Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 14 de fevereiro de 2016

"In Nomine Dei" Centro Andaluz de Teatro - Sevilha (Dezembro de 2007) e recuperação de entrevista com Azio Corghi (Público 14/07/2001)

Vídeo de apresentação, pode ser visualizada via YouTube, aqui

Vídeo de apresentação da peça de teatro "In Nomine Dei", 
representada no Centro Andaluz de Teatro - Sevilha, em Dezembro de 2007.
Direcção de José Carlos Plaza, em colaboração com o Teatro Nacional Dona Maria II.


Crónica de Cristina Fernandes para o jornal "Público" (14/07/2001), pode ser consultada aqui, 
em https://www.publico.pt/noticias/jornal/o-som-das-letras-159817

"A ópera "Divara-Água e Sangue", baseada no drama teatral "In Nomine Dei", de José Saramago, estreia em Portugal. Razão para uma conversa com Azio Corghi, o compositor que se deixou fascinar pela forma como o escritor habita a História e que tentou recriar a sua obra através dos sons.

Dez anos depois de "Blimunda", a ópera de Azio Corghi (n. 1937) baseada no romance "Memorial do Convento", de José Saramago, o público português terá finalmente a oportunidade de conhecer a segunda colaboração entre o compositor italiano e o Nobel português. "Divara-Água e Sangue", a partir do drama teatral "In Nomine Dei" terá a sua primeira apresentação na próxima terça-feira, dia 17, no Teatro Camões, em Lisboa, numa nova encenação assinada por Christop Nel. A produção original teve a sua estreia no Städtische Bühnen de Münster em Outubro de 1993, por ocasião do aniversário dos 1200 anos daquela cidade alemã, e resultou da encomenda de uma obra musical apropriada à ocasião e que evocasse acontecimentos históricos, neste caso as sangrentas lutas entre protestantes, católicos e anabaptistas ocorridas nos inícios do século XVI. Depois deste projecto, a união artística entre Corghi e Saramago tem-se mantido em obras de menores dimensões, como a cantata "Lázaro", inspirada em "Evangelho Segundo Jesus Cristo", já estreada no São Carlos, ou "Sotto l'Ombra", para voz recitante e conjunto instrumental, que será apresentada na próxima edição italiana do festival Sete Sóis, Sete Luas, assinalando o aniversário de José Saramago, no dia 17 de Novembro. 

Qual foi o seu primeiro contacto com a obra de José Saramago?
Foi em 1984 através de "Memorial do Convento", pouco depois de este ter sido traduzido e publicado em Itália, com grande sucesso. Senti-me muito identificado com Saramago, com as suas ideias, a sua visão do mundo, a sua grande humanidade, a sua relação com a vida e com a história... A História com "H" maiúsculo e a história com "h" minúsculo. Depois da leitura, tive uma espécie de iluminação: a de também poder habitar a História através da música. Consegui contactar com Saramago e ele acedeu a que o livro fosse convertido num libreto, com Blimunda no centro da trama. Foi a nossa primeira colaboração. A obra estreou no Scala de Milão e foi depois apresentada em Lisboa.O projecto "Divara" nasceu nessa noite, em Lisboa...Exactamente. Nasceu de uma conversa entre mim, José Saramago, Mimma Guastoni (directora da editora Ricordi) e o maestro Will Humburg. Humburg tinha sido recentemente nomeado director da orquestra de Münster. Aproximavam-se as comemorações dos 1200 anos da cidade e a ideia de uma nova ópera para integrar o programa das comemorações surgiu de imediato. Poucos meses depois, Saramago e eu fomos convidados a ir a Münster para ver a cidade e o seu museu. Nessa ocasião, tivemos a ideia de encontrar um argumento de raízes históricas e optámos pelo sanguinário episódio da luta entre protestantes, cristãos e anabaptistas. Estávamos em 1991 e não tínhamos ainda consciência de como este tema era actual. Em 1993, quando a ópera foi estreada, tinha entretanto começado a guerra na ex-Jugoslávia. Creio que a actualidade do tema contribuiu muito para o sucesso de "Divara", que foi reposta em vários teatros: no Festival Ferrara Musica, em Catânia, novamente na Alemanha... Vê-la por fim chegar a Lisboa é uma grande honra - sobretudo poder ver a ópera numa nova produção, o que para um compositor contemporâneo é muito raro e difícil. Estou muito curioso por ver o trabalho de Christop Nel. Na conversa que tive com ele, fiquei fascinado com a sua leitura. É uma leitura mais psicológica, bastante próxima das teses de Saramago do ponto de vista dramatúrgico. 

Qual a razão da substituição do título original do livro, "In Nomine Dei", por "Divara"?
A rainha Divara é uma personagem com pouco peso na história de Münster, mas nós tornámo-la importante. Saramago substituiu o seu eu narrativo pelos olhos desta mulher que vê toda esta violência, os jogos de poder, a destruição, a guerra, a imposição de uma ideologia. Tal como em "Blimunda", tratava-se de habitar a História através de uma personagem feminina, que diz grandes verdades. É muito significativa a frase que ela profere antes de morrer: "Senhor, quando dirigirás directamente a palavra a nós mulheres em vez de falares através da boca dos profetas?" Esta ideia é também um ponto de referência em Saramago. É sempre uma personagem feminina que pode ver... Como Blimunda em "Memorial do Convento", ou Madalena em "Evangelho segundo Jesus Cristo". 

A escrita de Saramago sugeriu-lhe uma linguagem ou um estilo musical próprio?
Um dos aspectos que mais me fascinam em Saramago é a sua forma de habitar a História. Tentei também habitá-la com música, através da utilização de referências de outros tempos, de outros séculos. Uma das personagens que concebi - não sei se o encenador a irá manter...- é a do compositor Franz Liszt. Liszt usou um coral dos anabaptistas na sua monumental Fantasia para órgão ["Ad nos, ad salutarem undam"] e fez uma grande composição sobre o tema. Na minha ópera este tema insere-se em simultâneo com outros corais luteranos, mas também com referências irónicas a outras épocas, por exemplo, a "Don Giovanni" de Mozart, ou a "História do Soldado", de Stravinski. Utilizei estes temas como se fossem pedaços de História, tal como o faz Saramago. Por outro lado, a escrita de Saramago tem um fluir contínuo. Este sugeriu-me uma linguagem musical que fizesse uso de temas que se sobrepõem e que caracterizam as personagens. Não são propriamente "Leitmotivs" wagnerianos, mas estão em constante devir. É também uma linguagem que flui e que me permitiu afastar-me do tipo de ópera que escrevi antes, que tinha uma estrutura com formas fechadas, mais à italiana. No caso de "Divara", optei por um estilo de derivação expressionista, ligado a um teatro muito forte, no qual a palavra tem um papel determinante. 

Tanto em "Divara" como em "Blimunda", não existem apenas cantores, mas também actores. Que critério usou para seleccionar as personagens que falam e as personagens que cantam?
Depois da estreia, muitos jornais escreveram: "As mulheres cantam, os homens falam." Os homens estão todos absorvidos pelas lutas de poder e por isso falam. As mulheres estão submetidas à violência. Para reagir, para exprimir a sua solidariedade, conseguem comunicar mais e melhor através do canto. Divara é a personagem que canta sempre. Só fala no fim, quando está prestes a morrer. No final, enquanto os homens se massacram, ressurgem todas as mulheres que sofreram, e cantam em conjunto: a mulher que reincarna Giuditta - que pensa matar o bispo, mas que afinal é morta - , a última mulher de Jan Van Leiden que é assassinada pelo marido diante de todos, a mãe que viu morrer os filhos... É uma ópera feita de guerra, poder, violência. As mulheres conseguem encontrar uma força de vida que provém da sua solidariedade. Há também uma forte denúncia desta violência. Divara é a única que não renuncia a nenhuma das suas ideias. É morta e torturada, mas não renuncia. 

Qual o papel da electrónica em "Divara"?
É muito importante. Por um lado, permite a utilização de microfones de modo a escutar-se bem as vozes dos actores em qualquer espaço. Por outro, permite usar novos movimentos de som no espaço em conjunto com a orquestra. A sua concretização dá-se em conjunto com a direcção do maestro. É um processo muito complexo, que necessita de muitos técnicos e músicos para a sua realização. Cinco anos depois de Blimunda a tecnologia tinha avançado muito, sobretudo no domínio da electrónica ao vivo, com a criação de sequenciadores que podem funcionar bem com os gestos do maestro e que me permitiram um trabalho mais apurado. 

A sua obra musical combina a mais avançada tecnologia com as referências ao passado. Como compositor, como encara a dualidade entre tradição e inovação?
Vivemos na era da globalização, da comunicação veloz, num mundo que muitos apelidam de "pós-moderno". Tudo o que acontece pode ser imediatamente conhecido noutro lado. A nossa cultura é continuamente posta em confronto com outras culturas, com outras visões do mundo. Tal como Saramago na sua escrita, penso que a minha forma de abordar a linguagem musical está bastante longe daquilo que há anos se chamava "coerência linguística". Ou seja: está longe da convicção de que a evolução da linguagem musical resultava de uma série de mutações que tendiam para o novo, para o que nunca se tinha feito antes. Hoje, isso não é possível. Há muita coisa nova, mas a inovação nas questões de linguagem já não pode colocar-se nos mesmos moldes dos anos posteriores a Darmstadt. Um som novo não significa nada fora de um contexto linguístico ou fora do uso que se lhe quer dar para comunicar. Hoje fala-se em contaminação, em relações com outras culturas. Nos EUA, isto é possível porque as culturas coexistem, convivem umas com as outras. Na Europa, é muito diferente, temos fortes raízes culturais com as quais devemos fazer a nossa história. Há que encontrar soluções de comunicação também no campo da música. Foi por este motivo que escolhi o teatro musical, porque esta é já uma forma contaminada, com vários géneros artísticos dentro. Sou um homem do meu tempo, a minha ambição é comunicar."

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