Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Diálogos #1: O Amor em José Saramago - Trabalho do site NotaTerapia (10/01/2016)

Pode ser consultado e lido aqui
em http://notaterapia.com.br/2016/01/10/dialogos-1-o-amor-em-jose-saramago/

"Diálogos #1: O Amor em José Saramago" em 10 de Janeiro de 2016

De Luiz António Ribeiro e Luisa Bertrami D'Angelo 

"Hoje começamos no NotaTerapia um novo projeto: “Diálogos”. Nele, nós criadores do site, Luiz Antonio Ribeiro e Luisa Bertrami D’Angelo vamos fazer aquilo que o nome já diz: dialogar sobre um tema literário ou sobre qualquer tema que vier em nossa mente, for do nosso interesse e acharmos que tem a ver com a página. Ele funciona da seguinte forma, toda semana um de nós propõe um tema e escreve umas linhas sobre ele, então envia para a outra pessoa que lê e complementa também com algumas frases. Assim, vamos aos poucos construindo nosso diálogo ao redor do tema que escolhemos. O mais interessante, nos parece, é que podemos nos aproximar da arte da forma mais potente possível: abrindo um diálogo em direção ao outro, naquilo que podemos tocar e ser tocados pelo objeto artístico. Esperamos de coração que vocês gostem!

O primeiro tema foi escolhido por mim e é o amor em José Saramago, partindo inicialmente da obra Todos os Nomes. Confira:



LUIZ – Eu queria começar essa nossa série falando da ideia de amor em José Saramago. Conforme fui lendo as obras do autor, percebi que seu pensamento de esquerda estava muito presente: havia nas obras uma ordem coletivista do mundo. Vemos isso em Ensaio Sobre a Cegueira, A Jangada de Pedra, Ensaio sobre a Lucidez, entre outras. Apesar disso, dentre elas uma diferente apareceu: Todos os Nomes. Eu percebi de cara que, em Todos os Nomes, havia um indivíduo, o Sr. José e que toda a trajetória da obra era a de um homem diante de sua primeira paixão. Mesmo que ainda sem nome, sem face – um alguém coletivo na multidão – havia um sujeito, sozinho, de um lado e do outro, o amor. Estava nascendo pra mim a ideia de amor do Saramago. Você também percebeu isso?

LUISA – Sim, sem dúvida! Todos os nomes é, com certeza, um livro de amor. Não só pelo fato de o Sr. José ir atrás de qualquer coisa que o leve àquela mulher, mas também (e principalmente) por como ele despende toda a sua existência para isso. Não que o amor seja um dar-se incondicional ao outro, mas é que o Sr. José se deixa ser totalmente atravessado por esse desejo de encontrá-la e, nisso, se disponibiliza para vivenciar de maneira extremamente potente tudo que sente e vive nessa busca. O fato de esta mulher ser uma mulher comum, ao contrário de todas as pessoas famosas e inacessíveis que ele tanto admirou, também me soa como algo muito belo, como se dissesse um pouco do tanto que o amor não é algo transcendente, mas, pelo contrário, é algo do mundo…

LUIZ – E será que é isso que move ele? um “anônimo desconhecido”? Alguém capaz de conter um mistério que a gente precisa desvendar? Talvez o amor seja isso, igual da “Ideia de amor” do Agamben: a gente quer se aproximar e tocar o outro, mas sem revelar sua face, talvez tocar o outro para mantê-lo estranho e inacessível. Acho que o Sr. José até então não havia descoberto essa força: a burocracia, o mundo do “mesmo” era tudo que lhe era apresentado, e a partir do pequeno crime (quem há de negar que o amor é uma espécie de crime?) muitos outros seriam cometido. Acho que há também uma relação estreita com a morte, né? Você que leu o Intermitências da Morte consegue ver alguma ligação entre o amor e morte em ambas as obras? 

LUISA – Olha… não sei se vejo uma relação entre o amor e a morte. Ou melhor: há, sim, uma relação entre as duas coisas na medida em que, indo além do que você disse, o amor não é só uma espécie de crime, mas uma espécie de morte, ainda que simbólica, já que morre o que éramos antes do encontro amoroso pra nascer uma outra coisa, que agora foi atravessada pelo amor (e é certo que essa outra coisa nasce apenas para, num próximo instante, morrer e ser outra… eterno devir). Mas, voltando, vejo talvez com mais clareza uma aproximação entre morte e afeto – e afeto aqui é (por incrível que pareça) mais do que amor. As mortes de Saramago são povoadas de afetos – intensidades, potências (mortes povoadas de vida?). Em As Intermitências da Morte, ninguém mais morre em Portugal. Até que a morte resolve voltar a matar, mas há esse sujeito que, mesmo depois de muitas investidas dela, cisma em não morrer. E a morte se aproxima deste sujeito, ela quer conhecê-lo e entender porque sempre acontece algo que não o deixa morrer. Este encontro é cheio de afetos – como devem ser todos os encontros… E é muito bonito, pois a aproximação dele e da morte, que deveria ser algo totalmente assombroso, é o que possibilita a vida e novas trocas afetivas…

LUIZ – Então, acho que chegamos nisso como semelhança e diferença: “E a morte se aproxima deste sujeito, ela quer conhecê-lo e entender porque sempre acontece algo que não o deixa morrer.” No caso de Todos os Nomes é a mulher que não permite que o Sr. José encontre-a simplesmente porque…o encontro não é importante, não faz nenhuma diferença encontrar ou não encontrar. A relação está toda na busca, no caminho, no trajeto, o encontro dos dois seria só mais um anti-clímax da burocracia da vida comum. É aí que está a questão, eu acho, diante da morte só é possível o encontro. A morte é este encontro do limite, da linha máxima que não pode ser transposta. A vida, ao contrário, não serve aos encontros, serve as buscas, aos trajetos, a errância – caminho de quem erra pelo mundo. Talvez o que mova a vida não seja o amor, mas como dissemos lá em cima “a ideia de amor”, aquilo que, na busca, mantém a vida desconhecida, o mistério. O afeto é um dos efeitos da vida: na morte encontra seu limite. E como entender a busca do Sr. José por essa “escuridão”, ao contrário da clareza da sua vida anterior? 

LUISA – Vou tentar reformular um pouco a minha concepção do encontro: o encontro não é o ato ou o momento de encontrar, mas todo o caminho percorrido, todo esse entre, toda essa errância…. encontro como o encontro entre nossas intensidades e as intensidades do mundo. Concordo, então, que se o Sr. José simplesmente “encontrasse” a mulher, seria apenas a burocracia agindo outra vez. Mas ele a encontra (aí no sentido que disse anteriormente) mesmo sem “encontrar” com ela. Fica claro? Não é o encontro face-a-face, mas o encontro dos afetos que passam por ele vindos da própria ideia de encontrá-la, vindos da busca (linhas que se cruzam). E se é certo que a morte é a linha máxima que encerra a vida, não é por isso que não é possível ter vida na morte: para mim, as trocas que se estabelecem entre o homem que não morre e a morte são exatamente isso: a possibilidade de criar (e portanto afetar, ser afetado) mesmo diante da morte. Porque como toda linha, a linha da morte também pode ser dobrada. O mesmo no caso do Sr. José: quais as chances de encontrar a tal mulher, que ele nunca viu nem ouviu falar nem sequer sabe da existência dele? Ainda assim, há nele essa potência que leva a essa busca… A “escuridão” na qual ele entra por causa de sua busca poderia parecer absurda, já que antes havia clareza. Por que percorrer essa ideia maluca, se há a vida, calma, tranquila e acolhedora? Acho que essa é a maior lição que Sr. José nos dá: a de que a Vida não é essa vida da clareza, com v minúsculo, mas o caminho pela escuridão, que é onde podemos realmente inventar, criar e viver…

LUIZ – Acho que é exatamente isso: um lançar-se ao nada ou, como diz Nietzsche, dançar a beira do abismo. É interessante como Saramago precisa construir isso em todos os detalhes: as conversar com a senhora do rés do chão, aquele cemitério com o número das lápides trocadas, aquela noite dentro da escola, as conversas com ele próprio em casa, olhando pro teto. Tudo converge para a mesma coisa, uma busca do escuro. Sr. José perguntava: onde está meu escuro? E sua resposta era sempre: Preciso procurar. E só na procura ele acha. A cena final do livro – que não vou contar aqui – é isso. O encontro com a vida, com a coragem. Uma coragem da vida que abarca tudo mesmo que este tudo esteja nesta sombra, nesta escuridão. É por isso que Todos os Nomes pra mim junta o melhor de Saramago: a capacidade de olhar o mundo no que ele tem de ser violento contra os corpos – seja ele quais forem – ao mesmo tempo em que mostra uma coragem, um possibilidade de encantamento do mundo. E quando a gente encanta o mundo, nada fica igual: tudo já é outro.

LUISA – Perfeito! Saramago nos mostra que a vida é possibilidade, é busca e criação. E talvez essa percepção também nos aproxime mais do que falávamos no começo, sobre o que é o amor pra ele."

Sem comentários:

Enviar um comentário