"José Saramago visto por quem o conhece"
Houve um dia em que Blimunda quis conhecer o seu autor. Andava ela por aquele tempo ocupada em conversas com certas mulheres, e eram estas de Mafra e de outros lugares por onde passou durante as suas diversas vidas, de modo que lhes comunicou o seu propósito, porque tinha aprendido que as palavras não ditas acabam por perder a intenção. Disse: Vou conhecer o homem que me pôs no mundo, e todas souberam que cedo conheceriam o retrato de um ser muito humano, pois tinham tanto a certeza da tenacidade de Blimunda como da personalidade do escritor dos livros em que habitavam, do qual se ouviam rumores, embora ninguém lhe tivesse visto os olhos.
Não usou Blimunda a passarola. Cada viagem, e isso sabem-no todos os viajantes, necessita do seu próprio veículo, e para esta bastava a vontade, de maneira que se pôs a caminho com o seu alforge e o seu pão, embora não em jejum, que agora pode ver o interior das pessoas sempre que olha, é sábia as vinte e quatro horas do dia, por isso naquela tarde em que encontrou Saramago o viu por dentro e por fora com um só olhar.
É verdade que ao princípio foram as mãos. Nos primeiros instantes deteve-se na fronteira do corpo, não tímida, não indecisa, simplesmente fascinada ante a cadência do movimento e a forma dos dedos, também por causa da cor, da suavidade que anunciavam. Então, aprendidas de memória as mãos, seguiu adiante, viu a estatura, percebeu o peso, deteve--se nos ombros, subiu pelo pescoço, topou com a cara e os olhos que a fitavam expectantes, e assim se encontraram Blimunda e Saramago sob o sol de Verão, se encontraram para que também ela pudesse dizer: Conheço-te, assim se fechando o círculo perfeito formado pelo autor, pelo leitor e pela personagem.
Blimunda disse: Agora conheço-te, mas quero saber mais de ti, quero saber por que me escreveste, por que me fizeste sábia, por que dizes que o mundo se sustém na sua órbita graças à conversa das mulheres, por que sou eu irmã de Lídia, de Maria Guavaira e de Joana Carda, de Maria Sara e de Ma ria de Magdala, da Mulher do médico e da Mulher desconhecida, das mulheres do Alentejo, da mãe de Baltasar e da minha própria mãe, por que escreveste homens honestos e sonhos de justiça, por que nos escolheste, a nós, os pobres, como matéria das tuas narrativas, dando-nos esta outra vida no interior das pessoas e nos muitos idiomas em que os teus livros se multiplicam.
Isto disse Blimunda a Saramago. E ele, com a paciência de um pai a falar ao filho pequeno, foi explicando enquanto a si mesmo se explicava: Escrevi-te porque te levava dentro, sabia que o homem é capaz de voar se estiverem juntos homem e mulher, se estão juntos os homens e mulheres, com a sua soberana vontade de levantar-se do chão se levantam, soube que eras capaz de ver porque as mulheres sempre o fizeram, escrevi que susteis o mundo porque aprendi com a minha avó Josefa o que é suster uma casa e torná-la habitável, não escrevi sobre os poderosos porque me bastou contar que ao teu homem o deixaram manco numa guerra que eles declararam, um homem pode resumir todos os homens, Baltasar é João Mau-Tempo, é o Sr. José, ou Raimundo Silva, ou o pintor H., ou o soldado Mogueime, ou Jesus, ou o Velho da venda preta, ou o Ricardo Reis das suas últimas e desoladas horas, quando finalmente compreende que não é sábio porque não se rebelou contra aqueles que não escrevo, que a esses não os conheço nem quero conhecer, vejo o efeito dos seus passos e não gosto do que vejo.
Disse tudo isto Saramago, ou assim o entendeu Blimunda quando o contou naquela noite. Estavam as mulheres sentadas na cozinha de Josefa, que era do tamanho das recordações, o lume estava apagado porque fazia calor e a ceia foi de pão, queijo e azeitonas. Todas escutavam Blimunda, concordavam com a pertinência das perguntas, sabendo no seu íntimo que para conhecer a uma pessoa basta saber as suas intenções. Ouroana, que é tímida, quis saber se o autor estava contente, se as suas personagens o faziam feliz, e Maria Sara adiantou-se a Blimunda para dizer que a paz que encontravam dentro de si e que partilhavam era a melhor resposta, a ausência de conflitos entre eles, homens e mulheres, era sinal da harmonia de uma obra, e isso sabia-o ela bem, pois tinha sido revisora numa editorial e conhecia os desequilíbrios das palavras e dos homens. Então uma Rapariga de óculos escuros que às vezes estava como ausente perguntou pelos olhos do autor, se brilham mais, se são mais bonitos, como fazem para ler na alma de tanta gente, e à última pergunta não soube Blimunda responder, ainda que o intentou, porque, como já foi dito, é ousada: Tem um olhar penetrante, suave e melancólico, sim, os seus olhos devem ser bonitos, mas quando me olhou fui eu que me senti bonita, quando fala faz pensar em coisas belas, e ele deve ver os nossos pensamentos, por isso nos descreve bons. Disse Maria de Magdala: Faz-nos dizer coisas que estão dentro de nós mas que nunca tínhamos expressado, e Joana Carda, que é rápida, acrescentou: Nós contamos, pela nossa boca, a sua experiência dos homens e da vida, Maria Sara tem razão, somos muitos e diversos, vivemos em livros diferentes, mas sempre somos contemplados por um mesmo olhar, e é esse olhar que nos salva. E os leitores, perguntou outra Maria, a Guavaira, a de acento galego, esse olhar abarca também os leitores? A Mulher do médico fez um gesto. Parecia que ia falar, mas calou-se, calaram-se todas, não há aqui nenhum leitor para dizer se se sente amparado pelo olhar do autor, se se sente respeitado, se a feitura de um livro lhe arranca os mais belos suspiros, as intenções mais Formosas. Não há aqui nenhum leitor, disse por fim Blimunda, mas eu vejo no interior das pessoas e vejo os leitores vendo-se a si mesmos. A Mulher do médico sorriu, nunca saberemos se era um sorriso de assentimento, de cumplicidade ou um segredo partilhado o brilho que lhe iluminava a cara. Nunca o saberemos, mas cada leitor tem a sua própria experiência, ele saberá como responder.
Houve um dia em que Blimunda quis conhecer o seu autor. Atravessou o seu mapa pessoal e encontrou-se com Saramago. O mundo não está perdido, pensou. Vou contá-lo. E pôs-se a falar para que nos chegassem estas suas primeiras palavras."
"Pilar del Rio, Atlantis TAP Air Portugal, n° 1, Janeiro-Fevereiro, 1999, pp. 12-15."
Apontamento de Ana Paula Arnaut, em "José Saramago", Edições 70 - Páginas 166 a 169
"Parecendo ter em mente a afirmação feita em Memorial do Convento, sobre a hipótese de a mulher ser "uma só no mundo, só múltipla de aparência", Pilar del Río traça neste breve mas cativante texto o retrato e o papel do feminino nos universos saramaguianos."
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