O presente artigo, está publicado na edição #1 da revista "Blimunda" (páginas 26 e 27) e pode ser recuperado, para leitura, aqui
(Kain, edição norueguesa, editora Cappelen Damn)
"De relance"
"A capa de um livro pode assumir leituras muito diversas em função dos olhos que a observam. Se para o departamento de marketing de uma editora a capa é a embalagem que vai divulgar e, preferencialmente, vender o livro, para o leitor bibliófilo é a porta de entrada,bem ou mal sucedida, para um universo onde anseia perder-se. Para o livreiro é um elemento fundamental na arrumação do seu espaço de venda e para o técnico da gráfica pode ser uma dor de cabeça,caso as cores pedidas não se misturem da maneira exata. Inaugurando um espaço de conversa com designers responsáveis pelas capas dos livros de José Saramago, escolhemos a edição norueguesa de Caim (Kain), desenhada por Marianne Zaitzow para a editora Cappelen Damm. A ideia é trazer um pouco de luz ao processo complexo e nem sempre pacífico de criar, desenhar e fixar uma capa, conjugando as indicações do editor, as eventuais sugestões do autor, a linha gráfica de uma determinada coleção, a fidelidade ao conteúdo do livro e, muitas vezes, a necessidade de distinção entre os milhares de outras capas que povoam as livrarias. Numa troca de e-mails, Marianne Zaitzow falou à Blimunda sobre o seu processo de trabalho durante a conceção da capa de Kain.
Sobre um fundo amarelo, pontuado, nos quatro cantos, por porme-nores que parecem indicar pequenos rasgões, como se a capa fosse um poster preso por pregos numa parede, uma mão de dedo em riste abala as letras que compõem o título do livro. A imagem é estilizada, construída através da técnica do stencil, e não precisa demais pormenores do que a forma e a cor, negro, para transmitir uma força pictórica que tem correspondência direta com o conteúdo do romance de Saramago. A mão de Deus, primeira e mais óbvia leitura desta capa, é igualmente a mão do autor, como explica Marianne Zaitzow: “A mão foi a minha primeira ideia para a imagem da capa. Normalmente, trabalho a ideia de uma capa durante muito tempo,até estar convencida de ter captado a essência do livro. Neste caso, a mão remete para Deus e para a história bíblica de Caim, mas é igualmente a mão do próprio Saramago, esmagando o nosso entendimento comum da Bíblia.” Portanto, quem não conhecesse o autor e encontrasse este livro, com esta capa concreta, numa livraria, teria como primeira mensagem a certeza de não encontrar a história de Caim tal como é contada na Bíblia, mas uma outra, talvez desconcertante, a julgar pelas letras do título em quase derrocada.
Esta estrutura só foi possível pelo facto de a designer ter beneficiado de total liberdade no que respeita à colocação dos elementos constituintes da capa do livro. O único elemento que foi definido pelo editor foi o logotipo da editora e o seu posicionamento na capa. De resto, pude colocar todos os elementos onde quis colocar. É certo que a situação mais comum é o nome do autor e o título surgirem no topo, mas neste caso creio que a o conceito da capa é reforçado pela colocação do título em baixo”.
Para as letras, Marianne Zaitzow escolheu o tipo Bad Type, “porque tem aquela aparência simples e
naif que parece ter sido desenhada à mão e, apesar disso, é forte, poderoso. Na verdade, é uma parte muito importante de toda a imagem.” Essa aparência manual ganha leitura quando se relaciona com a imagem da mão, já que a técnica do stencil é, igualmente, uma técnica com componente manual preponderante, e mesmo as suas reproduções em computador, graças a programas de desenho preparados para replicarem os gestos e os processos de técnicas artesanais, não perdem essa vertente.
Descrevendo o seu processo de trabalho a partir de um exemplo sem relação com o design, Mariann Zaitzow destaca a relação profunda e bilateral que a capa deve estabelecer com o livro a que serve de rosto: “A capa está muito relacionada com o título do livro. Como designer, acho importante contar a história do livro na capa. A minha função é ser a 'voz' do autor, não a minha própria voz. É como se tivéssemos de vestir outra pessoa. Temos de a conhecer, saber quem é, como pensa, como trabalha, onde vive. Não vamos vestir um vestido a um homem que trabalha como mineiro...” No caso de Kain, o efeito foi bem sucedido e aquilo que parece uma 'desarrumação' dos códigos habitualmente utilizados no registo de um título é, na verdade, um efeito visual capaz de resumir parte considerável da essência deste romance de José Saramago. A roupa adequada, portanto."
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