José Saramago de visita a Mafra
29 de Setembro (de 1995)
Tinha prometido a mim mesmo não tornar a falar aqui da Câmara Municipal de Mafra e dos seus procedimentos «democráticos» e «culturais», mas hoje, rebuscando antigos papéis à procura de uma entrevista que em tempo dei e onde cria haver deixado certo pedacinho de ouro de eloquência, inesperadamente encontrei-me com as duas páginas e meia que li na biblioteca do Convento por ocasião de uma visita que lá fez o presidente da República e à qual fui convidado por motivos que então deveriam ter parecido óbvios a toda a gente. Foram essas páginas que, tempos depois, vieram a servir à vereadora da «Cultura» para denunciar que eu tinha insultado e caluniado o bom povo mafrense e a excelente vila de Mafra. Um vez que sem essas minhas palavras, efectivo corpo do delito, o processo não ficaria completo, aqui as deixo hoje, para edificação e entretenimento daqueles que, apesar de tudo, continuam a ler-me:
«Mafra começou por ser, para mim, um homem esfolado. Tinha sete ou oito anos quando meus pais me trouxeram aqui, de excursão com alguns vizinhos. O esfolado era, e continua a ser, aquele S. Bartolomeu que aí está dentro, segurando com a mão direita, enquanto o mármore durar, a pele arrancada. Lembro-me do comprazimento com que o guia, nessa altura, se alargava em minuciosas considerações sobre a maneira como o escultor reproduzira na pedra a triste flacidez da pele desgarrada e a mísera carne exposta. Como se tal fosse necessário para que não devesse esquecer essa imagem de pesadelo, vim a encontrar, mais tarde, no Museu de Arte Antiga, a que gostava de chamar das Janelas Verdes, o mesmo pobre santo esfolado, desta vez pela mão de um pintor, Luca Giordano, o Fa Presto.
«Muitos anos depois, lá pelos finais de 80 ou princípios de 81, estando de passagem por Mafra e contemplando uma vez mais estas arquitecturas, achei-me, sem saber porquê, a dizer: "Um dia, gostava de poder meter isto num romance." Foi assim que o Memorial nasceu.
«Entre o muito que então li - porque rapidamente me apercebi de que sabia muito menos da época do que começara por crer -, impressionou-me a célebre carta do abade de Tibães, em parte transcrita num livrinho de Camilo, e que mais tarde li na íntegra, na qual o dito abade, convidado a vir assistir à sagração da basílica, se escusou com duríssimas palavras, resumindo as suas razões naquilo que, em seu entender, significavam as cinco letras de Mafra: o M de mortos, o A de assados, o F de fundidos, o R de roubados, o A de arrastados. Assim via aquele abade beneditino os milhares de des-graçados que, mais ou menos de toda a terra portugue-sa, a esta obra vieram, forçados pela vontade do Senhor D. João V. Não quero, nem por sombras, insinuar que no desabafo desta indignação tão santa tenham pesado ciúmes da Ordem de S. Bento por causa do estupendo edifício de que iam passar a gozar-se os franciscanos...
(A passarola, que ficará imortalizada em o "Memorial do Convento")
«Tem o tempo de bom fazer-nos esquecer os sofrimentos, os nossos próprios, felizmente, mas sobretudo os alheios. Daí que não deva surpreender-nos que mesmo as melhores descrições do Monumento de Mafra abundem em informações sobre a quantidade de portas e janelas, de degraus de escada, número de sinos, peso das pedras principais e outras miudezas, e esqueçam os muitos mais de mil obreiros que, por acidente ou doença, aqui perderam a vida e deixaram os ossos. Afinal, não seria benéfico para a saúde do espírito andar todo o tempo com a infinita carga de mortos do passado às costas, como se, cada um deles e todos juntos, devessem ser os juízes das nossas faltas e os carcereiros das nossas liberdades.
«Esqueçamos pois os mortos. Porém, já é mau sinal, e gravíssima enfermidade do espírito, que tanto deseja-ríamos saudável, esquecer, com a facilidade com que está sucedendo entre nós, o que esses mortos fizeram. Ou, pior ainda, desprezá-lo. A satisfação de estar vivo e de criar durante o pouco tempo que por cá andamos torna-se em autocomplacência mesquinha se de caminho olvidamos ou maltratamos a herança multímoda de quem antes de nós viveu e criou, fossem eles os ignorados operários de Mafra ou o arquitecto que desenhou a obra. O respeito pelo património está, provavelmente, em relação directa com o dom - permito-me chamar-lhe assim - de recordar. A quem acreditar que ao governo e manutenção da vida há-de bastar a memória que cada um guarda de si próprio, podemos compará-lo a um charco de águas paradas. Há vida nesse charco, não se pode negar, mas é uma vida precária, porque nenhuma água, vinda de uma nascente a montante, o estará alimentando, e estará fechada em si mesma, essa vida frágil, porque dali não poderá sair nenhuma corrente que vá fecundar as terras adiante. Queiramo-lo ou não, somos só a memória que temos. Um povo que vai perdendo a sua memória própria, está morto e ainda não o sabe, e mais morto ainda se se prepara para adoptar, como suas, memórias que lhe são estranhas, tornando-as em estagnado, e também ele mortal, presente.
«O património, se assim posso exprimir-me, é um estado de espírito: vale o que o espírito valer, nem um centavo mais, nem um centavo menos. E o de Portugal, refiro-me ao espírito, claro está, parece valer bem pouco nos tempos que correm e para a gente que somos.»
Foi assim que eu caluniei e insultei o povo de Mafra. Desejo à senhora vereadora uma longa vida, pelo menos que o tempo lhe chegue para aprender a perceber o que ouve e compreender o que lê... "(...)
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 163 a 166
29 de Setembro de 1995
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