Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 31 de março de 2016

Roteiro de leitura sobre a obra "Levantado do Chão"

Um roteiro não nos mostra o local físico, porém, 
nos orienta pelos caminhos a percorrer até ao seu destino.
São 68 pontos de interesse, onde se acompanham os caminhos percorridos pelas gerações da família "Mau-Tempo" entregues à vida escrava do campo, sob tortura dos latifundiários e a conivência da Igreja, aqui representada pelo padre Agamedes, e a vigilância da guarda e PIDE, 
criadas para proteger os grandes senhores das terras 
É a minha visão sobre a obra e a experiência de a tornar a ler. Apelidei-a de "Ensaio sobre a Penúria"
Rui Santos (3 a 30 de Março de 2016)

Edição da Porto Editora com titulo escrito por Mia Couto

Sinopse da obra, via Fundação José Saramago, aqui
"A transformação social. A contestação. Personagens em diálogos. As cruentas desigualdades sociais. Surgem as perguntas proibidas. Vai-se adquirindo consciência e espaço, para que tudo se levante do chão. Um livro composto por 34 capítulos. No 17.º está a tortura e a morte de Germano Santos Vidigal. Germano, o nome que significa irmão, o homem da lança. Apesar de vencido, o sacrifício da sua vida indica o caminho. «Já o encontraram. Levam-no dois guardas, para onde quer que nos voltemos não se vê outra coisa, levam-no da praça, à saída da porta do setor seis juntam-se mais dois, e agora parece mesmo de propósito, é tudo a subir, como se estivéssemos a ver uma fita sobre a vida de Cristo, lá em cima é o calvário, estes são os centuriões de bota rija e guerreiro suor, levam as lanças engatilhadas, está um calor de sufocar, alto.»As mulheres são também chamadas à primeira linha das decisões neste belo romance de Saramago. O diálogo monossilábico entre marido e mulher da família Mau-Tempo vai-se alterando. Interessante observar uma narrativa que vai da submissão ao sentido de libertação, através de gerações."

---- Roteiro ----

1. Descrição "a paisagem" e os "soldados" criados para trabalhar a terra

2. Debaixo de chuva chegam a São Cristóvão. Marido, mulher e filho de colo, carroça e burro, duas arcas. Chove muito até à entrada de São Cristóvão. Pára a carroça e entra na taberna. Anuncia-se. Domingos Mau-Tempo, sapateiro. Vem com a família de Lavre e acaba de recolher a chave ma posse do taberneiro. Sara da Conceição sua mulher e mãe de João Mau-Tempo este de misteriosos olhos azuis


3. Fará 5 filhos e o seu destino será a forca perto de Monte Lavre. Laureano Carranca sogro que não aprovou o casamento de sua filha Sara com Domingos

4. Lamberto Horques Alemão, tornado alcaide-mor de Monte Lavre por Dom João I. Daqui poderão remontar os olhos azuis

5. Segundo filho Anselmo Mau-Tempo, e a caminho para Torre Gadanha e de seguida para Landeira. Desassossego que Sara da Conceição se atormenta. Filhos pequenos e tanta mudança


6. Padre Agamedes será o novo padrinho de João Mau-Tempo e compadre de Domingos Mau-Tempo. Da bebida de ambos na sacristia ao desentendimento. Sai a família de Landeira

7. Chega a República por telégrafo de terra em terra. A escassez, a fome, o jornal pago pelos senhores. Os filhos feitos. O latifúndio que não mudou da monarquia para a republica. Lamberto Horques e a sensação dos ventos insurrectos que o comandante da guarda fará por travar. Carregará o tenente Contente e seu esquadrão sobre os camponeses e os incitadores rebeldes


8. trinta e três foram apanhados mas só cinco, os cabecilhas vão prestas contas a Lisboa no Limoeiro

9. Os trabalhadores do norte que vêem às terras dos do sul trabalhar por menos e assim baixar a jorna deste. O feitor que manda chamar a guarda para malhar nos animais do sul

10. Landeira, Santana do Mato, Tarrafeiro e Afeiteira, paragens e outras viagens de Domingos Mau-Tempo e Sara da Conceição. Chega o terceiro filho, Domingos como o pai. Canha. João Mau-Tempo numa ida à fonte quase que morre afogado. Porrada do pai e a aflição da mãe.

11. Domingos Mau-Tempo fugiu de casa. Pede Sara a seu pai perdão e que a venha buscar. A Monte Lavre retorna. Domingos Mau-Tempo volta com pedido de desculpas e leva a família para Cortiçadas de Monte Lavre. Daqui para Ciborro. João Mau-Tempo já tem idade para ir à escola.


12. O episódio das noites de terça feira do homem que morava em Monte do Curral da Légua perto de Pedra Grande. De animais e lendas de lobisomens.

13. Domingos Mau-Tempo e os seus maus tratos e a bebida. A família que sofre pela vida e pelos tratos do pai. Fome e miséria. Domingos Mau-Tempo desapareceu e os próximos dois anos será maltês

14. Laureano Carranca pai de Sara recebe dois netos. Um predilecto porque lhe poderá dar algum proveito, José Nabiça, o outro João Mau-Tempo, filho de relação com um homem agora maltês era tratado como empecilho. Foi para as arrancas com o tio Joaquim Carranca. Trabalho duro mesmo para os homens quanto mais para uma criança.

15. Chega a Monte Lavre o anúncio de guerra na Europa.


16. Poderá ter Domingos Mau-Tempo aparecido nas Cortiçadas. Sara da Conceição foge para casa de uns parentes perto de Ponte Cava. Vem Domingos Mau-Tempo mais tarde pedir satisfações a José Picanço que lhe tinha dado asilo. Confronto entre homens e Domingos Mau-Tempo que volta costas à luta e segue, volta pelas costas de Monte Lavre até decidir enforcar-se.

17. Anda João Mau-Tempo com dez anos a cavar, perto da herdade Pedra Grande, por esmola. Depois na herdade de Norberto com Gregório Lameirão seu capataz para dar porrada pronta nos desgraçados. A família de Norberto aspirava a ir a Paris mal acabasse a guerra pela Europa e os mais novos já deixavam as terras de Lavre para vir morar para Lisboa.

18. De vez em quando chegam notícias das guerras, a da Europa e as de África. Poucos sabem ler em Monte Lavre, a guerra aqui é da fome e sobrevivência. Do czar deposto na Rússia e dos primeiros aviões na guerra.

19. Sara da Conceição e seu irmão juntaram-se em família de tios e primos.


20. Trabalho no Monte de Berra Portas, trabalho duro e mais porrada e fome. Soldada de miséria.

21. Morrerá Joaquim Carranca, assim ficou assim se foi.

22. João Mau-Tempo cresce, rapaz novo de trabalhos forçados. O de olho azul, bom bailador o que ajuda nos namoricos. Foi para a cortiça em Salvaterra de Magos. Chega à maioridade com a ida às sortes. Pode a tropa abrir as portas para a polícia ou a guarda em Lisboa. Nem uma nem outra, livrou-se com muito desgosto do serviço militar. Tem vinte anos.

23. De Augusto Pintéu, se contará como morreu na travessia de um pego com a suas mulas e carro nos lados do Pego da Carriça.

24. Foi João Mau-Tempo trabalhar para o monte Pendão das Mulheres entre Monte Lavre e Monte de Berra Portas, lá se irá enamorar de Faustina. A fama da família Mau-Tempo não lhes ajudará a que a família dela aceite a nova vida.

25. Lamberto e o seu feitor, o chicote para meter na linha os que para si trabalham. O seu feitor será considerado como Judas por trair os seus a troco de pouco mais e quanto mais trabalho lhe ls consiga arrancar mais próximo e considerado será.

26. O povo escravo e seus ofensores, a podridão e a fome.
A penúria, sempre a penúria. Os fiados de mercearia e as contas, sempre as contas


27. Dos trabalhos da carvoaria no Infantado. A visita às primas de Lisboa que trabalham no patrão Alberto.

28. João Mau-Tempo e Faustina, casados e três filhos. António o mais velho. Restantes são filhas. António guarda em pequeno os porcos e vai aprendendo as artes do trabalho da terra.

29. Alguém entra em casa com papel para assinar,  diz que é a favor dos nacionalistas espanhóis e contra os comunistas, em Évora e com transporte. João Mau-Tempo não pode recusar, este tal Requinta é dos que vai contar e ainda se arrisca a ter problemas. Não sabendo muito de política há dias descobriu uns papeis debaixo de uma pedra e que ficou para trás para ler.

30. Foram a Évora. Foros, Montemor, Santa Sofia e São Matias, o tal Requinta do recado segue como apoio ao evento. A praça de touros está cheia. Os vivas a Portugal e a Salazar contra os comunistas. Pelos espanhóis dos campos de Castela e Andaluzia. Pela igreja contra o perigo vermelho e ateu.


31. A debulhadora, máquina monstruosa que se alimenta de trigo. Da espiga sai o cereal para um lado e a palha para outro. Junto à máquina estão cinco homens. um mais velho e quatro rapazes. A violência do trabalho. A máquina mal consegue ser alimentada por estes homens. MANUEL ESPADA não aguenta mais e larga a máquina. Os três restantes acompanham-o. O feitor Anacleto acorre ao local por causa do silêncio. Vai à guarda fazer queixa e acusa-os de serem grevistas. Da guarda o tenente Contente pega nos seus homens e seguem até Monte Lavre para apanhar os grevistas. Daqui seguirão a Montemor onde apanharam um raspanete e por sorte lhes é perdoada ida a Lisboa prestar contas. Ficaram uns tempos sem trabalho até que episódio se foi desvanecendo

32. Sara da Conceição vive agora com o filho e nora. João Mau-Tempo e Faustina mais as duas netas, Gracinda e Amélia. Tem o pesadelo do marido que se enforcou na oliveira,  Domingos Mau-Tempo. Todas as noites sai de casa durante algum tempo, talvez para dar alguma privacidade ao casal. Um dia será apanhada louca e fora de si. De Lisboa, os familiares arranjam um lar em Rilhafoles para a receber. Morreu passado tempo.


33. A homilia do padre Agamedes e o elogio aos latifundiários e guardas que protegem o povo dos vermelhos. A organização e os papéis distribuídos às escondidas. João Mau-Tempo que é poucas missas duvida das palavras do padre. SIGISMUNDO CANASTRO aparece no adro. Ele que distribui "papéis" pergunta a João Mau-Tempo o que achou da missa.

34. António Mau-Tempo fez amizade com Manuel Espada, tem treze anos e aprende várias artes e trabalhos do campo. De terra em terra, virá a trabalho perto do mar na zona de Setúbal.

35. Histórias de malteses, do Zé Gato e sua quadrilha. Histórias de carnes e porcos roubados

36. Em Monte Lavre é tempo de ceifar. Na Europa terminada a II Guerra Mundial os ventos são de paz. As guerras agora são outras. Os homens não vão para o campo por menos de 33 escudos por dia, os feitores e capatazes não têm ordens para pagar mais que os 25 do ano passado. A Guarda que se apronta e o sermão habitual do padre Agamedes. Na praça reúnem de um lado os que exigem 33 escudos, do outro os feitores que não avançam dos 25, e em casa alguns que já cederam a este valor por necessidade e por vergonha agora se escondem.

37. Na praça o clima é tenso, Sigismundo Canastro apela à resistência, João Mau-Tempo desanima com os poucos que ficaram a lutar por melhor jorna. Vinte e dois homens reúnem-se na ribeira em Ponte Cava. Dali seguiriam pelas herdades a lutar por melhores jornas e mais apoiantes para se lhes juntarem nesta luta. Sigismundo Canastro e Manuel Espada e outros vão repetindo as mesmas palavras. Mais dinheiro que os patrões muito bem podem pagar mais. Mais se juntam e campos que param.

38. Vai o cabo Tacabo a casa de Humberto. Existem grevistas à solta a desestabilizar as terras. Os 22 que se encontraram e seguiram para junto das herdades estão identificados. Sigismundo Canastro, Manuel Espada e João Mau-Tempo e todos os outros estão presos no posto da guarda. Murmuram palavras de confiança e aguardam. Foram enviados para Montemor. Todos juntos num pátio à espera de serem interrogados. João Mau-Tempo e outros três são os primeiros. Tenente Contente e outro homem não fardado sentados à secretária. Começa o interrogatório. Os "aves" e outros papéis, a propaganda,  organização e nomes dos cabecilhas. Os quatro sao colocados cada um na sua sala para escreverem num caderno tudo o que sabem. Cada um coloca o seu nome e esperam pela pancada. Mais tarde são juntos aos restantes. João Mau-Tempo recebe inesperada visita. Padre Agamedes que tenta demovê-lo a denunciar dois indivíduos já referenciados, João Mau-Tempo resiste ao interrogatório sem dizer palavra. Na volta para o pátio passa pelos dois que quiseram que ele denunciasse. Afinal já estavam presos e muito mal tratados. Ele tinha passado esta provação. Vieram algumas famílias saber dos presos, vem também Faustina e as filhas Gracinda e Amélia. Manuel Espada há-de reparar e cumprimentar a irmã de António Mau-Tempo, a Gracinda. Hão-de sair de Montemor enamorados.


39. A praça de touros de Montemor está cheia de homens. Uns na arena presos. Outros de espingardas a guardá-los junto às bancadas. Germano Santos Vidigal foi apanhado e é levado por dois guardas. Numa sala igual à que amanhã João Mau-Tempo e os outros três escolhidos para denunciar um e outro cabecilha, está Germano Santos Vidigal a ser espancado por dois torturadores, Escarro e Escarrilho. Cospe sangue e dentes partidos, sons e dor mas não abrirá boca para qualquer denúncia. O chão ensanguentado tem a companhia de formigas, quando a maior passar por Germano Santos Vidigal ele tombará morto. Os guardas encontrarão forma de simular o enforcamento do torturado para que conste na certidão de óbito.

40. Episódios de penúria e esmolas da dona Clemência às quartas e sábados, quando dá uns feijões e umas fatias de toucinho às crianças. O bem que sente fazer e a sua alma que rejuvenesce nestes dias. Não dar esmola todos os dias será o seu cilício e também para não habituar mal as crianças que devem sofrer desde cedo para saber o que custa a vida.

41. Episódios da criação de filhos. João Mau-Tempo e Faustina, os filhos, António que tem o hábito de andar longe nos trabalhos, Gracinda que espera poder ter dote para casar e já irá a saber ler pela cartilha de João de Deus, Manuel Espada que já vai passando da entrada da porta e Amélia a mais nova que vai vivendo

42. António Mau-Tempo em breve será recruta e por ano e meio estará na tropa.


43. Novembro posto. Sigismundo Canastro sai de casa antes casa antes do sol levantar, deixa Joana Canastro, o mesmo acontecerá a Faustina e filhas que irão ver João Mau-Tempo, agora com 42 anos, sair sem saber para onde. Terra Fria é o local de destino. O Silva vai de bicicleta, que a deixará escondida. Será o terceiro a chegar e percebe-se que tem papel importante no encontro. Virão Francisco Petinga e João dos Santos. São camaradas, não há nomes por segurança, tal como as boinas não serão colocadas de copa para baixo para os nomes possam ser vistos. O Silva entregará "papéis", desta vez João Mau-Tempo ajudará Sigismundo talvez por ser novo nestas andanças. Falam dos patrões e da fome.

44. Manuel Espada e Gracinda Mau-Tempo casaram, ele com vinte e sete anos ela com vinte. As palavras do padre Agamedes e o tropa António Mau-Tempo que conseguiu chegar mesmo nas últimas para assistir ao casamento da irmã.

45. A boda e seu cerimonial, pouco abastada mas com direito a discursos. Padre Agamedes que de palavras lembra os grevistas que salvou, o desagrado destas palavras que António Mau-Tempo fez calar na boca do padre. As histórias deste militar, o levantamento de rancho que levou o pelotão para a formatura e sob ameaça de metralhadoras queriam os oficiais obriga-los a comer a comida que nem os porcos comeriam. Depois foi a vez de Sigismundo Canastro contar outra história, a do cão Constante que ia com ele à caça da perdiz e lá ficou um dia

46. Vai o guarda José Calmedo a Monte Lavre buscar João Mau-Tempo para ser testemunha de um caso de roubo de uns molhos de grãos. Diligência a ser tratada rapidamente no posto da guarda. O inquiridor ser o cabo Tacabo que de pronto lhe dá a ordem de prisão vinda de Vendas Novas por ser comunista. Chegado ao posto de Vendas Novas sabe que irá para Lisboa. Uma noite em claro na cela, a viagem de comboio, o barco e as ruas da capital. Chegado ao edifício e colocado num último andar, passado um dia seguirá para a prisão de Caxias onde fica 25 dias. De volta tem o inspector Paveia à espera e começa a luta. Setenta e duas horas de estátua e torturas. Espancado sem mais não.


47. Na sala ao lado, outro com igual sorte. Pergunta o inspector Paveia se João Mau-Tempo tem algo a dizer. É remetido para o Aljube, enquanto descansa uns dias e recupera para outra carga de porrada. Está quase morto, passa 48 horas sem se mexer. Passaram 5 dias na solitária e depois passou para a parte comunitária. O tabaco que havendo para um há para todos.

48. Voltou ao Terreiro do Paço para prestar declarações, de volta ao Aljube e depois a Caxias. Virá Faustina Mau-Tempo de Monte Lavre e sua comadre a encaminhará até à prisão de Caxias. Estamos em Agosto. Falha a hora de visita e por muito pouco lhes concedem 5 minutos. João Mau-Tempo terá outras visitas, entre elas as filhas, Gracinda e Amélia, o filho António e o genro Manuel Espada .


49. Passam os meses e está esquecido na prisão sem saber se para sempre. Saberá que Albuquerque seu suposto delator estava preso, assim como Sigismundo Canastro. Faz 6 meses e chega o dia da libertação. É posto fora, rápido e assim sem mais nem menos. De noite fria é João Mau-Tempo um homem perdido e abandonado em Lisboa. Terá o episódio de um homem que lhe dará apoio e guarida por uma noite. Ricardo Reis e Ermelinda sua esposa abrem a porta de casa, uma sopa quente e vinho, dormirá na cama do casal.

50. Chegará João Mau-Tempo a Monte Lavre e de seguida com a filha Amélia seguirão para Elvas. Serão 16 semanas nos arrozais, as febres e bicho de toda a ordem, será quase um campo de morte. Manuel Espada estará na cortiça que bem maneja o machado.

51. Os episódios dos senhores que iam aos tiros e tinham as suas ordens um lacaio que subia e descia montes a carregar um bidon que serviria de alvo, ou dos senhores que entregavam as terras para serem cultivadas e por se situarem perto de cursos de água retinham a porção das terras que dariam acesso à água para aceder ao regadio. E outras histórias de guardas que servem para proteger os latifúndios dos miseráveis esfomeados, ou daquela vez que Adalberto em passeio viu alguém nas suas terras no pastoreio de seiscentas ovelha e foi depressa chamar o cabo Tacabo ao que se veio a descobrir que o pastor era seu empregado, vergonha que se disfarçou com umas doações.


52. António Mau-Tempo e as histórias de espingardas e caçadas aos coelhos, sem mulher ou filhos seguiu para França onde o trabalho dava muito mais dinheiro e fama de rico para quem lá ia, mas que desconhecia a escravatura e o racismo para com estes estrangeiros que procuravam os trabalhos da apanha da beterraba. Voltará aos trabalhos por Monte Lavre, andará no campo com Manuel Espada e sua irmã Gracinda, grávida agora. Seguirá António Mau-Tempo para outro trabalho findo este. Manuel Espada e Gracinda Mau-Tempo ficarão. Ela terá uma filha, Maria Adelaide e sua mãe Faustina e Belisária uma velha aparadeira ajudarão ao parto.
O avô João Mau-Tempo, depois o tio António Mau-Tempo e só por fim, Manuel Espada que chega de longe e logo se despede para chegar antes do sol levantar, são as principais visitas de Maria Adelaide, menina de olhos azuis herdados do bisavô ou de histórias com quinhentos anos.

53. Tempo de eleições e o general Humberto Delgado que tinha ameaçado demitir Salazar, que outras artes a não permitiram, levou a que no latifúndio de Norberto a campanha da seara fosse mandada ficar em terra sem dar trabalho a estes homens. Foi lição para aprenderem a não apoiar quem não deviam. Outra vez e sempre o padre Agamedes apoiava estes senhores feitores, guardas e latifundiários. O povo esse serve para sofrer e ser castigado, sempre porque sim para não ficar mal acostumado. O povo se junta e vê perder a temporada de trabalho.


54. Sigismundo Canastro conversa com João Mau-Tempo e António Mau-Tempo e depois com Manuel Espada. Aprontam ida à câmara de Montemor pedir trabalho em manifestação. Vão-se juntando de vários lugares estas gentes para clamar o trabalho de pouco dinheiro. Do alto do castelo as famílias abastadas assistem aos manifestantes. A guarda, a pé ou a cavalo, com espingardas ou espada preparam-se para carregar forte e feio. Teme-se o pior.

55. Lançam os cavalos e suas parelhas montadas investindo contra os manifestantes, são lançadas pedras mas pouca mossa farão. De espada em riste, acertando em fio de lâmina ou de chapada, o vinte e três de Junho ficará marcado na história deste país. Os que estão a pé carregam a rajadas de metralhadora. Duas para o ar e a terceira para matar. Três corpos no chão, um que se levanta agarrado ao braço, outro que rasteja e o terceiro que não se mexe. Foi abatido, José Adelino dos Santos, disseram que era ali de Montemor. Das muralhas do castelo, os senhores das terras gritam para os matar sem piedade.


56. Chegará à beira do cadáver de José Adelino dos Santos o doutor Cordo. O formalismo do óbito tem de ser cumprido. Aparecerá Leandro Leandres dando nota a que o morto não estará morto aos olhos dos superiores interesses e que deverá ir para Lisboa com a maior urgência. Não cede o doutor Cordo que trata de feridos e doentes, acompanhar mortos não será de sua competência. Leandro Leandres responde à competência médica com a ameaça do regime. Dos que vieram de Monte Lavre ficou António Mau-Tempo em Montemor, por muito que lhe tivessem pedido tinha um episódio para cumprir, o das pedras que caíram nessa noite no telhado e janelas do posto da guarda. Passadas as primeiras horas da noite lá chegou a casa.

57. O latifúndio como um mar de fome e gente que não conhece outra coisa. De Peniche alguém que saltou o muro e houve fuga do forte prisional.  E houve também revoltas no navio Santa Maria. Dona Clemência muito se preocupa, o seu sossego que nunca teve acabou e o padre Agamedes que a oiça. Também a guerra em África e os pretos que se rebelam. Também se perdem as Índias de Goa, Damão e Diu. Dona Clemência preocupada com o que será destes novos ventos que cheiram a comunistas. Ano novo será ano bom nas palavras de dona Clemência. Continuam a chegar notícias de actos revoltosos, agora em Beja o quartel de infantaria três foi assaltado.

58. O homem como máquina parida e tratada o quanto baste para dar produção no latifúndio, e quando gasta ou avariada será substituída por outra. Assim ficarão os cemitérios cheios de velhos de pouca idade mas mortos pelo trabalho. Correm pelos latifúndios uma voz inconformada exigindo em surdina as 8 horas de trabalho. Os patrões revoltados contra estes mandriões operários do campo que querem trabalhar só 8 horas, dormir outras tantas e ainda ficar com 8 de sobra para gastarem o tempo a beber nas tabernas e a dar porrada nas mulheres e filhos.
A guarda foi reforçada em todos os lugares e agora aprumam a caça aos comunistas e aos papéis e "aves" deixados de propósito ou de armadilha para apanhar mais uns curiosos.

59. Pelos montes e descampados, nas casas de uns e de outros se reúnem e discutem o que fazer. As oito horas de trabalho, os quarenta escudos da jorna, e alguém que fala da dignidade humana, do episódio do pai e filho que foram apanhar bolotas por nada mais terem que comer e a guarda que os apanhou, a humilhação que aqueles guardas obrigaram a que pai e filho brigassem caso contrário apanhariam mais porrada no posto. Cheira subversão à guarda e ela aí está em peso.

60. Chega o dia de apresentar revolução no latifúndio. Nesse dia não foi de sol a sol, chegaram às oito horas e pegaram. Na herdade onde está Manuel Espada é ele que fala. Norberto ameaça que ali é trabalhar enquanto há sol. Todos voltarão à praça onde estão reunidos como que num plenário já previamente agendado. Será o cabo Tacabo que vem à frente questionar os grevistas. Quantos dias sem receber? Quantos dias resistem os latifúndios? E os fiados e atrasados quem e como se pagam?


61. João Mau-Tempo esteve dois meses no hospital em Montemor, veio para casa morrer. Morre com a família perto. Não está a Maria da Conceição que ainda serve os patrões em Lisboa, o irmão Anselmo que está para o norte e não se sabe dele, a filha Amélia que serve em Montemor e muito ajudo quando o pai esteve no hospital. Estão todos os que deveriam estar e não poderia faltar a neta Maria Adelaide, tem dezassete anos e se despedirá do seu avô que morreu nesta noite junto dos seus aos setenta e sete.

62. Maria Adelaide está na vinha em Pegões, já tem dezanove anos, para lá foi com oa vizinhos Geraldos para estes trabalhos. Vai a tarde passando e alguém fala de tropas em Lisboa. Maria Adelaide está alerta mas ali no meio do nada, tal como a notícia chegou assim se foi em pouca informação. Ainda no mês anterior se tinha ouvido falar de coisa parecida aquando da rebelião das Caldas da Rainha. Acabou a tarde e a revolução em Lisboa não chegou a Pegões. Noite alta no acampamento onde estes camponeses se juntam já se sabem as novidades do que se passa em Lisboa. Acabou o que se sabe e não se sabe ainda o que aí vem. Os Geraldos e Maria Adelaide seguem no dia seguinte para Monte Lavre. Apanhada a camioneta que por sorte trás lugares livres. Muito do que se fala ainda é especulação, caiu o Tomás e o Marcelo e agora duvidam que junta seja nome de novo governo.

63. Entram em Vendas Novas e há festa. A tropa está na rua em parada. Maria Adelaide sente uma luz nova e parece que acorda e percebe o que o pai, Manuel Espada fazia em ausências não justificadas e também sem necessidade de as explicar à família. Segredos e cumplicidades. Estão por estas horas muito preocupados os senhores latifundiários, está também a guarda que não servia para cuidar do povo, e o padre Agamedes que nem sim nem não dirá algo sobre a revolução antes que superiormente alguém dê uma directiva.



64. Vem aí o primeiro de Maio, livre e às claras sem problemas com a guarda. Passou o Abril e Maio em tempos de estranha liberdade. Mas os temores são sempre os mesmos e não desapareceram, não há trabalho e os mesmos latifundiários que outrora tornaram escravos esta gente, continuam sorrateiramente a pôr e dispor. As searas estão no chão e com as primeiras chuvas teriam que fazer as sementeiras. O que havia em condições de colher foi destruído pelos senhores. E a fome continua.

65. Quem tem continua a poder, seja enviando os dinheiros para o estrangeiro ou escondendo nos automóveis que os levam para depósito seguro. As fronteiras fecham agora os olhos ao contrabando

66. Vem o primeiro inverno depois de Abril igual a tantos outros. A mesma fome e miséria. Começam as terras a serem ocupadas pelos trabalhadores. Os horrores que sente dona Clemência porque estas gentes estão a profanar as terras dos seus antepassados.


67. Foram-se juntando. Manuel Espada e Sigismundo Canastro, António Mau-Tempo e outros mais em assembleia e decidiram nomear Manuel Espada porta voz, andaram duas semanas a avaliar a situação pelas herdades e deitaram comunicado para que todos os trabalhadores se juntassem no dia seguinte na herdade das Mantas. De todo o lado chegam máquinas e tractores com atrelados, uns a pé e outros montados nestas máquinas. Da herdade das Mantas seguem para outras, engrossam a coluna mais e mais. É a revolução no campo. São feitas as ocupações e respectivos inventários das existências e materiais. Esta gente não rouba e a guarda não sai do quartel.

68. Neste dia levantado, seguem os vivos e também os mortos. Todos os que a fome neste Alentejo sofreram. E também o cão Constante.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Cátedra José Saramago da Universidade de Vigo candidata-se ao título de cátedra da Unesco - Jornal de Letras (30/03/2016)

Imagem do artigo em questão


O artigo pode ser consultado no Jornal de Letras (30/03/2016), n.º 1187, na página 2 do destacável "Camões"

"Cátedra José Saramago de Vigo candidata-se à chancela da UNESCO"

A Cátedra José Saramago da Universidade de Vigo, instituída em 2015 na sequência de uma iniciativa conjunta daquele estabelecimento de ensino superior da Galiza, Espanha, e da Fundação José Saramago, vai candidatar-se ao título de cátedra da UNESCO. 
Essa é a intenção que consta de um protocolo a ser assinado entre a Universidade de Vigo, a Fundação José Saramago, enquanto fundadores da I Cátedra Internacional José Saramago, e a Fundação Eugénio de Almeida e o Camões, 1.P, enquanto membros honorários deste projeto, na medida em que prestam o seu contributo financeiro para a realização de projetos e atividades da Cátedra. 
Enquanto financiador, o Camões, I.P. deverá contribuir anualmente com uma verba de 10 mil euros. Os objetivos da Cátedra - cuja criação é fruto de uma proposta dos professores Burghard Baltrusch e Carlos Nogueira, segundo refere o sítio da fundação sedeada na Casa dos Bicos, em Lisboa - são, em termos gerais, o desenvolvimento de projetos de divulgação social e de transferência do conhecimento; a divulgação e promoção da figura e da obra de José Saramago, através de cursos, conferências, simpósios ou seminários; o apoio a docentes, investigadores e estudantes; o intercâmbio de publicações, trabalhos de investigação e materiais académicos que resultem, de projetos culturais e literários de interesse comum; a mobilidade de estudantes, docentes e investigadores; e a promoção da igualdade de oportunidades entre mulheres e homens. 
Segundo Filipa Soares, Coordenadora do Ensino Português (rede EPE) em Espanha, a Cátedra Internacional José Saramago atuará em três âmbitos. O primeiro, na área da docência - «pretende-se promover a criação de módulos didáticos dedicados ao estudo da vida e obra» do Prémio Nobel da Literatura -, bem como «incrementar a inclusão de textos sobre o autor» nas licenciaturas, mestrados, doutoramentos da Universidade de Vigo. A segunda área, científica, visa «aumentar a produção em matéria de investigação (trabalhos de fim de carreira e teses de doutoramento)» e ainda «organizar jornadas e congressos centrados na obra de Saramago, que darão origem a publicações em vários formatos». A terceira área, fora do âmbito universitário, prevê a «divulgação dos resultados científicos obtidos em bibliotecas, livrarias de Espanha e Portugal, e a organização de mostras teatrais, recitais literários e ou musicais». 
Apesar do âmbito universitário da Cátedra, pretende-se que os resultados obtidos se repercutam em todo o sistema educativa e na sociedade civil, em geral, nomeadamente no ensino da língua portuguesa e na difusão da cultura em língua portuguesa. 
A qualificação da Cátedra para concorrer à chancela da UNESCO prende-se com o facto de se pretender integrar «no programa da ONU para promover a educação, a ciência, a cultura e a comunicação entre nações com o intuito de fomentar uma cultura de paz, mediante o intercâmbio de conhecimentos (nas diferentes áreas: humanísticos e científicos), por forma a estabelecer um verdadeiro diálogo entre culturas.» 

domingo, 27 de março de 2016

"Aventuras de un novelista tonal" Crónica de Martín de Ambrosio no "Página 12 - Radar Libros" (11/05/2003)

A crónica pode ser recuperada, aqui
em http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/libros/10-564-2003-05-11.html

"Aventuras de un novelista tonal" 
Crónica de Martín de Ambrosio no "Página 12 - Radar Libros" (11/05/2003)

"Lunes, en el Colón. Martes, en la Facultad de Medicina. Miércoles, en el Malba. Jueves, Ezeiza en viaje a San Pablo y a repetir la historia (que antes tuvo a Chile como escenario)... Qué difícil es la vida de un premio Nobel. Es que la visita del portugués José Saramago a Buenos Aires tuvo una agenda cargada y con actos de inusitada repercusión para alguien que no es una estrella de rock, ni tiene un programa en televisión. Con semejante sucesión, por momentos abrumadora, de charlas, conferencias, homenajes, entrevistas y presentaciones (para no hablar de las cenas, igualmente protocolares, con la intelligentsia local) es natural que un escritor tenga un libreto más o menos armado de definiciones, y hasta de anécdotas, de tal modo que lograr algún clima interesante o innovarse es todo un desafío. Pero hubo momentos en que Saramago lo logró y aquí se intentará contar algo de ellos: 

Acto 1 
En un Teatro Colón lleno y con gente apretándose en los pasillos, el autor de El año de la muerte de Ricardo Reis sostuvo un diálogo con el periodista Jorge Halperín. Naturalmente, uno de los puntos que está obligado a tratar un autor en gira es su última obra, en este caso El hombre duplicado (Alfaguara). “Lo que se plantea allí no es tanto la pregunta sobre quién es usted o quién soy yo, que puede explicarse más o menos fácilmente contando nuestra vida, todas las cosas que hemos hecho. La pregunta de la novela tiene que ver con el qué: qué es usted, qué soy yo. Y eso, por mucha interpretación de los sueños que hagamos —incluso en un país como Argentina donde los psicoanalistas son como taumaturgos— no se alcanza fácilmente; detrás de lo que parece, las cosas son.” La pregunta sobre la identidad queda en pie en la novela, ya que Saramago confiesa que no tiene respuestas a tal interrogante. “En el fondo, toda la literatura es la indicación del otro y la indicación del yo; a pesar de que —y aquí los psicoanalistas sí estarán de acuerdo— el Yo no existe, pero mejor pasemos a la siguiente pregunta.”
Y la pregunta siguiente tuvo que ver con otra de las especialidades del autor de Memorial del convento: el análisis político mundial. “La civilización actual se agotó, los cambios tecnológicos tienen un vértigo que finalmente los terminará aniquilando, el Iluminismo está por llegar al final. Umberto Eco decía que está por aparecer un nuevo ser humano. Algunos genios —como Kafka en El proceso o George Orwell en 1984— también advirtieron de esas amenazas, que ahora estamos viendo cumplidas.” Seguidamente, Saramago asumió la misma función oracular que le elogió a Kafka y Orwell —no disparatadamente, es cierto— y dijo que Estados Unidos se prepara para enfrentarse con China: “Es algo inevitable, como vienen dadas las cosas, será dentro de 30, 40 o 50 años, pero va a terminar sucediendo”.

Acto 2 
Menos multitudinario fue el acto en el que recibió el doctorado Honoris Causa de la UBA, de manos del rector Jaim Etcheverry (“este diploma lleva una Universidad adentro”), con un Aula Magna de Medicina completa a medias. A pesar de tomar con cierto cariño la distinción de la Universidad, y revolear el diploma por sobre su cabeza como si fuese un trofeo de tenis, Saramago empezó su discurso de agradecimiento diciendo que “éste el doctorado Honoris Causa número 24 o 25 que me entregan”. Pero —finalmente, inevitablemente— se ocupó de decir que esta distinción tenía algo de especial “por las circunstancias políticas y sociales del país” y que “gracias a esto me siento un poco más argentino, y eso me ilusiona”. Luego, ante un público que lo aplaudió largamente de pie, elautor de La caverna tuvo una especie de diálogo con Jaim Etcheverry, en el que respondió como pudo preguntas del estilo “¿cuál es la misión de la universidad?” y evocó aquella vez en que De la Rúa, cuando era jefe de Gobierno porteño, le entregó la condecoración de ciudadano ilustre “y yo hice un discurso absolutamente subversivo”. 
En el Aula Magna había periodistas de cadenas televisivas de Miami interesados únicamente en registrar nuevas condenas hacia el gobierno de Fidel, por parte de quien se ha considerado “un comunista hormonal”.

Acto 3 
Inevitablemente (valía 100 pesos el ticket) el encuentro en el Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires tuvo un público más selecto, Ernesto Sabato incluido. Sin embargo, el ámbito del Malba fue el más propicio para que el portugués pudiera lucirse. La escueta participación de Osvaldo Quiroga le permitió a Saramago contar sus preferencias y gustos como lector. Si bien no quiso referirse a “influencias” citó a cinco escritores que sí forman parte de su “familia de espíritu”: Gogol, Kafka, Montaigne, Cervantes y el padre Antonio Vieyra (un jesuita del siglo XVII, “barroco, conceptual, cultista, que sólo dejó escritos cartas y sermones, pero que es el punto más alto del idioma portugués”). A cada uno de esos autores les dedicó un párrafo. Sobre Kafka dijo: “Extraña vida, extraña obra; todo lo dejó incompleto, pero escribió los libros necesarios para que ahora podamos entender qué nos está pasando. Y eso sin ser un profeta, apenas si fue un funcionario bancario, con problemas con su padre, su madre, con inconvenientes para relacionarse. Finalmente a todos, como a Gregorio Samsa, nos llega un día en que sentimos que somos tratados como coleópteros”.
Respecto de Cervantes se permitió dejar una “tesis”: “Hay algo en lo que Cervantes, o el narrador, nos obliga a pensar y eso es la locura del Quijote. Yo pienso, he aquí mi tesis, que Alonso Quijano no se volvió loco, lo que pasa es que estaba harto de su vida. Como dijo Rimbaud, la vida auténtica estaba en otro lado; de eso se dio cuenta un día Alonso Quijano. Y lo único que podía hacer en esa sociedad era hacerse pasar por loco y hacer cosas de loco para encontrar la vida auténtica”. Como buena tesis, para persuadir Saramago necesita razones: “Vean el episodio de los molinos de viento. Nadie, por más loco que estuviera, podría jamás creer que son gigantes... además, cuando va a morir, el Quijote se convierte otra vez en Alonso Quijano porque cuando Sancho Panza lo invita a cabalgar el Quijote le dice `se acabaron las correrías de caballero’. Ahí se ve que es consciente de que ya no tiene tiempo de volver a hacerse el loco. Yo creo que nadie puede volver a la cordura tres minutos antes de morir”.

sexta-feira, 25 de março de 2016

"A noite das rotativas em marcha" de Miguel Koleff - Publicado na edição #46 da Blimunda (Masço 2016)

Artigo publicado na edição #46 da revista digital "Blimunda"

A presente edição, tal como todas as anteriores, podem ser descarregadas, aqui

"A noite das rotativas em marcha" de Miguel Koleff

"A nossa vida é uma resistência contínua à debilidade,à renúncia, 
ao conformismo, e até, por vezes, às pequenas e grandes traições."
Manuel Torres

Há títulos que desde o momento em que nascem traduzem a inquietude com que foram forjados. O caso da primeira obra teatral de José Saramago é um deles. A Noite  a que se refere corresponde à noite da Revolução dos Cravos e prolonga-se até ao amanhecer do 25 de abril de 1974, que confirma a ação militar. Os capitães tomaram o controlo da cidade e esse controlo vai-se estendendo a todo o país. Após quarenta anos de ditadura, respiram-se em Portugal ares de renovação e de democracia.

Saramago antecipa neste texto um dos temas que será o leit motiv das sua produções ficcionais a partir dos anos 80: a impugnação do poder. E realiza-o do modo denodado a que nos acostumou. A cena decorre na redação de um jornal afeto ao regime e sujeito à censura vigente. É tarde e há que fechar o editorial quando começa a propagar-se o rumor de uma suposta rebelião nas ruas. Estas notícias não oficiais, que ao longo da trama se vão ratificando, põem em evidência uma transformação social e política que modificará as estruturas e que exigirá uma tomada de posição tanto do jornal como dos jornalistas e técnicos envolvidos.

O desenvolvimento sequencial parte desta premissa e determina as circunstâncias em função dos comportamentos assumidos. Esboça-se rapidamente um quadro dos cooptados ao salazarismo e de uma minoria discordante que reage com satisfação às possibilidades que se avizinham. Há que dizer, no entanto, que o mais patético de tudo não radica nesta espécie de submissão ostensiva ao poder político por parte da direção mas às formas de assegurar a sua perdurabilidade mesmo se o resultado for discrepante das convicções defendidas. Nenhuma diferença quanto ao axioma de Groucho Marx e das ideologias que se negoceiam em função das necessidades [«Esta é a minha ideologia; se não te agrada, tenho outra».]

Como durante várias horas se desconhece o carácter do golpe militar – uma ação de-fensiva da direita? Um contragolpe da esquerda? –, o conjunto de ações que desarti-cula a rotina torna-se tão nebuloso como os procedimentos que se querem legitimar e sustentar a qualquer preço. Não devemos deixar de pensar – neste sentido – que esse jornal em particular representa metonimicamente os meios de comunicação dissemina-dos pelo país.

(Fotografia da peça de teatro, baseada na obra "A Noite" - Cenário da redacção"

É óbvio que nesta obra teatral o autor português reelabora parte da sua biografia, já que durante muitos anos praticou o jornalismo tendo sido, inclusivamente, diretor-adjunto do Diário de Notícias. Não seria absurdo supor que os episódios relatados sejam de algum modo fiéis à sua experiência, tal como se explicita no editorial pensado para o dia seguinte, no qual refuta – de forma verídica – um argumento pessoal utilizado durante o seu trabalho jornalístico (1). Contudo, a intenção de Saramago excede o revisionismo histórico porque questiona o exercício responsável da notícia.

eixo desta discussão fica patente quando Abílio Valadares, o chefe de redação, reflete sobre o papel que caracteriza a atividade profissional e pretende alijar qualquer intencionalidade em seu nome. «Defendo a objetividade, a neutralidade da imprensa, não estou comprometido com o poder» (Saramago, 1979, p. 91). Finge dar lições sobre a conduta correta em vez de agir de acordo com as circunstâncias imprevisíveis: se aderir ou negar-se aos acontecimentos pensando no público cativo e na repercussão futura que o jornal terá em relação à cidadania quando se consolidarem os movimentos revolucionários.

A posição dos tipógrafos liderados por Manuel Torres – o grupo do Torres, como é conhecido – é mais enfática ainda ao colocar como princípio orientador não a consideração pública num contexto próximo mas a ação cívica que corresponde ao momento atual. Um personagem feminino – profundamente saramaguiano – que faz parte desta equipa, define-o com precisão: «A nossa primeira e única obrigação é ir averiguar o que se passa e dizer. Não temos outro dever.» (P. 107) Trata-se de Cláudia, a estagiária, que de personagem de segundo plano passa a figura incontestável do drama a partir da sua intervenção.

(1). Numa nota de rodapé, Saramago assinala que o artigo de fundo elaborado pela personagem ficcionada é transcrito do jornal fascista Época e que surgiu em 26 de abril de 1973. O autor acha-se no direito de o citar já que o signatário responde a um artigo seu publicado no Diário de Lisboa, onde exercia ao tempo as funções de editor. (M. K.)

Para lá do posicionamento político que os personagens assumem em relação aos acontecimen-tos históricos de que são protagonistas, o que torna vigente o texto de Saramago é o olhar pelo interior das corporações e seu funcionamento, o modo como se manipula a informação e a sua correlação política: a responsabilidade que cabe ao jornalismo de não se transformar em utensílio de conspiração.

No final da obra introduz a oportunidade revolucionária, ao referir Walter Benjamin (Benjamin, Teses sobre a História e Outros Fragmentos, 2009, p. 29) [Tese XVII]. O falseamento de perspetivas do governo ditatorial dá lugar à impugnação frontal das cumplicidades arrivistas. Cabe ao jornal reciclar-se internamente e assumir a sua participação ativa no concertamento dos eventos democráticos. Isto pressupõe mudanças radicais que dialetizam o olhar e o tornam apto ao desafio de uma sã dissidência. A revolução está nas ruas mas troveja nas rotativas que se põem ao seu serviço. Não se trata apenas de registá-la com imparcialidade mas de encarná-la como movimento cívico que exige compromisso."

Miguel Koleff na apresentação de um dos seus variados trabalhos

Informação via "Revista de Estudos Saramaguianos", aqui

"MIGUEL ALBERTO KOLEFF"
"É Doutor em Letras Modernas. Especialista em Literaturas Lusófonas. Desenvolve atividades académicas como professor titular em Literatura na Faculdade de Línguas da Universidade Nacional de Córdoba (Argentina). Especialista na obra de José Saramago, exerceu a Direção Honorária da Cátedra Livre José Saramago na Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade Católica de Córdoba desde sua criação em 2008 até 2012. Decano da mesma instituição entre 2006 e 2011. Foi coordenador da área de Letras do Centro de Investigações da Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade Nacional de Córdoba entre 2005 e 2006. É autor de La Caverna de José Saramago e um dos organizadores da coleção Apuntes Saramaguianos, coleção que já vai no sétimo volume editado e do Diccionario de personajes saramaguianos. Atualmente desempenha a Codiretoria do Mestrado em Linguagens e Interculturalidade da Faculdade de Línguas (Universidade Nacional de Córdoba) e coordena a Cátedra Livre José Saramago Extra-Muros em coparticipação com o Centro Cultural Espanha-Córdoba a partir de acordo com a Fundação José Saramago."


quinta-feira, 24 de março de 2016

"Relevé de Terre ou Les yeux bleus de l'Espoir" por Maria Leiria (Conferência em Paris sobre o "Levantado do Chão")

Agradecimento especial "Bibliothèque Gulbenkian Paris",
que prontamente disponibilizou informação sobre a conferência que aqui se apresenta. 

Maria Leiria e Graciete Besse em plena conferência

"Relevé de Terre ou Les yeux bleus de l'Espoir", de José Saramago
Conférence qui a eu lieu le lundi 21 mars 2016 à 18h dans le cadre des Rencontres de la Lusophonie.
Conférence par Maria Leiria (Fundação José Saramago)
Organisée par Graciete Besse (Université Paris Sorbonne)

Através do link, é possível aceder ao conteúdo áudio, aqui
https://soundcloud.com/gulbenkian-paris/maria-leiria-releve-de-terre-ou-les-yeux-bleus-de-lespoir

quarta-feira, 23 de março de 2016

Revista Blimunda - edição #46 - Março 2016

Capa da edição #46 - Março de 2016

Pode ser descarregada e consultada, aqui

Sinopse da edição via Fundação José Saramago
"«Todos faremos jornais um dia»
A Noite 

A Blimunda de março abre com um editorial dedicado à realidade do jornalismo num momento de grande exigência para as sociedades democráticas na Europa e no Mundo.

Nas restantes páginas da revista, uma conversa com Ivo M. Ferreira, realizador do filme Cartas da Guerra, sobre os desafios de retratar a realidade da guerra colonial portuguesa.

Prosseguindo a publicação de galerias fotográficas com os participantes da edição de 2015 dos Dias do Desassossego, os atores Carla Bolito e Marcelo Urgeghe, que com Miguel Loureiro e Paulo Pinto realizaram as leituras de «Alma Inquieta», são os convidados desta edição de março, trazendo consigo os livros que os desassossegam.

Na secção infantil e juvenil, uma entrevista com a ilustradora Elena Odriozola, vencedora do Prémio Nacional de Ilustração de Espanha em 2015, que no passado mês de fevereiro orientou com Alejandro García Schnetzer um atelier de ilustração e edição na Fundação José Saramago, e uma nova rubrica de nome «Visita Guiada», que durante os próximos meses levará os leitores da Blimunda a conhecer os espaços físicos de diferentes editoras infantis e juvenis portuguesas. A abrir, a Pato Lógico, que este ano está nomeada para o Prémio BOP, de melhor editora europeia na Feira do Livro Infantil de Bolonha.

Por fim, na secção Saramaguiana publica-se um artigo de Miguel Koleff sobre a peça de teatro A Noite, de José Saramago, e o texto da peça de teatro Levantei-me do chão, de Carlos Marques e do coletivo Algures, que depois de percorrer os espaços do romance Lavantado do Chão no concelho de Montemor-o-Novo chegará no final do mês a Lisboa, primeiro ao Auditório da FJS e depois ao Teatro Meridional.

Como sempre, as restantes secções da revista trazem-nos um olhar sobre a atualidade da cultura pelo mundo.

Boas leituras, até abril!"

terça-feira, 22 de março de 2016

Trabalhos do campo e dos camponeses mencionados em "Levantado do Chão" e a alusão ao "Cante Alentejano"

Interpretação do Cante Alentejano e sons descritos nos trabalhos dos camponeses em "Levantado do Chão", exibidos na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, 
local iconográfico base para a construção do "Memorial do Convento".

Aqui a representação e união simbólica das duas obras

Vídeo pode ser assistido, via Youtube, aqui

(...) Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram tidos alguns e outros agora se acrescentam para ilustra-ao geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são, ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, menear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear, abrir as covatas para estrume ou bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar, enfornar, terrear, empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros, e se é obra para homem ou para mulher e porquê. (...)

in, "Levantado do Chão"
Caminho, páginas 89 e 90 

Osvaldo Quiroga entrevista José Saramago in, "El Cronista" - Buenos Aires, Argentina (11/09/1998)

"Enquanto falamos aqui, há milhares de milhões de pessoas que estão morrendo de fome. 
Como podemos aceitar que o homem não seja um ser solidário, 
que não pense mais na espécie e tenha se convertido num monstro de egoísmo e ambição 
que despreza milhares de pessoas que não têm nada? 
Não se faz nada para resolver problemas essenciais. 
Para milhões de pessoas no mundo, 
nenhum dos problemas essenciais da vida está resolvido, 
enquanto nos divertimos enviando um aparelhinho a Marte…"

Osvaldo Quiroga entrevista José Saramago
in, "El Cronista" - Buenos Aires, Argentina (11/09/1998)

segunda-feira, 21 de março de 2016

Conferência "Relevé de Terre ou Les yeux bleus de l'Espoir" sobre a obra "Levantado do Chão" - com Maria Leiria e Graciete Besse - Université Paris Sorbonne

Conferência sobre a obra "Levantado do Chão"

"Conférence "Relevé de Terre ou Les yeux bleus de l'Espoir"
Lundi 21 mars 2016 à 18h

Par Maria Leiria (Fundação José Saramago)
Organisée par Graciete Besse (Université Paris Sorbonne)."

Publicado aqui,

Maria Leiria e Graciete Besse em plena conferência

Capas das edições da obra "Levantado do Chão"

Edição francesa "Relevé de terre" 
Editions du Seuil - traduzida por "Geneviève Leibrich" (09/2012)


"Un día en el ‘cole’ con Saramago" no Colégio Aljarafe em Mairena Del Aljarafe (Sevilla) - Março de 2004

A reportagem pode ser recuperada e consultada, aqui
em http://www.colegioaljarafe.es/jose-saramago/

Colegio Aljarafe S.C.A.Ctra - Mairena Del Aljarafe (Sevilla)

Publicado em "Cuadernos de Pedagogía" (n.º 333 / Março de 2004)

Un día en el ‘cole’ con Saramago

"El Colegio Aljarafe lleva el debate del “No a la guerra” más allá. El centenario de Gandhi, Irak, judíos y palestinos… fueron temas trabajados al igual que en otros muchos centros educativos. Pero lo peculiar de este centro sevillano es el haber podido contar con la presencia del premio Nobel de literatura José Saramago, conocido por su posición en defensa de la paz e implicación con los desfavorecidos. Saramago quedó realmente impresionado con el trabajo que habían hecho los chavales para preparar su visita."

Antonio Feria (pedagogo de la Junta de Andalicía) y Colectivo Colegio Aljarafe. Sobre un texto elaborado por Manuel Fernández Alonso y Blanca de Pablos Candón

“Una mañana nuestra profesora entró en clase y nos comunicó que nos iba a visitar un gran escritor llamado José Saramago. Cuando me enteré, no me ilusioné y me quedé confuso, mientras me decía a mí mismo: ¿Quién será este señor que nos va a visitar? Supongo que será importante porque, si no, Domi no nos habría dicho nada. Nos pusimos a hacer un trabajo sobre su vida, obra, opiniones… y fuimos conociéndolo. Hablamos de sus opiniones sobre Israel, Chiapas, la burocracia… Me impresioné porque un escritor tan bueno, tan humano, que ha ganado el premio Nobel de Literatura, venga a este colegio, con lo grande que es el mundo” (Extracto de una carta colectiva de 4º de Primaria)


Un clavel rojo en la mano de cada niño y niña del colegio, y la música del “Grandola, Vila morena”, sirven para recibirlo y emocionarlo. Saramago cambiaba besos por aplausos, y los más pequeños, desde la Puerta de los Cipreses, le regalaban dibujos sobre su obra “La flor más grande del mundo”. Él, asombrado, se los enseñaba a su esposa, la española Pilar del Río, “mira, mira esto”, y ella le acariciaba cariñosamente la mano, dándole fuerzas para evitar lo que José Saramago luego reconocería ante el joven auditorio: “No puedo arriesgarme a dar el triste espectáculo de que veáis a un señor mayor llorando”.

La llegada del Nobel al Colegio Aljarafe de la localidad sevillana de Mairena del Aljarafe es el magnífico colofón al trabajo del alumnado del centro. Desde Infantil hasta Bachillerato, conocieron la obra y al personaje, y seleccionaron las preguntas que le iban a realizar cuando lo tuvieran delante. Dibujos, ilustraciones de sus obras, retratos de Saramago por los pequeños. Relatos y ensayos sobre sus escritos e incluso la continuación de los mismos aportándoles un destino, así como debates sobre su pensamiento e ideas realizados por los mayores. Todo el centro se volcó en preparar esta importante visita.

¿Qué se le puede regalar, decir, preguntar… a Saramago?
Ya desde el año pasado teníamos la ilusión de un encuentro con José Saramago aprovechando alguno de los viajes que él realiza a Sevilla. Sabíamos que en nuestro Colegio podría encontrarse con un Proyecto abierto, expresivo, libre, sensible a los acontecimientos sociales, “un lugar en el que se cree en el futuro”, utilizando sus palabras. Teníamos la ilusión de que viera lo que somos, de que nos contagiara de sus valores. Así que al comienzo del curso, planificamos como un objetivo del Centro invitarlo; el proyecto era ambicioso y bastante posible, pero no seguro del todo.

Aun con esta incertidumbre, el equipo directivo decidió arriesgarse a poner en marcha un Proyecto que culminaría en un encuentro pero que también, si finalmente se malograba, nos enriquecería con el acercamiento a la persona de Saramago trabajando su obra.

Así, reunimos a los distintos equipos de coordinación y el punto de partida fue: ¿Qué se le puede regalar, decir, preguntar a Saramago?. Encontramos el motivo inmediatamente: serían nuestros niños los que después de conocer a Saramago le regalarían sus preguntas, dudas… Ése sería nuestro homenaje.

Desde el ETCP, a los ciclos y con el Departamento de Lengua implicado se fue decidiendo qué trabajaría cada uno de los equipos. Se había discutido la idea de realizar un periódico mural que aglutinara la expresión plástica y literaria del colegio; el primer número sería dedicado a Saramago. En éste se integrará una muestra de cada uno de los ciclos (podrá ser plástica o escrita), de los padres y de los profesores. El encargado de coordinar dicho trabajo será el propio Departamento de Lengua.

El claustro del Colegio Aljarafe cuando se pone en marcha es arrasador,  si creemos en algo, nos movilizamos con eficacia y convertimos la improvisación en creatividad, somos capaces de integrar emociones, sentimientos, esfuerzos y terminar emocionando a un Nobel. Todo un colegio desde Infantil de 3 años hasta Bachillerato trabajará en un proyecto común.


¿Seremos capaces de ilusionar a nuestro alumnado con Saramago?
Sí, vamos a ser capaces. Para lo que es fundamental que el profesorado implicado tenga la posibilidad de poder crear libremente y ponga toda su imaginación y entusiasmo al servicio de esta idea. Las reuniones se suceden, van saliendo proyectos, muchos más incluso de los que podemos poner en práctica y ese entusiasmo es contagiado a los alumnos, que a su vez, en un efecto dialéctico lo devuelven  a sus profesores, admirados de la fantasía y creatividad que muestran en sus dibujos, textos… no es difícil imaginar que los padres se vean también implicados en sus casas cuando sus hijos les hacen preguntas, les piden datos, les leen, les obligan a pensar sobre un escritor portugués, vecino nuestro, que además reside en Lanzarote y al que muchos habrán leído y otros, quizá lo hagan por primera vez para estar a la altura del entusiasmo de su hijo.

También es justo decir que en todo esto nos damos cuenta de que muchas personas externas al colegio, pero ligadas a él por simpatía con el Proyecto Pedagógico y con su propia historia, ponen su esfuerzo y recursos generosamente al servicio de la dirección para que el proyecto sea un éxito. En todo esto no podemos dejar de mencionar a Pilar del Río, no sólo como compañera de Saramago, sino como persona convencida de que Saramago y los niños tienen una vinculación especial, contribuyendo así a aumentar el entusiasmo  de todos.

El colectivo no escatima esfuerzo, todos los sectores se implican, tanto dentro como fuera del Colegio, se abren los contactos con Pilar del Río, y por supuesto, no se limitan esfuerzos para que la visita de Saramago sea inolvidable.


¿Tendremos tiempo suficiente para realizar tantas actividades?
Sin duda es un reto y siempre crea angustia porque no se pueden desatender tampoco otras tareas. La solución la encontramos fundiendo el Proyecto de Saramago en las programaciones y en las actividades pedagógicas que se realizan en el aula a lo largo de todo un curso escolar fecundando así el día a día, aprovechando cada momento, cada área, cada actividad. No queríamos que fuera algo añadido al trabajo pedagógico externamente, sino que corriera a la vez.

En Infantil y Primaria se trabajó el personaje y su obra. Los más pequeños escucharon “La Isla desconocida” y “La flor más grande del mundo”. Ejercicios de comprensión, vocabulario, dibujos… En las asambleas de Infantil se comenta su biografía. En Primaria, “descubrieron” al Nobel y elaboraron cartas para Saramago preguntándole por su vida, su obra, sus aficiones…. Los mensajes de paz, justicia e igualdad centraban todo el trabajo.

En el Primer Ciclo de Primaria se leyó, comentó e ilustró el libro “La flor más grande del mundo” y salen tan motivados que se ponen a escribir un cuento a Saramago, para que ‘él aprenda a escribir cuentos para niños’. El Segundo Ciclo acepta la oferta del propio autor y rescriben la historia, para lo cual se dividió el libro por capítulos, analizando los elementos de cada uno; ejercitando vocabulario (hay que buscar expresiones bonitas, porque a José le gustan mucho las palabras) se escribe cada capítulo partiendo del resumen inicial, pudiendo ampliar, modificar… los elementos que rodean el eje central. Se realizaba de forma espaciada, un capítulo por semana, buscando puntos de unión y desarrollo.

Tercer Ciclo de Primaria trabajó de forma interdisciplinar, utilizando el trabajo en equipos para dar formato de cómic a los relatos. Tras presentar los proyectos, con el guión, planificación, distribución de las viñetas… cada miembro del equipo realiza sus funciones según preferencias y habilidades.

Para los distintos niveles de Secundaria, al Departamento de Lengua le surgen dudas  acerca de cómo presentar la obra del escritor en aulas donde los estudiantes de secundaria manifiestan con frecuencia su apatía ante el texto literario. Se decide partir de una base común: la sensibilización  que en ese momento están viviendo nuestros alumnos por la guerra contra Irak. Aprovechamos que los alumnos de 1º de secundaria presentan sus trabajos sobre el conflicto bélico, trabajo organizado por el Departamento de Sociales, en los distintos cursos, para que  recopilen información en la prensa sobre las  manifestaciones que el Nobel hace casi a diario en los periódicos. Este es el punto de partida, los alumnos traen recortes de periódicos que leemos y comentamos, se dan cuenta, antes de conocer nada sobre su obra, que es un escritor comprometido.

Proponemos como lectura para toda secundaria “El cuento de la isla desconocida”. La primera obra que leen de este autor tiene plena aceptación: les parece muy original, e incluso descifran las metáforas ocultas en la narración, llegando a descubrir su poesía. Tras la lectura, inician las actividades de expresión escrita. El resultado ha sido muy positivo, ya que algunos han conseguido mimetizar de una forma inconsciente el estilo, las estructuras sintácticas, el vocabulario e incluso las peculiaridades ortográficas. El proceso es muy interesante, ya que escriben el final antes de conocer el verdadero. Muchos de ellos, en su mayoría niñas, llegan a la conclusión de que la isla desconocida es un símbolo que representa al amor, pero en algunas vertientes un amor imposible, en otras, aflorando ahí la adolescencia, un amor sensual.

A raíz de esta lectura, los alumnos de tercero reflexionan sobre el destino, tema fundamental en la obra de Saramago, escriben sobre él y hacen un debate sobre si el destino está escrito o se hace día a día. Los de segundo, aprovechando que están estudiando el lenguaje periodístico, hacen por grupos distintos reportajes, ilustraciones, y un grupo elabora una entrevista al escritor. En primero se leen e ilustran relatos. Y en cuarto se realizan trabajos en grupos, abarcando distintos aspectos de la vida y la obra del autor, hacen un comentario crítico sobre el cuento de la isla desconocida, referencias sobre sus novelas más destacadas y ahondan en el tema del  compromiso político y social en su obra.

Lógicamente los alumnos de Bachillerato tienen más elementos de juicio que los pequeños y pueden valorar también con más criterios los aspectos formales o técnicos de las novelas del autor portugués, los temas de fondo que constituyen el objeto de sus reflexiones e incluso solidarizarse con las causas defendidas por él.

A pesar de lo condicionado que está el bachillerato por una programación esclava del examen de selectividad, y reducida actualmente la Literatura a un apéndice meramente academicista, los alumnos de este nivel se ilusionan con la posibilidad de tener un encuentro con un escritor que ellos ya conocen, del que saben que ha recibido el premio Nobel y que despierta en ellos una simpatía previa, sin tener muy claro en ocasiones el porqué. Los tutores les aportan datos de la biografía de Saramago, de sus actuaciones solidarias con los desfavorecidos de la historia, les leen el discurso de Estocolmo y poco a poco esa simpatía espontánea se convierte en verdadero interés por su obra que leen ahora con mayor provecho: se discute en clase sobre derechos humanos, sobre las democracias actuales, sobre el tercer mundo, sobre ricos y pobres, pero también sobre el amor, la incomunicación entre los seres humanos, sobre el laberinto de la soledad, sobre los seres insignificantes que pasan desapercibidos, sobre la identidad…y es que están leyendo a José Saramago, que es de lo que se trata: El hombre duplicado, Todos los nombres, El Evangelio según Jesucristo, Ensayo sobre la ceguera, El cuento de la isla desconocida, Las maletas del viajero…son algunas de las novelas que leen.


¿Se cumplirán las expectativas? ¿Lo defraudaremos?
Poner ante 1.300 niños a un escritor que habla con dificultad el español, que es una persona mayor, que habla de cosas serias… ¿funcionará?. Nosotros hacemos lo que creemos que va a ser determinante: que los niños conozcan a Saramago, lo lean, que se sientan protagonistas, que el acto sea suyo, en primer plano, creándoles la responsabilidad y el respeto que esto conlleva. El resto, nuestras dudas, por tanto las disipará la espontaneidad de los niños y la sabiduría de José.

“La felicidad no es siempre la alegría, ni la emoción, ni incluso la lágrima. Quiero decir que muy pocas veces en mi vida, mi larga vida, he tenido una emoción tan fuerte como la que vosotros me habéis provocado. Los mayores deberíamos ir por la vida llevando de la mano al niño que hemos sido”. Estas palabras inician una relación entre el autor y su auditorio, que va tornando en un ejercicio dialéctico de comunicación amable, íntima, entre Saramago y las niñas y niños del Aljarafe sevillano.

Preguntas y respuestas, lecturas de cuentos y comentarios, un texto en portugués y mucha emoción. La visita de Saramago es productiva, el trabajo previo realizado tiene sus frutos y el auditorio se transforma en protagonista del acto:

“¿Porqué no sabes escribir libros para niños?”, increpan los más pequeños. “La verdad es que yo no sé por qué no sé escribir libros para niños, se necesita una sensibilidad que yo no tengo. La escuela a mí no me ha enseñado a escribir cuentos para niños. Yo aprendí a escribir en el pueblo, en el hogar, con la vieja haciendo la comida. Mi abuelo me contaba cuentos. Es la mejor herencia que tengo. Sigo siendo nieto, él ya ha muerto, pero yo sigo siendo su nieto”

Este sentimiento explica las palabras de bienvenida de Blanca de Pablos, codirectora del colegio: “Un hombre que dice deber lo mejor de cuanto sabe a su abuelo, que no sabía leer ni escribir. La grandeza de José Saramago, entre otras muchas virtudes, y entre ellas la de ser uno de los mejores escritores del mundo, es su generosidad, tal vez a eso se refiera cuando asegura haber aprendido tanto del abuelo que hablaba con los árboles. La generosidad que le ha llevado a los rincones donde hay una voz sin voz que necesita su voz, desde Ramalá a Chiapas, desde el Alentejo a Mairena del Aljarafe, a esta comunidad escolar, a este colegio.”

Otro chiquillo le pregunta por los autores que le han influido y Saramago le comenta que “todo influye en todo, unos escritores en otros, los padres en los hijos e incluso los hijos en los padres. Es imposible haber leído a Cervantes y que no te quede nada de él.”

Uno tras otro, niños y niñas, adolescentes y mayores, van cuestionando la realidad en la que viven: “¿Por qué no se ha resuelto la guerra entre Palestina e Israel?”. Plantean interrogantes literarios: “¿Cuál de tus libros te gusta más y cuál menos?”. Leen narraciones elaboradas por ellos mismos que consiguen arrancar del Nobel un “muy bien, muy bien. Dos historias tan distintas pero igual de bien estructuradas. Muy bien la literatura en la escuela”. Ahondan en la persona: “¿Por qué vives en Lanzarote?”. Leen textos en portugués que consiguen aflorar una sonrisa en los labios de José, “no es del todo correcto, pero vale la intención, lo has leído muy bien”.

Finalmente le consiguen arrancar, entre el regocijo infantil y juvenil generalizado, la frase que más caló en el auditorio: “El mundo es una mierda, pero los niños del Colegio Aljarafe van a empezar una nueva era de dignidad y lucha por la vida.”

“Ya sé que usted piensa que la literatura no es un compromiso, que no sirve para transformar la sociedad, que en las manos de un autor no se encuentra el futuro de la humanidad, sin embargo, déjenos que le admiremos por los libros que escribe y que le queramos un poco por el coraje y la decencia con los que usted está contribuyendo a mejorar a los seres humanos. En los tiempos en los que vivimos, personas como usted son necesarias.” (Palabras de despedida del Presidente de la Sociedad Cooperativa Colegio Aljarafe, Manuel Fernández)


¿Qué opinan de este día profesorado, alumnado y Saramago?
Estamos bastante satisfechos con el resultado de estas actividades, que han ayudado a presentar en las aulas a un autor “aparentemente difícil” ante un alumnado que ha demostrado tener sensibilidad para apreciarlo y entenderlo. Con estos trabajos hemos conseguido entusiasmar a los chicos y chicas hasta el punto que el premio Nobel de Literatura, José Saramago, ya les resulta entrañable y familiar. Quizás el truco está en que ha sido la primera vez que han profundizado en un autor vivo y que, para colmo, han podido conocer. Nosotros, los profesores, hemos tenido la oportunidad de enseñar la literatura de otra forma, también nos hemos entusiasmado.

El miércoles nos llamaron para sentarnos y esperar a José Saramago… (relata Fernando, de los pequeños de Primaria)…Y sonó una música, y… ahí está Saramago. Salieron niños de muchos cursos. José habló mucho de la paz, habló del cole y muchas cosas más, y ganó un Nobel”. Su amigo Jesús, que lo vio por la tele porque estaba enfermo, decía que le gustó la decoración de su colegio, lleno de flores. Y también Sergio estaba impresionado y nervioso, pero cuando “leí la carta escrita por la clase para José Saramago no me dio vergüenza leerla, e incluso me gustó”

La opinión de Saramago queda, para siempre, recogida en el libro de firmas del colegio: “No tengo palabras para expresar los sentimientos que ha hecho nacer en mí este día. La emoción a veces no tiene nada más que el silencio. El día que he vivido aquí con mi amiga, con Pilar, quedará para siempre en mis más felices recuerdos. Gracias, muchas gracias.”


Vanguardia y tradición de la Renovación Pedagógica en el Colegio Aljarafe

Decir en una breve síntesis lo que es el Colegio Aljarafe, nos llevaría a recorrer todo el esfuerzo de grupos de enseñantes por renovar la Escuela. Hace ya más de 30 años que algunos hombres y mujeres se pusieron manos a la obra, dispuestos a ser el alma de una Escuela en la que el niño pudiera desplegar libremente “las alas del espíritu” de que hablaba Giner de los Ríos.

Queremos una Escuela abierta a la Vida en todas sus manifestaciones. Una Escuela que se deje interpelar por la realidad que le rodea. Escuela activa, que supere la enseñanza pasiva y acrítica, sustituyendo la competitividad espontánea o inducida socialmente, por la colaboración y el enriquecimiento mutuos.

Una Escuela para la Libertad donde los protagonistas sean todos los miembros de la Comunidad Escolar. Escuela que eduque en el respeto a la libertad de los demás y en el autocontrol consciente y responsable. Escuela libre ella misma, donde el ambiente se caracterice por la espontaneidad. la colaboración y la alegría, y donde todos tengan la posibilidad real de conocer, opinar y decidir.

Una Escuela que eduque para y por la Responsabilidad. La formación de personas activas y diferenciadas con el reconocimiento de la riqueza del pluralismo supone la aceptación de una convivencia donde la libertad de cada persona limita con los intereses de la colectividad.

Hemos intentado llevar a la práctica todo eso. Hemos establecido unas relaciones alumno-profesor que rompían los moldes clásicos, una convivencia en las clases y fuera de ellas. Y es por ello por lo que es necesario insistir en lo que decía D. Ramón Carande: “Educación, educación… para que haya democracia.”


Saramago. El mensajero de la PAZ

“He visto el horror. No el que hemos observado en lugares como Bosnia o Argelia. No. Éste es otro tipo de horror. Estuve en Acteal, en el mismo lugar de la matanza… escuchando a los supervivientes. Es difícil expresar lo que se siente cuando uno sabe que se encuentra con los pies sobre el mismo lugar donde hace tres meses asesinaron a estas personas. [...] El pueblo mexicano no puede quedarse parado, dejando que los gobernantes lo decidan todo, hay que bajar a la calle… no estoy pidiendo un levantamiento sino simplemente que las conciencias se manifiesten… estoy pidiendo una insurrección moral, desarmada, étnica…” (Fragmentos del artículo ‘Todos somos Chiapas’ publicado en El Mundo)

Si algo caracteriza a José Saramago es su compromiso humano. El manifiesto de Madrid en contra de la Guerra de Irak, su posicionamiento a favor del pueblo palestino… siempre cuenta con un momento para los más desfavorecidos. La paz es su sentimiento y no entiende la sinrazón de quienes tienen el poder y lo utilizan contra otras personas.

En el brindis de la entrega de los premios Nobel de 1998, Saramago recordó los cincuenta años de la Declaración de los Derechos Humanos. “Las injusticias se multiplican, las desigualdades se agravan, la ignorancia crece, la miseria se expande. La misma esquizofrénica humanidad capaz de enviar instrumentos a un planeta para estudiar la composición de las rocas, asiste indiferente a la muerte de millones de personas a causa del hambre. Se llega más fácilmente a Marte que a nuestros semejantes.”

Pero junto a la dureza del pensador, la sensibilidad del poeta se manifiesta en las palabras extraídas de “El evangelio según Jesucristo” que Pilar del Río llevaba bordadas en el vestido que lució en la cena oficial de la entrega del Nobel: “Miraré a tu sombra si no quisieras que te mire. Quiero estar donde estará mi sombra, si allí estuvieran tus ojos”