“As Intermitências da Morte”
1.ª parte / 2.ª Sessão – Outubro 2015-10-29
(Montagem cénica da obra - Rui Santos)
A violência, física e psíquica, latente na nossa sociedade e que perpassa em várias páginas do livro.
“As intermitências da Morte”, decorre num pais não identificado com 10 milhões de habitantes, que faz fronteira com 3 países e sem acesso ao mar. Pela proximidade da quantificação do número de habitantes podemos criar algum imaginário com Portugal, mas o facto de não haver fronteira marítima, já nos remete para outras paragens, quiçá no centro da Europa.
O elemento central, sempre presente mesmo aquando da sua ausência è a morte. O acto de uma pessoa morrer como um fim natural e sendo regra sem excepção, num jogo de vida e seu términus, assume o absurdo e o impensável que passa a ocorrer, por alguma alteração inexplicável, não morrer. Continuar não vivendo ou ter a vida em suspenso mesmo no momento em que ela, por acidente ou doença, deveria ter cumprido com a sua última acção.
José Saramago constrói uma narrativa sempre em suspenso. As pessoas deixaram de morrer, explicada nas primeiras horas ou dias por algum acaso circunstancial, e depois regista-se a tomada de consciência colectiva desta acção. As instituições assumem de forma imediata a imperiosa necessidade de sobrevivência corporativa, através da alteração das suas doutrinas mais básicas. Assim se passa com a Igreja Católica e a salvação, com as companhias de seguros através dos seguros de vida, da indústria funerária com os enterros dos animais domésticos, com a monarquia que pretende o garante do seu amorfo régio poder, com a máphia que se alia às suas congéneres dos países fronteiriços.
Não sendo conhecido nenhum fenómeno científico ou outro, que pudesse avalizar a inesperada eternidade, o autor cria um propositado vazio psicológico latente em todo o decorrer das páginas.
Poderíamos estar perante um país em jubilo, euforia desenfreada ou num estado de embriaguez da consciência colectiva, onde a nação que por este acaso, assumir-se-ia com um sentido de invencibilidade perante os países vizinhos. Mas não. Convenço-me de alguma violência psicológica no quadro criado pela ausência de uma manifestação de euforia ou festa generalizada. Este país impressivamente adoptado para a acção não é Portugal. Decididamente o não é, caso contrário, Saramago teria de cumprir com a característica que sempre nos simboliza, ou seja, da euforia à depressão ou o seu contrário.
“As Intermitências da Morte” são um ataque à moral do mundo de hoje, ao mundo de 2005, quando foi escrito, e também ao mundo do pós II.ª Grande Guerra, algo condutor e criador do ambiente que se vive na Europa contemporânea. É um ataque à civilização e à arquitectura que a sustêm e se reproduz automaticamente dentro dos seus próprios vícios. Vivemos tempos de acertar no erro e trabalhar o erro da humanidade repetidamente.
Poderá ser considerado totalmente descabido ou desajustado da realidade transmitida pela essência da obra, mas a morte, seja ela por ausência nos primeiros 6 capítulos, ou por manifestação física no restante, sendo a personagem principal não a entendo como o objecto crítico e fulcral desta teia de situações.
O que estará em causa será a oportunidade concedida a uma nação, para repensar os pilares sobre os quais está fundada e como evolui enquanto povo.
À revista Época (31/10/2005) Saramago disse numa entrevista:
“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Actualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto.”
Lançado em 2005, 10 anos depois do “Ensaio sobre a Cegueira” e no ano seguinte ao do “Ensaio sobre a Lucidez” (2004), nas “Intermitências” é abordada a marca da violência, tanto na componente da agressão física, como na vertente da força imposta sob algumas formas de coação psicológica, atacando ora o individuo ou a comunidade.
(Montagem cénica da obra - Rui Santos)
Quatro breves exemplos
Violência física
Pag. 27 “e um pobre homem houve que teve de pagar o antipatriótico desabafo com uma tareia que, se não lhe acabou ali mesmo com a triste vida, foi só porque a morte havia deixado de operar”
Em Portugal, os dados estatísticos de 2014 referentes à violência doméstica, reportam mais de 21.000 casos de agressões e perto de 10.000 vítimas directas, que recorreram aos centros da APAV solicitando auxilio. Continuamos a permitir a agressão.
Violência geracional
Pág. 33 e 34 “cemitérios de vivos onde a fatal e irrenunciável velhice seria cuidada como deus quisesse, até não se saber quando”
Continua-se a assistir ao abandono dos idosos em lares, que não são de feliz ocaso, ou nos hospitais. Abandonam-se pessoas.
Violência psíquica
Pág. 43 “e logo a mãe da criança subiu, tomou-a ao colo, disse Adeus meu filho que não te torno a ver”
Por estes dias, no mar Mediterrâneo, uma balsa em fuga transporta pessoas desesperadas que fogem das guerras e máfias locais. Morrer no mar é um risco a correr para estas pessoas. Um pai deixa cair o seu filho ao mar. Que outra dor poderá ser maior que esta.
Violência institucional
Pág. 73 “O país encontra-se agitado como nunca, o poder confuso, a autoridade diluída, os valores em acelerado processo de inversão, a perda do sentido de respeito cívico alastra a todos os sectores da sociedade, provavelmente nem Deus saberá aonde nos leva.”
As sociedades ocidentais persistem na inversão da pirâmide funcional da governação de cada país. A população serve o poder e alimenta os mercados financeiros de origem canibal e especulativa, ao invés, do primado que deveria existir, talvez utopicamente, as cúpulas gestoras ao serviço das pessoas.
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