Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 5 de março de 2016

"Se podes ler, lê. Se leste, reflecte" - Ana Saramago Matos (24/06/2010)

"Se podes ler, lê. Se leste, reflecte" 
Ana Saramago Matos
24 de Junho de 2010

O texto pode ser consultado, aqui
em http://www.publico.pt/temas/jornal/ana-saramago-matos-netase-podes-ler-le--se-leste-reflecte-19696462

"Não creio que o mais importante seja, neste contexto, falar da minha vida familiar e pessoal com o meu avô, igual a tantas outras relações avô e neta desde que o mundo é mundo. Os avôs representam essa coisa maravilhosa que é a sabedoria. Tive a sorte de ter tido um avô sábio que, nas entrelinhas dos nossos encontros, me ia ensinando e transmitindo os seus valores, as suas preocupações, as suas convicções. A lê-lo e a escutá-lo, aprendi o que é a disciplina e o trabalho. Como ele me disse há muitos anos, a propósito do ofício de ser escritor, 90% é trabalho e 10% é inspiração. Aprendi o que é a dedicação às causas, Palestina, Chiapas, Timor, Sara Ocidental, entre tantas, e, no fundo, uma única: a defesa dos Direitos Humanos. Aprendi o que é o espírito de missão com este avô que, sem qualquer queixume ou sacrifício, percorreu a imensidão do mundo para falar e comunicar com milhares de pessoas de todas as idades, raças, religiões, com o compromisso de dar o seu contributo para que o mundo fosse um lugar melhor. E deu esse contributo com a palavra: a sua "arma", a sua força! Sempre a palavra, o respeito por ela, com a consciência profunda de que há que usar a palavra certa em cada momento.

Dizia que cada um de nós tem o seu metro quadrado e que apenas precisamos de o regar diariamente, escavando, a cada dia, um pouco mais fundo. Para bem de todos nós, o seu metro quadrado é (e digo "é" porque ele persiste gigante, planetário, solar) toda a atmosfera: são os seus livros, textos, conferências, discursos, apresentações, entrevistas. No fundo, é a sua palavra escrita que se manterá enquanto existirmos, nós, os seus leitores. Já não o escutaremos. Contudo, se fecharmos os olhos enquanto lemos e relemos as suas páginas, certamente que o sentiremos a sussurrar aos nossos ouvidos.

Recentemente, estava eu na Fundação com a Rita Pais e o Sérgio Letria e perguntou se estávamos felizes. Assim do nada (pensávamos nós...), faz-nos esta pergunta mas quase como se estivesse a afirmar: estejam felizes. Ficámos os três sem resposta, o que, aliás, era recorrente nas imensas perguntas que ele nos deixou. Talvez agora lhe possa responder: sim, felizes por o havermos conhecido, por termos existido no seu tempo, por termos convivido com ele. E a essa felicidade acrescenta-se a enorme responsabilidade de o ler, de escutar a sua Blimunda que anda pelo mundo a recolher as vontades, de cuidar do nosso metro quadrado, de pensar, de pensar muito. Parafraseando uma das suas mais conhecidas epígrafes, Se podes ler, lê. Se leste, reflecte. É isso que iremos fazer.

Como tantas vezes foi dito e tão recentemente em voz bem alta: Obrigada, Saramago. E como na génese da palavra "obrigado" está o compromisso de retribuir aquilo que nos foi dado, a ti, Saramago, vamos ler-te sempre, em agradecimento por fazeres de todos nós pessoas melhores. E para podermos, como tu também disseste, contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia."
Lisboa, 24 de Junho de 2010

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