Na leitura das crónicas, "está lá tudo".
Rui Santos
"Ter pouco e desbaratar"
"Por muito que à nossa vaidade patriótica custe reconhecê-lo, não somos um país abundoso de obras de arte. Temos um clima que guarda entre os excessos uma benigna constância, esta paisagem feminina, macia - mas, salvo as consabidas e por vezes valiosíssimas exceções, não soubemos edificar neste habitat uma estrutura plástica homogénea e numerosa. Ao longo da História, poucos foram os centros culturais duradouros, ou, quando existentes, estiveram muito mais voltados para as severidades e securas de uma religião inimiga dos gozos do mundo, do que para o culto sensual da arte, prazer das mãos e dos olhos. As guerras, os incêndios, os terramotos, destruíram ou danificaram irremediavelmente muito do pouco que se criou. Hoje, encontramo-nos na modesta situação dos remediados que se limitam a defender, melhor ou pior, o que possuem. Mesmo isto, porém, é duvidoso. Estarão convenientemente protegidos os grandes monumentos, as grandes obras de arte (em relação à sua segurança, nem sempre), mas o mesmo não se poderá dizer da pequena obra, da escultura maneirinha, do azulejo anónimo, da pintura de mestre secundário, que alargam sobre o País uma rede mediana, mas preciosa. O inventário desta riqueza de pobre está incompleto. Acresce que o dispositivo legal de proteção se mostra, em muitos casos, incapaz de penetrar e vencer as barreiras do interesse particular quando não é de todo inadequado por revelarem de foro privilegiado as obras em causa. Multiplicam-se os casos de igrejas despojadas do seu acervo artístico, substituído por exemplares de uma arte religiosa convencional, mais interessada em representações sentimentalistas do que em expressões de arte autêntica. Esculturas de antigos canteiros, talvez inábeis, mas dotados de um génio popular merecedor de toda a atenção, cedem o seu lugar nos nichos ou nos altares a banais figuras, talvez canonicamente respeitáveis, mas artisticamente nulas. Há também o que se vai encontrando no chão, ao acaso de escavações ou segundo planos conscientes: pequenas ruínas, mosaicos romanos, vestígios de um passado anterior. Quando tais descobertas se fazem, não é raro embandeirarmos em arco: sobe-nos o acontecimento à cabeça e pouco falta para nos considerarmos mais ricos do que ninguém. Mas o tempo passa, rapidamente a emoção ao rés do quotidiano, e o achado lá fica, exposto ao tempo (que para as obras de arte nunca é benigno), exposto quantas vezes aos atentados, às depredações, às violências, aos roubos. Então levantam-se umas vozes tímidas, uns protestos desanimados, logo abafados no grande alheamento geral. E o empobrecimento continua. Não é diferente o que se passa no campo do nosso espólio bibliográfico. Temos sido grandes fornecedores de bibliotecas colecionadores estrangeiros que dispõem de fartos orçamentos e não discutem preços, em chocante contraste com a penúria de meios ou a estreiteza de vistas de algumas autoridades nacionais. E assim, rapidamente, mudam de proprietário tesouros bibliográficos que teríamos o rigoroso dever de guardar, para honra de quem os escreveu e de quem tinha sabido defendê-los até estes mal-agradecidos dias de hoje.
Tem-se falado muito, ultimamente, de responsabilidades. Ora, neste como em tantos outros setores, conviria que tal palavra assumisse o seu verdadeiro sentido e se tornasse, assim, mais do que um simples jogo de sons, norma de comportamento e exigência."
in "As opiniões que o DL teve"
05/06/1972
(NR: Bold meu)
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