in "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 191 a 196
9 de Agosto (de 1996)
"Para a conferência de encerramento dos Cursos de Verão da Universidade Complutense, em El Escorial, retomei o tema do «Narrador Inexistente», já provocadoramente presente no papel que há dois anos fui debitar a Edmonton (Canadá), por ocasião de um Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada. Claro que o mundo das teorias literárias não mudou de rumo por eu ter dito o que lá disse, nem tão-pouco irá mudar agora, mas não resistirei, sempre que venha a propósito, e mesmo sem a propósito nenhum, a meter o meu remo na água ao contrário da corrente. Diz-se que cada doido tem a sua mania, e a minha, se doido sou, é esta. Eis uma parte do que li em El Escorial:
«Nesta minha contestação, claro está, não irei ao ponto de negar que a figura duma abstracção denominada Narrador possa ser apontada e exemplificada no texto, pelo menos, com todo o respeito o digo, segundo uma lógica dedutiva bastante similar à da demonstração ontológica da existência de Deus efectuada por Santo Anselmo... Aceito, até, a probabilidade de variantes ou desdobramentos de um alegado Narrador central, com a tarefa de expressarem uma pluralidade de pontos de vista e juízos considerada, pelo Autor, útil à dialéctica dos conflitos. A pergunta que me faço, e isto é o que verdadeiramente mais me interessa, é se a atenção obsessiva prestada pelos analistas de texto a tão escorregadia entidade, propiciadora, sem dúvida, essa atenção, de suculentas e gratificantes especulações teóricas, não estará contribuindo para a redução do Autor e do seu pensamento a um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra. Aclararei que, quando falo de pensamento, não estou a retirar dele as sensações e os sentimentos, os anseios e os sonhos, todas as vivências do mundo exterior e do mundo interior sem as quais o pensamento se tornaria, quiçá (arrisco-me a pensá-lo...), em um puro pensar inoperante.
«Abandonando desde agora qualquer precaução oratória, o que aqui estou assumindo, afinal, são as minhas próprias dúvidas e perplexidades sobre a identidade real da voz narradora que veicula, nos livros que tenho escrito e em todos os que li até agora, aquilo que derradeiramente creio ser, caso por caso, e quaisquer que sejam as técnicas empregadas, o pensamento do Autor. O seu próprio, pessoal (até onde nos é possível tê-lo), ou, acompanhado-o, misturando-se com ele, os pensamentos outros, históricos ou contemporâneos, cientemente ou incientemente tomados de empréstimo, para alcance dos objectivos e satisfação das necessidades discursivas, descritivas ou reflexivas da narração.
«E também me pergunto se a resignação ou a indiferença com que que o Autor, hoje, parece aceitar a apropriação, por um Narrador academicamente abençoado, da matéria, da circunstância e da função narrativa, que em épocas anteriores, como autor e como pessoa, lhe eram exclusiva e inapelavelmente imputadas, não serão, essa resignação e essa indiferença, uma expressão mais, assumida ou não, e mais ou menos consciente, de um certo grau de abdicação de responsabilidades mais gerais.
«Que fazemos, os que escrevemos? Nada mais que contar histórias. Contamos histórias os romancistas, contamos histórias os dramaturgos, contamos também histórias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca, poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já uma história. As palavras proferidas, e as apenas pensadas, desde que nos levantamos da cama, pela manhã, até que a ela regressamos, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as que o sonho vierem a tentar descrever, constituem uma história com uma coerência interna própria, contínua ou fragmentada, e poderiam, como tal, em qualquer momento, ser organizadas e articuladas numa história escrita e torna-das literatura.
«O escritor, esse, tudo quanto escrever, desde a primeira palavra, desde a primeira linha, será em obediência a uma intenção, às vezes clara, às vezes obscura - porém, de certo modo, sempre discernível e mais ou menos óbvia, no sentido de que está obrigado, em todos os casos, a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos comuns a ambos, para que ele possa, sem excessivas dificuldades, entender o que, pretendendo parecer novo, diferente, talvez mesmo original, já é afinal conhecido porque, sucessivamente, vai sendo reconhecido. O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é um exemplo de mistificador: conta histórias para que lhas aceitem como críveis e duradouras, apesar de saber que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas naquilo a que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, permanentemente assustadas pela atracção de um não-sentido que as empurra para o caos, para fora dos códigos convencionados, cuja chave a cada momento ameaça perder-se.
«Não esqueçamos, porém, que, assim como as verdades puras não existem, também as puras falsidades não podem existir. Porque se é certo que toda a verdade leva consigo, inevitavelmente, uma parcela de falsidade, que mais não seja por insuficiência expressiva das palavras usadas, também certo é que nenhuma falsidade chegará a ser tão radical que não veicule, mesmo contra as intenções do embusteiro, uma parcela de verdade. Nesse caso, a mentira poderia conter, por exemplo, duas verdades: a sua própria, elementar, isto é, a verdade da sua própria contradição (a verdade encontra-se oculta nas próprias palavras que a negam...), e uma outra verdade, aquela de que acabou por tomar-se veículo, comporte ou não essa nova verdade, por sua vez, uma parcela de mentira.
«De fingimentos de verdade e de verdades de fingimento se fazem, pois, as histórias. Contudo, e a despeito do que, no texto, se nos apresenta como material evidência, a história que ao leitor mais deverá interessar não é, em minha opinião, a que a narrativa lhe propõe. Uma ficção não está formada somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, surpresas, efeitos de estilo, jogos malabares, exibições ginásticas de técnica de narração - uma ficção (como toda a obra de arte) é, acima de tudo, a expressão ambiciosa de uma parcela identificada da humanidade, isto é, o seu autor. Pergunto-me, até, se o que determina o leitor a ler não será a esperança não consciente de descobrir no interior do livro - mais do que a história que lhe vai ser contada - a pessoa invisível, mas omnipresente, do autor. Tal como creio entender, o romance é uma máscara que esconde e ao mesmo tempo revela os traços do romancista. Provavelmente (digo provavelmente...), o leitor não lê o romance, lê o romancista.
«Com isto não pretenderei sugerir ao leitor que se entregue, durante a leitura, a um trabalho de detective ou de antropólogo, procurando pistas ou removendo camadas geológicas, no fundo das quais, como um culpado ou uma vítima, ou como um fóssil, se encontraria escondido o Autor... Muito pelo contrário: o que digo é que o Autor está no livro todo, que o Autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Verdadeiramente, não creio que tenha sido para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parece--me, até, que, ao dizê-lo, não fez mais do que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem querer faltar ao respeito devido ao autor de L'Éducation sentimentale, poderia mesmo dizer que uma tal afirmação não peca por excesso, mas por defeito: Flaubert esqueceu-se de nos dizer que ele era também o marido e os amantes de Emma, que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de todas as condições e idades, nela viviam, casa, rua e cidade reais ou inventadas, tanto faz. Por-que a imagem e o espírito, e o sangue e a carne de tudo isso, tiveram de passar, inteiros, por uma só entidade: Gustave Flaubert, isto é, o homem, a pessoa, o Autor. Também eu, ainda que tão pouca coisa em comparação, sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial do Convento, e em O Evangelho segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, porque sou também o Deus e o Diabo que lá estão...
«O que o autor vai narrando nos seus livros não é a sua história pessoal aparente. Não é isso a que chamamos o relato de uma vida, não a sua biografia linearmente contada, quantas vezes anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a vida labiríntica, a vida profunda, aquela que dificilmente ousaria ou saberia contar com a sua própria voz e em seu próprio nome. Talvez porque o que haja de grande no ser humano seja demasiado para caber nas palavras com que a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que lhe povoam um passado que não é apenas seu, e que por isso lhe escapará sempre que tentar isolá-lo ou isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que somos mesquinhos e pequenos é a tal ponto comum que nada de muito novo poderia ensinar a esse outro ser pequeno e grande que é o leitor...
«Finalmente, talvez seja por algumas destas razões que certos autores, entre os quais me incluo, privilegiam, nas histórias que contam, não a história que viveram ou vivem (fugindo assim às armadilhas do confessionalismo literário), mas a história da sua própria memória, com as suas exactidões, os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas verdades que não podem impedir-se de ser também mentiras. Bem vistas as coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a única história que quero e posso contar.
«Quanto ao Narrador, se depois disto ainda houver quem o defenda, que poderá ele ser senão a mais insignificante personagem de uma história que não é a sua?»
(Nota: textos em bold do blogger)
in "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 191 a 196 (09/08/1996)
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