"Os Caminhos do amor: Dom João a Caim"
(...) "Ao representar as mulheres - simultaneamente idealizadas e realisticamente caracterizadas - como agentes ativos correspondentes ao princípio do desassossego na análise social marxista, Saramago recupera o conceito originário de «liberdade» para o entendimento de um «libertino» que não seja apenas um amador de mulheres mas também, por amor delas, um amante da humana liberdade a todos devida. Foi dessa perspetiva libertária que escreveu três poemas (não menos transpostamente autobiográficos do que várias passagens dos seus romances) na persona do arquetipal libertino Dom João. Os poemas intitulam-se «Orgulho de D. João no Inferno», «Lamento de D. João no Inferno» e «Sarcasmo de D. João no Inferno».
No primeiro, D. João celebra o seu modo de amar perenemente renovado «no sangue da mulher». No segundo, caracteriza a ausência física da mulher como sendo «a chama mais ardente» do inferno por ser um fingimento que o persegue. No terceiro, afirmando que «nem Deus nem o Diabo amaram nunca / desse amor que junta homem a mulher», conclui que só por isso «de pura inveja premeiam ou castigam». São poemas que recuperam a velha tradição do «inferno dos namorados», derivada de Dante e patente, por exemplo, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Mas, partindo de uma perspetiva autoral não-teológica, caracterizam o inferno como a carência da sexualidade que torna a humanidade humana, numa aliás característica transposição de metáforas religiosas para a significação laica que lhes subjaz. Saramago, leitor de Camões, também desejaria que o «amor ardente» vivido na terra pudesse perpetuar-se no «assento etéreo» (ou não assim tão etéreo) que houvesse depois da morte." (...)
(...) "Ao representar as mulheres - simultaneamente idealizadas e realisticamente caracterizadas - como agentes ativos correspondentes ao princípio do desassossego na análise social marxista, Saramago recupera o conceito originário de «liberdade» para o entendimento de um «libertino» que não seja apenas um amador de mulheres mas também, por amor delas, um amante da humana liberdade a todos devida. Foi dessa perspetiva libertária que escreveu três poemas (não menos transpostamente autobiográficos do que várias passagens dos seus romances) na persona do arquetipal libertino Dom João. Os poemas intitulam-se «Orgulho de D. João no Inferno», «Lamento de D. João no Inferno» e «Sarcasmo de D. João no Inferno».
"Orgulho de D. João no inferno"
"Bem sei que para sempre: onde caí
Não há perdão ou letra de resgate.
Mas fui, quando vivi, o sal da terra,
A flor azul, o cetro de escarlate.
Aqui, se condenado, não esqueci,
Nem morto estou sequer: torno a ser eu
No sangue da mulher que, acesa, pede
Aquele modo de amar que foi o meu."
in, "Os poemas possíveis"
A 1.ª edição foi publicada em 1966, pela Portugália Editora
Porto Editora, 1994, página 97
--*--
«Lamento de D. João no Inferno»
"Das ameaças do céu me não temi
Quando da terra as leis desafiei:
O lugar dos castigos é aqui,
Do céu nada conheço, nada sei.
O cilício do Diabo não me cinge,
Ném a mercê de Deus aqui me segue:
A chama mais ardente é a que finge
Este cheiro de mulher que me persegue."
in, "Os poemas possíveis"
A 1.ª edição foi publicada em 1966, pela Portugália Editora
Porto Editora, 1994, página 98
--*--
«Sarcasmo de D. João no Inferno»
"Contra mim, D. João, que pode o inferno,
Que pode o céu e todo o mais que houver?
Nem Deus nem o Diabo amaram nunca
Desse amor que junta o homem e a mulher:
De pura inveja premeiam ou castigam,
Acredite, no resto, quem quiser."
in, "Os poemas possíveis"
A 1.ª edição foi publicada em 1966, pela Portugália Editora
Porto Editora, 1994, página 99
(Nota de edição:
Os presentes versos são referidos pelo autor do texto,
e aqui junto para acompanhamento da leitura)
No primeiro, D. João celebra o seu modo de amar perenemente renovado «no sangue da mulher». No segundo, caracteriza a ausência física da mulher como sendo «a chama mais ardente» do inferno por ser um fingimento que o persegue. No terceiro, afirmando que «nem Deus nem o Diabo amaram nunca / desse amor que junta homem a mulher», conclui que só por isso «de pura inveja premeiam ou castigam». São poemas que recuperam a velha tradição do «inferno dos namorados», derivada de Dante e patente, por exemplo, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Mas, partindo de uma perspetiva autoral não-teológica, caracterizam o inferno como a carência da sexualidade que torna a humanidade humana, numa aliás característica transposição de metáforas religiosas para a significação laica que lhes subjaz. Saramago, leitor de Camões, também desejaria que o «amor ardente» vivido na terra pudesse perpetuar-se no «assento etéreo» (ou não assim tão etéreo) que houvesse depois da morte." (...)
de Helder Macedo
Texto "Os Caminhos do amor: Dom João a Caim"
Inserido na obra de Óscar Aranda
"Aprende, aprende o meu corpo. Sobre o amor na obra de José Saramago"
Fundação José Saramago, páginas 13 e 14
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