença, assumida e aprofundada, que se acharão justificadas. Não há, e esperamos que não venha a haver uma cultura una e universal. A Terra, sim, é única, mas o homem não. Cada cultura é em si mesma um universo comunicante: o espaço que as separa umas das outras é o mesmo espaço que as liga, como o mar aqui na Terra, separa e liga os continentes. Esse romance [A Jangada de Pedra] em que afasto a Península Ibérica da Europa, não precisaria dizê-lo, é o efeito último de um ressentimento histórico. Provavelmente só um português poderia ter escrito este livro. Mas o seu autor declara que estaria pronto a fazer do mar a errante jangada, depois de alguma coisa ter aprendido nesta navegação, se a Europa, reconhecendo-se incompleta sem a Península Ibérica, fizesse pública confissão dos erros cometidos, injustiças e desprezos. Porque, enfim, se de mim se espera que ame a Europa como à minha própria mãe, o mínimo que lhe posso exigir é que a ame a todos os seus filhos por igual e, sobretudo que por igual os respeite a todos."
Para não cairmos nos braços da banalidade e da redundância não nos fatiguemos a repetir aqui o longuíssimo catá-logo das maravilhas europeias, desde os gregos e latinos até aos felizes dias de hoje. Por de mais sabemos que a Europa é madre ubérrima de culturas, farol inapagável da civilização, lugar onde haveria de instituir-se o modelo humano que, seguramente, mais próximo estará do projecto que Deus tinha em mente quando colocou no paraíso o mais antigo exemplar da espécie. Pelo menos é desta idealizada maneira que os europeus costumam ver-se ao espelho de si mesmos, e essa é a resposta servil que a si mesmo invariavelmente dão: «Sou eu o que de mais belo, de mais inteligente e de mais culto a Terra produziu até agora.» Dito o que seria a altura de começar a redigir a decerto não menos longa acta dos desastres e horrores europeus, que acabaria por levar-nos à deprimente conclusão de que a famosa batalha celeste, afinal, foi ganha por Lúcifer e que o único habitante do paraíso teria sido a ser-pente, encarnação tangível do mal e seu emblema gráfico, que não precisou de macho, ou de fêmea, se macho era, para proliferar em número e em qualidade. Não faremos pois a acta, como não fizemos o catálogo. Antes cobriremos piedosamente o espelho para que não venha a ser pronunciada sequer a primeira palavra da resposta.
E agora basta de escatologias e ficções. De um ponto de vista ético abstracto, a Europa não tem mais culpas no cartório da História que qualquer outra região do mundo onde, hoje e ontem, por todos os meios, se tenham disputado o poder e a hegemonia. Mas a ética, exercendo-se, como no-lo está dizendo o senso comum, sobre o concreto social, é porventura a menos abstracta de todas as coisas e, ainda que variável no tempo e no espaço, permanece como uma presença calada e rigorosa que, com o seu olhar fixo, nos pede contas todos os dias. Suponho que estamos vivendo o tempo em que a Europa terá de apresentar a juízo o balanço da sua gestão, se não quer prolongar, com o requinte de processos que os modernos meios de comunicação de massa permitem, o seu pecado ou vício maior, que é a existência de duas Europas, a central e a periférica, mais o consequente lastro histórico da injustiça, discriminações e ressentimentos. Já não falo das guerras, das invasões, dos genocídios, das eliminações selectivas, falo sim da ofensa grosseira que é, para além dessa espécie de deformação congénita denominada eurocentrismo, aquele outro comportamento aberrante que consiste em ser a Europa eurocêntrica em relação a si mesma. Para os Estados europeus ricos e, segundo opinião narcísica em que se comprazem, culturalmente superiores, o resto da Europa é algo vago e difuso, um pouco exótico, um pouco pitoresco, merecedor, quando muito, da atenção da antropologia e da arqueologia, mas onde, apesar de tudo, contando com as adequadas colaborações locais, ainda se podem fazer alguns bons negócios.
Ora, não haverá no futuro uma nova Europa se esta não se instituir formalmente como entidade moral, e também não haverá se não for abolido, mais do que os egoísmos nacionais, que tantas vezes não passam de meros reflexos defensivos, o preconceito da prevalência ou da subordinação das culturas. Tenho obviamente presente a importância dos factores económimicos, militares e políticos na formação das estratégias continentais e seu enquadramento nas geoestratégias globais, mas, sendo por fortuna ou desfortuna homem de literatura, é meu dever imediato lembrar que as hegemonias culturais de hoje resultam, fundamentalmente, de um processo duplo e cumulativo de evidenciação do próprio e de ocultação do alheio que teve artes de impor-se como inelutável, quase sempre, pela resignação, quando não pela cumplicidade das próprias vítimas. Nenhum país, por mais rico e poderoso que seja, deveria poder arrogar-se uma voz mais alta. E, já que de cultura esta-mos falando, também nenhum país ou grupo de países, tratado ou pacto, deveria propor-se como mentor ou guia dos restantes. As culturas, comece a Europa por entendê-lo, e entendido tente ficar de uma vez para sempre, não são melhores nem piores, não são mais ricas nem mais pobres, são, simplesmente e felizmente, culturas. Aí, valem-se umas às outras, e é só pela diferença, assumida e aprofundada, que se acharão justificadas. Não há, e esperamos que não venha a haver uma cultura una e universal. A Terra, sim, é única, mas o homem não. Cada cultura é em si mesma um universo comunicante: o espaço que as separa umas das outras é o mesmo espaço que as liga, como o mar aqui na Terra, separa e liga os continentes. Esse romance [A Jangada de Pedra] em que afasto a Península Ibérica da Europa, não precisaria dizê-lo, é o efeito último de um ressentimento histórico. Provavelmente só um português poderia ter escrito este livro. Mas o seu autor declara que estaria pronto a fazer do mar a errante jangada, depois de alguma coisa ter aprendido nesta navegação, se a Europa, reconhecendo-se incompleta sem a Península Ibérica, fizesse pública confissão dos erros cometidos, injustiças e desprezos. Porque, enfim, se de mim se espera que ame a Europa como à minha própria mãe, o mínimo que lhe posso exigir é que a ame a todos os seus filhos por igual e, sobretudo que por igual os respeite a todos."
José Saramago
"Europa sim, Europa não", in Jornal de Letras, Artes & Ideias
10 de Janeiro de 1989, página 32
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