A presente crónica foi publicada faz 44 anos, escrita pelo punho de José Saramago.
Enquando cronista na altura mostrava a sua preocupação e estranheza, hoje quando os rapazes da altura já são avós, recipero o carácter intemporal e a veracidade com que hoje nos deparamos nas consequências do desordenamento e falta de protecção da mancha florestal portuguesa. Isto obriga a uma preocupante reflexão - tal como ontem, hoje continuamos a ouvir falar de Oleiros e de povoações escondidas como Bogas de Baixo pelas piores razões.
Rui Santos"Um regulamento a favor do fogo" 12 de junho de 1972
"Com a chegada do verão, destes grandes calores que tornaram as matas e os pinhais inflamáveis como estopa, é certo e sabido que começam por esse país fora os incêndios. Devoram as encostas das serras, deixam-nas negras, despidas, terras de desolação onde, por muitos anos, se erguerão apenas os troncos queimados. Neste tempo se levantam inúmeras vozes a pedir proteção para o nosso património florestal, já de si tão escasso. A vulnerabilidade das nossas matas, se bem pensamos nela, é, a toda a hora, um convite à ruína total. Depois o tempo refresca, vem a chuva, adia-se a catástrofe para o ano.
Na falta de um sistema de defesa eficiente, conta-se sempre com a dedicação e a ousadia das populações que, mal se ouve o sinal do fogo, correm montes e vales, gritando, ofegando, para irem atacar o incêndio, sem curarem de saber a quem pertencem as árvores que as chamas vão furiosamente destruindo. Acudir ao fogo é obrigação cívica a que ninguém foge, e não têm sido poucos os atos de grande coragem praticados nessas ocasiões, com total desinteresse, pois ninguém pensa em apresentar depois a fatura dos serviços prestados. Também não há veneras nem condecorações: estes episódios passam-se em serranias anónimas, longe das vistas da grande publicidade.
Já os incêndios começaram a sua tarefa, e, lá para diante, não se passará um dia sem que o inferno lavre num ponto qualquer do País. E tudo será como de costume, e repetir-se-ão casos como este de que hoje falamos, acontecido numa povoação chamada Bogas de Baixo, próximo do Fundão. Ali, os sinos da igreja chamaram os habitantes ao combate. E foram todos, os novos e os velhos, as mulheres e as crianças. Fazia vento, e, como sempre acontece nessas circunstâncias, o fogo saltava do árvore em árvore, propagando-se pelas ramadas superiores, inutilizando os trabalhos no chão. Diante da ameaça cada vez maior, telefonou-se para povoações em redor e mais pessoas acorreram ao fogo, animando-se umas às outras, usando uma experiência já antiga, vinda de gerações. Por fim conseguiu-se travar o alastramento do incêndio. O desastre não foi total.
E os bombeiros? Após algumas dificuldades de comunicação, e graças à intervenção de terceiras pessoas, foi possível chamar os da vila próxima. Também se recorreu aos serviços dos bombeiros de outra vila, a de Oleiros, mas o comandante destes disse que «não podia mandar deslocar os seus homens para concelho diferente, sem que o comandante dos bombeiros do concelho onde havia o sinistro os requisitasse». Segundo a fonte onde colhemos estas informações, o comandante de Oleiros mostrou-se «muito compreensivo», chegando a oferecer-se para um entendimento com o Fundão. Ficaram os combatentes Voluntários e paisanos à espera do que viesse, mas nada se conseguiu. Enquanto os pinheiros de Bogas de Cima ardiam, enquanto as gentes da terra se afadigavam a lutar por bens que só a poucos pertenciam, um artigo de regulamento impedia o auxílio que deveria poder ser dado por uma corporação de bombeiros, mas que não foi porque o concelho era outro...
Estranhos casos se passam em Portugal! Muito mais estranhos ainda quando nos lembramos de que, durante a recente visita do presidente do Conselho a Castelo Branco, um dos mais brilhantes números dos festejos foi um longuíssimo desfile de bombeiros, com dezenas de viaturas. Vindos de muitos quilómetros e concelhos em redor... E não havia fogo."
in, "Os Apontamentos"
Porto Editora, edição que compila 2 livros de crónicas
Páginas 54 e 55
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