Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 24 de julho de 2016

«O Lagarto» de José Saramago e J. Borges, chega em setembro (Fundação José Saramago)

Publicado na página da Fundação José Saramago, pode ser recuperado e consultado aqui
em http://www.josesaramago.org/lagarto-jose-saramago-j-borges/

"«O Lagarto», de José Saramago e J. Borges, chega em setembro"

"Em setembro chega às livrarias portuguesas O Lagarto, livro que une as palavras de José Saramago ao traço do artista brasileiro José Francisco Borges, conhecido como J. Borges. O projeto, que nasce da ideia original do editor argentino Alejandro García Schnetzer, será publicado pela Porto Editora em colaboração com a Fundação José Saramago, terá design da Silvadesigners, e propõe uma nova leitura da crónica com o mesmo título escrita por José Saramago em 1972.


Passados mais de 40 anos da publicação de O Lagarto no livro A Bagagem do Viajante, o texto ganha novas leituras trazidas pelas ilustrações do “génio da arte popular”, nas palavras do New York Times. O artista brasileiro, que ficou conhecido internacionalmente ao ilustrar em 1993 o livro Palavras Andantes, de Eduardo Galeano, produziu um conjunto de xilogravuras que dialogam com o texto do Prémio Nobel português.


A 22 de Setembro, o FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos inaugura uma exposição das matrizes das xilogravuras e das ilustrações que J. Borges fez para as palavras de José Saramago.

Saramago conhecia e gostava muito do trabalho de J.Borges (…) dizia que para ele J.Borges compreendia e explicava o mundo de forma aparentemente simples e ao mesmo tempo profunda. Este Borges aproximava-se, para Saramago, dos seus avós na forma de olhar o mundo. Além disso, Saramago tinha muito apreço pelos trabalhos de criação. Na sua mesa de trabalho, por exemplo, estava um crucifixo que um artesão lhe dera de presente após ler O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Para ele não era uma homenagem a um homem crucificado mas sim ao homem que fez aquela peça e que a compartilhou. Criar é compartilhar, e agora dois Josés presenteiam-nos com uma obra que deve ser compartilhada. Um grande presente.
(Palavras de Pilar del Río ao Jornal do Commercio, do Brasil, a propósito do livro)


Quem é J.Borges:

Nasceu em Bezerros (Pernambuco, Brasil) no ano de 1935. Aos 20 anos começou a vender cordéis nas feiras. Em 1964 assinou o seu primeiro trabalho autoral. Tornou-se gravurista para ilustrar os cordéis que produzia. Durante a vida escreveu algumas centenas de cordéis. Ilustrou o livro As palavras Andantes, de Eduardo Galeano, e expôs o seu trabalho em vários lugares do mundo, entre eles EUA, Suíça, França, Alemanha, Venezuela, Itália e Cuba. Em 2006 recebeu o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, outorgado pelo Governo do Estado. Atualmente vive na sua cidade natal, num local que foi transformado num espaço artístico, o Memorial J.Borges, onde ensina a arte da xilogravura aos mais novos."


Crónica "O lagarto",
publicada na obra "A Bagagem do Viajante"

"De hoje não passa. Ando há muito tempo para contar uma história de fadas, mas isto de fadas foi chão que deu uvas, já ninguém acredita, e por mais que venha jurar e trejurar, o mais certo é rirem-se de mim. Afinal de contas, será a minha simples palavra contra a troça de um milhão de habitantes. Pois vá o barco à água, que o remo logo se arranjará. 
A história é de fadas. Não que elas apareçam (nem eu o afirmei), mas que história há-de ser a deste lagarto que surdiu no Chiado? Sim, apareceu um lagarto no Chiado. Grande e verde, um sardão imponente, com uns olhos que pareciam de cristal negro, o corpo flexuoso coberto de escamas, o rabo longo e ágil, as patas rápidas. Ficou parado no meio da rua, com a boca entreaberta, disparando a língua bífida, enquanto a pele branca e fina do pescoço latejava compassadamente. 
Era um animal soberbo. Um pouco soerguido, como se fosse lançar-se numa súbita corrida, enfrentava as pessoas e os automóveis. O susto foi geral. Gentes e carros, tudo parou. Os transeuntes ficaram a olhar de longe, e alguns, mais nervosos, meteram pelas ruas transversais, disfarçando, dizendo consigo próprios, para não confessarem a cobardia, que a fadiga, lá diz o médico, causa alucinações. 
Claro que a situação era insustentável. Um lagarto parado, uma multidão pálida nos passeios, automóveis abandonados em ponto morto — e de repente uma velha aos gritos. Nem foi preciso mais nada. Num ápice a rua ficou deserta, os lojistas correram as portas onduladas, e uma rapariga que vendia violetas (era o tempo delas) largou o cesto, e as flores rolaram pelo chão, de tal maneira que fizeram em volta do lagarto um círculo perfeito, como uma grinalda de aromas. O animal não se mexeu. Agitava devagar a cauda e erguia a cabeça triangular, farejando. 
Alguém devia ter telefonado. Ouviram-se apitos, e as duas saídas da rua foram cortadas. De um lado, bombeiros com o material todo; do outro, forças armadas com todo a material. Havia quem dissesse que o lagarto era venenoso, quem afirmasse que as escamas resistiam à bala. A velha continuava a gritar, embora ninguém soubesse onde. A atmosfera carregava-se de pânico. Uma esquadrilha de aviões passou no céu, em observação, e do lado do Rossio começou a ouvir-se o chiar característico dos carros, de assalto. O lagarto deu alguns passos, rompendo a grinalda de violetas. A velha foi transportada de urgência para o hospital. 
A história está quase a acabar. Chegámos precisamente ao ponto em que as fadas intervêm, embora por manifestação indirecta. Reunidas todas as forças disponíveis, foi dado sinal de avançar. Agulhetas de um lado, baionetas do outro, e o trovejar dos carros roncando na subida — lançou-se o ataque geral. Das janelas, pessoas a seu salvo davam conselhos e opiniões. Mas tudo contra o lagarto. 
O qual lagarto, de repente (por intervenção das fadas, não esqueçam), se transformou numa rosa rubra, cor de sangue, pousada sobre o asfalta negro, como uma ferida na cidade. Desconfiados, os atacantes hesitaram. A rosa crescia, abria as pétalas, rescendia, lavava de perfume as fachadas encardidas dos prédios. A velha no hospital perguntava: que foi que aconteceu? E então a rosa moveu-se rapidamente, tornou-se branca, as pétalas mudaram-se em penas e asas — e uma pomba levantou voo para o céu azul. 
Uma história assim só podo acabar em verso: 

Calados, muitos recordam, 
Na prosa das suas casas, 
O lagarto que era rosa, 
Aquela rosa asas.

Há por aí quem não acredito? Eu bem dizia: isto de fadas já não é nada o que era."

in "A Bagagem do Viajante"
Caminho, 4.ª edição, páginas 95 a 97

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