Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 28 de fevereiro de 2016

"Crónica do escritor na rua" Prefácio de Fernando Gómez Aguilera

Capa da edição "As Palavras de Saramago"
Companhia das Letras - Brasil

Prefácio da obra da autoria de Fernando Gómez Aguilera
(que fez a edição e selecção para a obra)

"Crónica do escritor na rua"
"A intervenção na esfera pública constitui um dos traços centrais do perfil intelectual de José Saramago, um escritor que sempre recusou qualquer torre de marfim, e se manteve distante da introversão. “Aonde vai o escritor, vai o cidadão”, costumava reiterar, resoluto, desfazendo qualquer dúvida eventual sobre seu compromisso civil, assumido como imperativo cívico, emanante tanto de suas convicções políticas quanto da impregnação humanista - nihil humanum puto alienum mihi - que filtrava com brio pelo tecido da sua estrutura cultural e da sua musculatura de incansável e vigoroso polemista. Como acontecera com Albert Camus, não é possível desagregar a escrita de seus princípios em face das circunstâncias da realidade, quaisquer que sejam as consequências que decorram desse fato. O autor concentra, sem fissuras, na pessoa que é, o feixe de obrigações derivado de seus atos, tanto os específicos à literatura, como os próprios do exercício da cidadania ou os concernentes à vida pura e simples, porque, para Saramago, “a obra é o romancista”, e o romancista resulta da projeção da pessoa que o anima. Desse modo, a responsabilidade - também sua variante consanguínea, concretizada num arraigado senso do dever - afirma uma das categorias que ajudam a definir seu caráter, marcando o conjunto de valores que orientaram sua conduta ética, mas também seu fazer criativo e reflexivo.
A partir da sua eclosão como narrador, no início dos anos 1980, desenvolveu uma crescente e intensa tarefa de efusão de ideias, juízos e denúncias em foros e meios de comunicação internacionais, até tornar sua voz uma referência global, particularmente identificada com o pensamento crítico, a defesa dos excluídos e a reivindicação dos direitos humanos. A concessão do prêmio Nobel de Literatura em 1998, em vez de modular seu discurso enfático, contribuiu para acentuá-lo, para estimular sua conduta e ampliar o alcance das suas palavras. Hoje quase não se poderia entender adequadamente a figura do escritor sem levar em consideração sua faceta pública, que, vista em perspectiva, adquiriu a forma de uma espécie de sustentado comportamento ativista, aproveitando a plataforma oferecida pela imprensa e pelas tribunas para difundir suas ideias e combater os desvios que, a seu ver, perturbam a ordem do mundo e o bem-estar da humanidade. Mediante declarações, entrevistas e manchetes contundentes, Saramago compartilhava considerações sobre sua própria criação ou tratava abertamente de questões palpitantes de nosso tempo, elaborando um rico sistema de pensamento de raiz radical, mas também forjando-se uma face social que é parte substantiva da sua robusta figura. E praticou isso de tal modo que, ao mesmo tempo que contribuía para criar uma opinião e desenhar sua silhueta do mundo, ia construindo sua visibilidade pública como intelectual engajado, mais além do contundente espaço ocupado pelo homem de letras, de quem Harold Bloom diria em 2001:
"Saramago é extraordinário, quase um Shakespeare entre os romancistas. Não há nenhum ficcionista vivo nos Estados Unidos, na América do Sul ou na Europa que tenha a sua versatilidade. Dir-se-ia tão divertido quanto pungente. Sei que é um marxista, mas não escreve como um comissário e opõe-se aos impostores da Igreja católica. O seu trabalho ultrapassa tudo isso." 


(José Saramago e Fernando Gómez Aguilera, 
durante a exposição inaugurada em São Paulo, 2008)
Fotogragia via Fundación César Manrique (FCM), aqui

"Polémico e racionalista, sentencioso e imaginativo, original e provocador, político e combativo, sabia articular e mostrar uma refinada autoconsciência sobre seu trabalho, de maneira que, através das suas manifestações, pode-se rastrear uma fina percepção analítica das chaves da sua obra, cujos juízos e informações contribuem para esclarecê-la e compreendê-la. Além de se questionar sobre o papel do escritor, pensava em voz alta sobre a motivação de seus livros, vinculava-se à sua árvore genealógica literária específica, elucidava as relações e diferenças entre História e ficção ou entre Literatura e compromisso, aclarava sua concepção simultaneísta da temporalidade, desmitificava a criação e decifrava seu processo de formalização textual, a singularidade do seu estilo ou as reservas com que se aproxima dos gêneros, enquanto apostava em inovações ou em desenvolvimentos fronteiriços. 
Mas a sua capacidade de ponderação e de penetração no sentido oculto das coisas soube se deslocar da escrita para se pôr a serviço da investigação nas zonas obscuras da História, do ser humano e dos mecanismos de poder, de controle ideológico e de injustiça que condicionam nosso entorno, determinando o sentido da nossa vida. Resistindo às ideias recebidas, afiou seu bisturi, iluminado por uma pertinaz consciência insatisfeita instalada na interrogação permanente, numa confessada desconfiança e num pessimismo voltairianos que lançam um olhar desgostoso, irônico e melancólico sobre o real. Estendeu seus testemunhos, diversificados quanto a seus interesses - não só profissionais, mas, com frequência, sociais e políticos - , ao terreno dos valores éticos e da quebra dos direitos humanos. Censurou o fracasso da razão como moduladora do nosso comportamento individual e coletivo, denunciou o esvaziamento cerimonial da democracia - cujo paradigma contemporâneo ele questionava - e a hegemonia global do poder econômico por exigência de um mercado regido por códigos autoritários e amorais, num mundo que, crescentemente, se faz desumano. Não foram alheios a suas preocupações o tratamento das suas difíceis relações com Portugal, a defesa do iberismo transcontinental, a reprovação da Igreja, a análise severa do papel desempenhado pelos canais de informação, o reconhecimento dos erros do marxismo e a reivindicação, a partir da sua condição de militante comunista, de um novo pensamento de esquerda, construído em tensão com os desafios contemporâneos e capaz de superar as obsoletas fórmulas do passado. Em definitivo, nas observações expressas na imprensa, compartilhou fadigas filosóficas e políticas com a literatura - a qual, como fez Sartre, também não priva desses conteúdos -, ao mesmo tempo que mostrou sua vocação para falar e dialogar franca e polemicamente com seu presente. A prodigalidade com que o autor do Ensaio sobre a cegueira se relacionou com os meios de comunicação, sem levar em conta limites geográficos, serviu-lhe para transladar amplamente ideias e apreciações, apoiado numa viva capacidade de comunicação, num notório didatismo e na inclinação para difundir e compartilhar suas impressões, como se se tratasse de um estrito ato de militância, ou, antes, de pleno exercício da sua liberdade e responsabilidade social. O próprio escritor sempre foi muito consciente da frequência e da amplitude com que se difundia seu pensamento: “Minhas ideias são conhecidíssimas, nunca as disfarcei nem as ocultei. Minha vida é tão pública que se conhece tudo o que pensei sobre cada acontecimento”. Sem dúvida, um mecanismo lubrificado que, por seu colossal volume e ressonância, sustentou uma efusiva relação de atração com o público. José Saramago soube trabalhar os registos comunicativos manejando ideias fortes que problematizam as convenções, favorecidas por uma linguagem acessível, direta, sem aparente elaboração - no entanto, sempre digerida intelectualmente -, filtrada pelas regras do jornalismo e apoiada em grandes metáforas e sugestivas imagens. Além das suas inquietudes morais, sociopolíticas e literárias, em jornais e revistas, rádios e televisões, em encontros e conferências, deixou pormenorizado testemunho da sua biografia, das suas convicções e da sua índole.
Nesta compilação que agora é oferecida ao leitor há um amplo repertório de palavras do escritor português, extraídas exclusivamente de jornais, revistas e livros de entrevistas - cinco publicações de referência para conhecer o escritor, que recolhem suas conversas com Armando Baptista-Bastos, Juan Arias, Carlos Reis, Jorge Halperín e João Céu e Silva, além de uma monografia de Andrés Sorel -, num leque cronológico que abarca da segunda metade dos anos 1970 até março de 2009. Os trechos selecionados foram obtidos a partir da consulta de um vasto corpus de declarações publicadas em diversos países: Portugal, Espanha, Brasil, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Argentina, Cuba, Colômbia, Peru… Naturalmente, a paisagem resultante não pretende nem poderia ser completa, mas é exaustiva e suficientemente significativa do cabedal de atitudes e pensamento com que o prêmio Nobel português exerceu sua fecunda responsabilidade cívica através da mídia, em permanente vigília na hora de meditar e dialogar com seu tempo, construindo um autêntico espaço de resistência com capacidade de ecoar globalmente. Sua vertente de criador de opinião pública fica patente nas páginas que seguem, somente uma metonímia em relação à incomensurável mina de materiais jornalísticos que Saramago gerou mundo afora.
Sempre alerta à hora de interagir com a História e com o contexto, disposto a subverter os grandes relatos e a se manifestar publicamente com a possibilidade de alcançar largas camadas da sociedade, compareceu diante da imprensa sem cansaço e com incomum generosidade, movido pela necessidade imperiosa de exprimir abertamente o que tinha a dizer, sem artifícios, inibições ou duplo linguajar. E essa ampla rede de comunicação que ele teceu serviu-lhe, por sua vez, de incentivo e pretexto para refletir consumada e minuciosamente, também com continuidade, tanto sobre a sua produção como sobre a deriva da sua época. Saramago não sentia preferência pelo diagnóstico bucólico, nem se deve rastrear seu pensamento no espaço acomodado do consenso. Em geral, ele procurava o desassossego, porque entendia as funções criativas como instrumentos a serviço de um projeto cívico e humanizador, cuja fase prévia exige o desmascaramento e a hostilidade crítica que combata o desvio,
o erro. Do mesmo modo que a escrita exige a perturbação do idioma coisificado e da realidade estabelecida mediante a incorporação de novas formas linguísticas e configurações mentais não codificadas até o momento da sua aparição, pensar significa desestabilizar-se interiormente e desestabilizar o discurso consolidado. 
Nesse sentido, o reiterado pessimismo que o caracteriza - provocado pelo malestar com que reagia ante a situação do mundo e a deriva dos seres humanos - deve ser entendido não como uma claudicação, mas como uma energia que questiona a ordem convencional, que penetra e faz cambalear a fachada da aparência e do status quo para modificar a perspectiva e incorporar outros ângulos, leituras e protagonistas. Antecipa, pois, uma sacudida que desencadeia novas reconfigurações, com as quais se procura avançar, melhorar, apesar do ceticismo que envolve sua visão de mundo, mas sem atenazá-la nem estrangulá-la. Como em seu momento Gramsci apontara, trata-se de tornar compatível o pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Solidamente ancorado numa arquitetura racional ilustrada, na coerência moral praticada ao longo da sua vida e na reinterpretação das ideias políticas comunistas - matizadas por certa heterodoxia -, Saramago soube alojar sua obra e suas reflexões no lugar do questionamento e da desconstrução do clichê. 
É este, enfim, um livro dos muitos possíveis que poderiam ser propostos sob a orientação que o anima e é, também, uma obra aberta, que não se esgota na literalidade que adota aqui, com a vontade, não obstante, de esboçar uma arquitetura ideológicosocial saramaguiana suficiente, de conformar uma identidade coerente. Os textos se apresentam organizados cronologicamente a partir de etiquetas ou núcleos temáticos que, em si, constituem conceitos recorrentes sobre os quais o escritor se pronunciou e dotou de sentido. Possuem, portanto, a virtualidade de atuar como articulações em torno das quais se desenvolve sua personalidade cultural, anotando alguns dos nódulos inabaláveis do seu mapa literário, intelectual e vital. Por sua vez, essas etiquetas conceituais se apresentam agrupadas em três grandes epígrafes que submergem na identidade de Saramago como pessoa, como escritor e como cidadão engajado. Naturalmente, os compartimentos não são estanques, nem no que concerne à
classificação das citações nem no que se refere à localização das entradas. O leitor talvez se inclinasse por outra ordenação, mas com toda certeza a ordem dos fatores não alteraria o produto final: a imagem fiel que projetam da personagem. Valorizadas com o horizonte que o transcurso dos anos oferece, estas declarações fragmentárias constituem hoje uma valiosa mina de informação e de apresentação de ideias e valores éticos, assim como uma estimulante prática de dissidência e de contestação pública. Nelas está Saramago, o testemunho de um livre-pensador no qual ecoam formidavelmente as tensões, anseios e fracassos de nosso tempo. Mas o mosaico oferecido neste livro também agrega um compêndio de sabedoria. Cada peça desse mosaico supõe um facho de luz e de sentido, configurando a imagem de uma personalidade brilhante e complexa, capaz de radiografar o ser humano e sua circunstância, de diagnosticar seus males e sugerir antídotos ou de confirmar decepções e frustrações. Saramago observa, analisa e tira conclusões poderosas formuladas mediante frases robustas e sugestivas. Essa coleção de agudezas, algumas vezes carregadas de matéria informativa, e outras, por seu fundo sentencioso - como corresponde à atitude grave e irônica com que o autor de Ensaio sobre a cegueira enfrentava a vida -, construídas como aforismos e máximas próprias da literatura paremiológica gnômica, tem o propósito de oferecer uma espécie de levantamento topográfico do pensamento e da visão de mundo do escritor, expresso através de suas próprias palavras, tal como foram recolhidas e publicadas pelas mass media, com o imediatismo, a espontaneidade e a expressividade característicos desse modo de comunicação escrita. Se preferir, o leitor também pode considerar o florilégio como um autorretrato sobre cujo traço é possível perceber os lineamentos maiores de sua fisionomia como romancista, pessoa e cidadão: uma crônica do seu imaginário profissional e vital. Do conjunto, desprende-se um tecido compacto e denso, alinhavado por uma invariável vontade de inteligência, de compreensão e de musculoso diálogo com a realidade,
entre cujos fios não será difícil reunir uma boa representação de perduráveis dicta memorabilia, nascidos da faculdade de aforista do prêmio Nobel português. Tchekhov, que se recusou a trabalhar com heróis e não cessou em seu afã de dessacralizar a literatura e o ofício do escritor - traços compartilhados por Saramago -, afirmou: “A originalidade de um autor se apoia não só em seu estilo, mas também em sua maneira de pensar”.
Fernando Gómez Aguilera

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