Respostas à revista Panorama a propósito da apresentação da ópera "Divara" no Festival de Ferrara Publicado nos "Cadernos de Lanzarote Diário III" (1995)
31 de Março (de 1995)
"A propósito da próxima representação de Divara no Festival de Ferrara, a revista italiana Panorama faz-me algumas perguntas, a saber:
a) Porquê, da parte de alguém que se afirma ateu, tão grande interesse pelas questões religiosas?;
b) Divara denuncia a intolerância religiosa no século XVI, ou é uma metáfora da actualidade?;
c) Quais são o maior merecimento e o maior perigo da fé?;
d) Se a fé religiosa comporta a conversão de quem não crê, pode um homem de fé ser realmente tolerante?;
e) Tendo em conta as ameaças do integralismo, é possível esperar que chegue um tempo de respeito pelas diferenças de raça, opinião e religião?;
f) Que pensa do antagonismo, sublinhado pelo papa na sua recente encíclica, entre «lei de Estado» e «lei moral»?;
g) Finalmente, em que crê?
Com a certeza de que me vou repetir, mas com a certeza igual de que a repetição nunca prejudicará a clareza, eis o que respondi:
a) A mim o que me surpreende é precisamente o pouco interesse que os ateus demonstram em geral pelas questões religiosas. Só porque um dia se declararam ateus, passaram a comportar-se como se a questão tivesse ficado definitivamente arrumada. O meu ponto de vista é diferente. O facto de eu negar a existência de Deus não faz com que a Igreja Católica desapareça, nem tem seguramente qualquer influência nas convicções (na fé, quero dizer) dos seus fiéis. A religião é um fenómeno exclusivamente humano, portanto é natural que provoque a curiosidade de um escritor, ainda que ateu. Além disso, há uma evidência que não deve ser esquecida: no que respeita à mentalidade, sou um cristão. Logo, escrevo sobre o que fez de mim a pessoa que sou.
b) Desgraçadamente, Divara não pode ser entendida como uma mera reconstituição histórica nem como uma metáfora. O estado do mundo mostra-nos como a evocação de manifestações de intolerância ocorridas há quatro séculos tem, afinal, uma flagrante actualidade. Realmente dá que pensar o pouco que aprendemos com a experiência.
c) O maior merecimento da fé, como ideologia que é, está na capacidade de fazer aproximar seres humanos uns dos outros. O seu maior perigo encontra-se no orgulho de considerar-se a si mesma como única e exclusiva verdade, e portanto ceder à vontade de poder, com todas as consequências.
d) A fé religiosa não comporta apenas a vontade de conversão de quem não crê, comporta também a vontade de conversão daqueles que seguem outra religião. Atitude, a meu ver, totalmente absurda. Se há Deus, há um só Deus. Logo, equivalem-se todos os modos de adorá-lo. Por isso mesmo, um crente, qualquer que fosse a sua religião, deveria ser um exemplo de tolerância. Não é assim, como todos os dias se vê. E ouso dizer que ninguém é mais tolerante que um ateu.
e) O integralismo não é só islâmico, a intolerância não é praticada apenas por aqueles que andam a matar em nome de Alá. Hoje mesmo, sem chegar aos crimes que mancham o seu passado, a Igreja Católica continua a exercer uma pressão abusiva sobre as consciências. Respeito pela diferença de raça, de opinião e religião não o prevejo para um futuro imediato, nem sequer próximo. Continuaremos a ser intolerantes porque não que-remos compreender que não basta ser tolerante. Enquanto formos incapazes de reconhecer a igualdade profunda de todos os seres humanos não sairemos da desastrosa situação em que nos encontramos.
f) A história da humanidade é um processo contínuo de transformação de valores. É verdade que o tempo que vivemos se caracteriza pelo desaparecimento de valores tradicionais, sem que apareçam, de uma forma clara, valores novos capazes de informar eticamente as sociedades. Porém, esse antagonismo apontado pelo papa não é de hoje, mas de sempre. Alguma vez, na História, a «lei de Estado» coincidiu com a «lei moral»? Ou será que o pensamento de João Paulo II se orienta agora no sentido duma «cristianização» dos Estados laicos? Se assim é, deveria começar talvez por «cristianizar» o seu próprio Vaticano.
g) Creio no direito à solidariedade e no dever de ser solidário. Creio que não há nenhuma incompatibilidade entre a firmeza dos valores próprios e o respeito pelos valores alheios. Somos todos feitos da mesma carne sofrente. Mas também creio que ainda nos falta muito para chegarmos a ser verdadeiramente humanos. Se o seremos alguma vez..."
In, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 80 a 83 (31 de Março de 1995)
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