20 de Abril (de 1996)
"Estiveram, além do Sérgio Ribeiro, os também «eurodeputados» (meto aspas na palavra porque sempre me pareceu assaz esquipática) Alonso Puerta, que é o presidente do grupo no Parlamento Europeu, Laura González, Angela Sierra, e dois professores de Tenerife: Ana Hardisson e Juan Pedro Castafleda. Quanto a mim, cumpri a obrigação dizendo o que segue:
«Repito as palavras que aqui nos reúnem - literatura, compromisso, transformação social -, pronuncio-lhes devagar as sílabas como se, em cada uma delas, se escondesse ainda um significado secreto à espera de ser revelado ou simplesmente reconhecido, procuro reencaminhá-las para a integridade de um sentido primeiro, restaurá-las do uso, purificá-las das vulgaridades da rotina - e encontro-me, sem surpresa, perante dois caminhos de reflexão (quem sabe se os únicos possíveis), já percorridos mil vezes, mas a que parece ser nosso inelutável destino voltar, sempre que a crise contínua em que vivem os seres humanos (seres de crise por excelência, e humanos talvez por isso mesmo) deixa de ser crónica, habitual, para tornar-se aguda e, ao cabo de um tempo, insustentável. Como creio ser a situação da humanidade que hoje representamos e deste tempo que vivemos.
«O primeiro caminho de reflexão seria o daquela tendência muito corrente que quer incluir a literatura entre os agentes de transformação social, entendendo-se a denominação, neste caso, não tanto como referida às consequências sociais decorrentes dos factores estéticos, mas sim a supostas influências na ordem ética e na ordem axiológica, independentemente do carácter positivo ou negativo das suas expressões. De acordo com tal maneira de pensar, e extrapolando, em benefício do raciocínio, conteúdos e formas historicamente diferencia-dos (para poder, assim, abranger numa única visão o ensino, a literatura e a cultura em geral), teríamos de coincidir, hoje, apesar dos trágicos desmentidos da realidade, com a panglossiana convicção dos nossos oitocentistas e optimistas avós, para quem abrir uma escola equivalia a fechar uma prisão. Que nos digam as estatísticas escolares e judiciais se a massificação do ensino se tem configurado, de facto, como prevenção bastante ou antídoto eficaz contra a massificação da delinquência, que é, precisamente, já não temos dúvidas, uma das características principais deste final de século.
«Deixemos, porém, as escolas, deixemos a cultura em geral, deixemos a arte, a filosofia e a ciência, para cuja adequada ponderação me faltam o saber e a autoridade, e regressemos à literatura e à sua relação com a sociedade. Mantenhamo-nos discretamente nos domínios do axiológico e do ético (sem os quais, há que reconhecê-lo, qualquer exame de uma transformação social determinada, fosse qual fosse a sua época, teria de satisfazer-se com pouco mais que uma tabela de pesos e medidas), e reconheçamos, por muito que tal verificação possa castigar a nossa confiança, que as obras dos grandes criadores do passado, de Homero a Cervantes, de Dante a Shakespeare, de Camões a Dostoievski, apesar da excelência do pensamento e fortuna de beleza que diversamente nos propuseram, não pare-cem ter originado, em sentido pleno, nenhuma efectiva transformação social, mesmo quando tiveram uma forte e às vezes dramática influência em comportamentos individuais e de geração. No plano da ética, dos valores humanos e do respeito humano, apetece dizer, sem cinismo, que a humanidade (estou a referir-me, em particular, ao que costumamos designar por mundo ocidental) seria exactamente o que é hoje se Goethe não tivesse vindo ao mundo. E que, em reforço desta ideia, não me consta que a leitura dos Fioretti de S. Francisco de Assis tivesse salvado a vida a uma só das vítimas da Inquisição...
«É lícito, portanto, afirmar que a literatura, mesmo quando, por motivos religiosos ou políticos, se dedicou a uma pregação de bons conselhos ou a uma engenharia de novas almas, não só não contribuiu, como tal, para uma modificação positiva e duradoura das sociedades, como provocou, algumas vezes, insanáveis sentimentos de frustração individual e colectiva, resultantes de um balanço negativo entre as teorias e as práticas, entre o dito e o feito, entre uma letra que proclamava um espírito e um espírito que deixou de reconhecer-se na letra. Bem mais fácil seria, para quem fizesse questão de em todas as coisas descobrir mútuas relações de causa e efeito, juntar provas de uma influência maléfica da literatura (de uma parte dela) nos costumes e na moral, e portanto na sociedade, tarefa, aliás, bastante favorecida pela presença obsessiva de algumas dessas obras e alguns desses autores, por exemplo, no imaginário sexual de milhões de pessoas, alimentando fantasmas e fantasias que nos são «culturalmente naturais», mas a que, de outro modo, teriam ficado a faltar referências, abonações e modelos. Por outras palavras, uma filosofia completa de vida... Entendidas assim tais relações, e adoptando a atitude, mais comum do que se imagina, daqueles que crêem que uma coisa só passa a ter verdadeira existência a partir do momento em que exista a palavra que a nomeie, o Sadismo ter-se-ia revelado ao mundo quando o marquês de Sade, ainda criança, pela primeira vez arrancou as asas a uma mosca, e o Masoquismo, também ele, teve de aguardar o dia em que a pequena alma de Sacher-Masoch, talvez por aquela mesma idade, e imitando, sem o saber, os místicos de todas as religiões, percebeu que era, primeiro possível, depois desejável, passar do sofrimento no prazer ao prazer no sofrimento. Ao cabo de milénios, depois de uma espera longuíssima, depois de tanto tempo em vão, o sádico e o masoquista puderam finalmente encontrar-se, reconhecer-se como complementares e, desta maneira, inaugurar a era da felicidade... A deles.
«Este percurso breve pelo primeiro dos caminhos de reflexão que se nos apresentaram, aquele que assentava no pressuposto de que a literatura, independentemente do significado moral ou imoral das suas manifestações, teria exercido ou ainda exerceria influência nas sociedades ao ponto de constituir-se como um dos seus agentes transformadores, acabou de conduzir-nos a uma conclusão pessimista e aparentemente intransponível: a de uma essencial irresponsabilidade da literatura. Ir-responsabilidade, digo eu, no sentido restrito de que não seria legítimo atribuir ao ciclo da Guerra das Duas Rosas de Shakespeare, tomemos o mais ilustre dos exemplos, a culpa de um eventual aumento, em número e em gravidade, dos crimes públicos ou privados em geral, como igualmente não teremos o direito de acusar o autor de Ricardo III de não haver podido conseguir, graças ao que se supõe ser a lição admoestadora e edificante de toda a tragédia, que os reis e os presidentes passassem a matar-nos menos...
«Se a literatura é de facto irresponsável, na dupla acepção de não poderem ser-lhe imputados, mesmo que só parcialmente, nem o bem nem o mal da humanidade, e não estar portanto obrigada, quer para penitenciar-se quer para felicitar-se, a prestar contas em nenhum tribunal de opinião; se, pelo contrário, actua, no seu fazer-se, como um reflexo mais ou menos imediato e directo da situação material e psicológica das sociedades nas suas sucessivas transformações - então, o segundo caminho de reflexão proposto, que, talvez com excessivo radicalismo, acabaria por mostrar a literatura como simples e obediente sujeito, esse caminho interrompe-se quando ainda mal tínhamos dado o primeiro passo, reconduzindo-nos ironicamente ao ponto de partida, à interrogação sobre o que deveria ser e para que deveria servir a literatura, quando na vida cultural dos povos se instale o sentimento inquietante de que, não tendo ela, aparentemente, deixado de ser, manifestamente deixou de servir.
«Mesmo que o determinismo da conclusão possa humilhar certas vaidades literárias (mais inclinadas do que aconselharia a modéstia a engrandecer o seu papel, não só na república das letras como na sociedade em geral), teremos de reconhecer que a literatura não transformou nem transforma socialmente o mundo e que o mundo é que transformou e vai transformando a literatura. Posta a questão nestes termos, objectar-se-á que, depois de haver tapado os caminhos, venho agora fechar as portas, e que, encerrado neste círculo, sobre todos vicioso e perverso, nada mais restaria ao escritor, enquanto tal, que trabalhar sem esperança de vir realmente a influir na sua época, limitado a produzir os livros que a necessidade de divertimento da sociedade, sem o parecer, lhe for encomendando, e com os quais se satisfarão ela e ele, ou, no caso de ter sido contemplado com uma porção suficiente de génio, quando da sua distribuição pelo Cosmo, escrever obras que o seu tempo compreenderá mal ou a que será hostil, deixando ao futuro a responsabilidade de um julgamento definitivo, que, acaso seguro e justo nesse específico caso, incorrerá, infalivelmente, em erros de apreciação quando, tornado presente, tiver de pronunciar-se sobre obras suas contemporâneas... (Em verdade, o escritor, quando escreve, não está apenas só, está também cercado de escuridão, e creio que não abusarei da minha limitada faculdade de imaginar se disser que a própria luz da obra - pouca ou muita, todas a têm - o cega. Dessa cegueira particular não o poderão curar nenhuma crítica, nenhum juízo, nenhuma opinião, por mais fundamentados e úteis que possam ser, porquanto são, todos eles, emitidos de um outro lugar.)
«Em que ficamos, então? Se as sociedades não se deixam transformar pela literatura, ainda que ela, numa ou noutra ocasiões, possa ter tido nas sociedades alguma influência superficial, se, pelo contrário, é a literatura que se encontra hoje assediada por sociedades que não lhe pedem mais que as fáceis variantes de uma mesma anestesia de espírito que se chamam frivolidade e brutalidade - como poderemos nós, sem esquecer as lições do passado e as insuficiências de uma reflexão dicotómica que se limitaria a fazermos viajar entre a hipótese de uma literatura agente de transformações sociais e a evidência de uma literatura que parece não ser capaz de fazer mais que recolher os destroços e enterrar as vítimas das batalhas sociais - como poderemos nós, insisto, embora provocando a troça das futilidades mundanas e o escárnio dos senhores do mundo, restabelecer o debate sobre literatura e compromisso sem parecer que estamos a falar de restos fósseis?
«Espero que num futuro próximo não venham a faltar respostas a esta pergunta e que todas juntas possam fazer-nos sair da resignada e dolorosa paralisia de pensamento e acção em que nos encontramos. Por minha parte, limitar-me-ia a propor, sem mais considerações, que regressemos rapidamente ao Autor, à concreta figura de homem ou de mulher que está por trás dos livros, não para que ela ou ele nos digam como foi que escreveram as suas grandes ou pequenas obras (o mais certo é não o saberem eles próprios), não para que nos eduquem e instruam com as suas lições (que muitas vezes são os primeiros a não seguir), mas, simplesmente, para que nos digam quem são, na sociedade que somos, eles e nós, para que se mostrem como cidadãos deste presente, ainda que, como escritores, creiam estar trabalhando para o futuro.
«O problema não está em, supostamente, se terem extinguido as razões e causas de ordem social, ideológica ou política que, com resultados estéticos que nem sempre serviram as intenções, levaram ao que se chamou, no sentido moderno da expressão, literatura de compromisso; o problema está, mais cruamente, em que o escritor, regra geral, deixou de comprometer-se como cidadão, e que muitas das teorizações em que se foi deixando envolver acabaram por constituir-se como escapatórias intelectuais, modos de disfarçar, aos seus próprios olhos, a má consciência e o mal-estar desse grupo de pessoas - os escritores -, que, depois de se terem considerado a si mesmas como farol e guia do mundo, acrescentam agora à escuridão intrínseca de todo o acto criador as trevas da renúncia e da abdicação cívicas.
«Depois de deixar este mundo, o escritor será julgado segundo aquilo que fez. Enquanto ele estiver vivo, reclamemos o direito a julgá-lo também por aquilo que é.»
O verdadeiro debate veio a acontecer depois, durante o almoço que nos reuniu a todos. Como era de esperar, fui acusado (amigavelmente acusado) de ser mais pessimista que a conta (ganhei esta fama, tenho de continuar a merecê-la...), mas, ou muito me engano, ou o pessoal de Estrasburgo foi de cá um bocadinho abala-do... Enfim, tanto não direi, mas a veemência sempre perturba, e eu estou convencido de ter sido algo mais que veemente."
in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 112 a 118 (20 de Abril de 1996)
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